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segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Casamento sagrado ou encobrimento profano?

 Por Carol P. Christ

 Há boas razões para acreditar que no casamento compulsório de Hera com Zeus se reflete a subjugação de uma raça nativa aos invasores aqueus, daí a importância do casamento ritual, ιερος γαμος (ieros gamos), como comemorativo da reconciliação de dois sistemas religiosos, um tendo um deus, o outro uma deusa como divindade principal.

 

O Deus do Céu e a Ninfa do Mar
 Tétis
Muitas mulheres são atraídas pela imagem do Casamento Sagrado - talvez especialmente aquelas criadas nas tradições católica romana ou protestante, onde o sexo é visto como necessário para a procriação, mas nada mais, e que aprendem que o corpo feminino nu simbolizado por Eva é a fonte de pecado e maldade. Nesse contexto, a valorização positiva da sexualidade e do corpo feminino presente nos símbolos do Casamento Sagrado pode ser sentida e ser até libertadora.

Os junguianos afirmam que o Casamento Sagrado é um arquétipo do casamento entre o “masculino” e o “feminino”. Muitas mulheres também se sentiram atraídas por esta ideia. Ela “suaviza” a crítica feminista radical ao patriarcado e à dominação masculina. Em vez de “castrar” a “falocracia” como insistia Mary Daly, podemos pensar em termos de “casamento” de qualidades tradicionalmente associadas aos papéis masculino e feminino. As mulheres, dizem, podem usar uma boa dose de ego e assertividade, tradicionalmente associadas ao masculino, enquanto os homens precisam de ter seus egos racionais dominantes temperados por qualidades femininas como cuidado e compaixão.

Aqueles que apoiam a ideia do Casamento Sagrado do masculino e do feminino podem não perceber que Jung identificou o masculino com o ego consciente racional e o feminino com o inconsciente, o corpo e a natureza. Embora Jung e os seus seguidores entendessem corretamente que o masculino precisava ser complementado pelo feminino, eles eram menos claros sobre o quanto o feminino precisava do masculino. Eles desconfiavam do poder feminino não mantido sob controle nos casamentos patriarcais, e nos círculos junguianos as mulheres que desafiavam as ideias dos homens eram julgadas como “dominadas pelo animus” – por outras palavras, masculinas demais. Os seguidores de Jung costumam usar a expressão “dominadas pelo animus” para colocar as feministas radicais no seu lugar.

Zeus e Hera
parlamento autríaco
Escrevendo sobre a religião da antiga Creta em 1909, a arqueóloga Harriet Boyd Hawes e o antropólogo Charles Henry Hawes observaram:

O “Zeus de Creta” e o “Zeus do Machado Duplo” são títulos tão familiares que é com surpresa que descobrimos que a arqueologia minoica oferece muito pouca evidência para a existência de um deus. … A verdade parece ser que os aqueus impingiram Zeus a Creta no final da Idade do Bronze.

Eles continuam:

Há boas razões para acreditar que no casamento compulsório de Hera com Zeus se reflete a subjugação de uma raça nativa aos invasores aqueus, daí a importância do casamento ritual, ιερος γαμος (ieros gamos), como comemorativo da reconciliação de dois sistemas religiosos, um tendo um deus, o outro uma deusa como divindade principal.

Se assim é, não deveríamos suspeitar do Casamento Sagrado? E se a ideia da união de duas culturas num Casamento Sagrado for um encobrimento de algo muito mais sinistro?

Como disse Marija Gimbutas: “Não houve evolução. Foi um choque de culturas.”

Apesar de uma noite de felicidade conjugal, Zeus continuou a sua carreira enganando e violando ninfas, deusas e mulheres mortais, enquanto Hera estava longe de ser uma esposa satisfeita.

A Ninfa Danae após violação
por Zeus sob a forma de nuvem dourada 

Quanto ao casamento da Deusa com um Rei, por que deveríamos presumir que qualquer Deusa iria querer casar-se com um Rei? Nas culturas pré-patriarcais, não havia reis. O que é um Rei senão um guerreiro que conquista terras e culturas alheias e que reivindica o direito de matar homens e violar mulheres? Nenhuma deusa em sã consciência iria querer casar-se com um homem assim.

Os intérpretes dos mitos do Casamento Sagrado falam do Rei casando-se com a terra através da sua união com a Deusa da terra. Mas antes que os reis entrassem em cena, as deusas, a terra e as mulheres não estavam sujeitas a ninguém.

O símbolo do Casamento Sagrado, tal como chegou até nós no mito e na psicologia arquetípica, é sagrado? Eu acho que não. E se o Casamento Sagrado da Deusa com o Rei for parte de um grande encobrimento de uma história de conquista, dominação e violação? Um casamento muito profano, de facto.*

Então, qual era o papel do sexo nas culturas da Deusa?

Na cultura matriarcal de Mosuo, o sexo é vivenciado como uma parte valiosa da vida. O prazer sexual pode ser dado e recebido livremente, pois não está vinculado ao casamento nem ao sustento e cuidado dos filhos. No entanto, a relação sexual não é entendida como criando os laços essenciais. Em vez disso, os laços entre mãe e filha/o e os laços entre as mães e a terra são os laços essenciais. As mães e a terra são celebradas como sagradas no ritual e na religião.

Então e a sexualidade? É sagrada? E se a resposta for sim e não? E se a sexualidade não for nem mais nem menos sagrada do que muitas outras coisas boas da vida? Não santa, não profana? Não é uma maneira muito mais saudável e realista de entender o lugar da sexualidade nas nossas vidas?

***

*O símbolo do Casamento Sagrado também pode ser criticado por privilegiar a heterossexualidade e o casal.

https://feminismandreligion.com/2023/08/21/legacy-of-carol-p-christ-sacred-marriage-or-unholy-cover-up/

 

 

 

terça-feira, 5 de julho de 2022

Mulheres Fiandeiras e Tecedeiras: Bruxas e Pagãs, por Max Dashu

 Uma Revisão

POR CAROL P. CHRIST

 

Witches and Pagans: Women in European Folk Religion 700-1000, de Max Dashu, desafia a suposição de que a Europa foi totalmente cristianizada em poucos séculos, como nos dizem os historiadores tradicionais. A maioria de nós aprendeu que, não apenas a Europa se tornou cristã muito rapidamente, como também que os europeus estavam mais do que dispostos a adotar uma nova religião que era “superior” ao “paganismo” em todos os sentidos. Leitoras/es cuidadosas/os do importante novo trabalho de Dashu serão desafiadas/os a rever os seus pontos de vista. Quando os 15 volumes completos da série projetada forem impressos, os historiadores podem ser forçados a baixar a cabeça de vergonha. Isso, claro, pressupõe que os estudiosos lerão o trabalho de Dashu. É mais provável que a ignorem, mas mais cedo ou mais tarde – atrevo-me a esperar – a verdade virá à tona.

A história foi escrita pelos vencedores – no caso da Europa por homens cristãos de elite. Esses homens podem ter querido acreditar que os seus pontos de vista eram amplamente aceites, mas Dashu sugere que não. Combinando registos artísticos e arqueológicos, Dashu descobre (para dar um exemplo) que imagens da Mãe Terra amamentando uma cobra estão longe de ser incomuns e podem até ser encontradas como ilustrações em documentos e monumentos cristãos. Os clérigos enfurecem-se contra as pessoas – principalmente as mulheres – que continuam a visitar poços sagrados e árvores sagradas e a praticar rituais de adivinhação e cura invocando poderes pagãos. Parafraseando Shakespeare: “Acho que o clérigo protesta demais”. Se essas coisas não acontecessem e não acontecessem com frequência, não haveria necessidade de condená-las. Usando estas pistas, Dashu fornece novas leituras intrigantes da coletânea de poemas Edda e das sagas nórdicas.

Ler este livro é como abrir uma caixa cheia de joias deixadas para nós por ancestrais que nem sabíamos que tínhamos. O grande número de factos e sugestões de factos é esmagador. A própria Dashu é a primeira a admitir que ainda não juntou todas as peças numa nova e abrangente história da Europa. Ainda assim, é difícil negar que, se o seu trabalho for levado a sério, é exatamente isso que os outros serão inspirados a fazer.

Para mim, a parte mais interessante deste livro são as novas informações sobre os rituais ligados à fiação e à tecelagem. Há muito sei que as mulheres foram responsáveis ​​por três invenções que marcaram a entrada da humanidade no Neolítico ou na Nova Idade da Pedra. Estas são a invenção da agricultura, a invenção da fiação e da tecelagem e a invenção da cerâmica cozida. Há muito entendo que essas invenções envolvem a descoberta de mistérios de transformação: sementes em plantas comestíveis; lã ou linho em fios e em tecidos; barro, pela ação do fogo, em potes resistentes.

Os primeiros trabalhos de Marija Gimbutas sobre as canções rituais de plantio e colheita das mulheres de sua terra natal, a Lituânia, demonstraram que as mulheres continuaram a transmitir os “segredos” da agricultura de geração em geração por milhares de anos. Embora eu estivesse ciente de que a invenção da tecelagem pelas mulheres era lembrada na tradição grega posterior das “Três Parcas”, não tinha uma imagem clara das mulheres transmitindo os “segredos” da fiação e tecelagem por meio de rituais e canções.

As mulheres fiam e tecem juntas, o seu trabalho emoldurado pelas árvores da vida.

Os primeiros capítulos de Bruxas e Pagãos preenchem essa lacuna. As nossas ancestrais europeias não apenas se sentaram e continuaram com o trabalho de fiação e tecelagem, como invocavam os poderes femininos – deusas, ancestrais e espíritos – quando começaram a girar e usaram as suas rocas (varas de madeira ou varas que seguravam o linho ou lã não fiado) como ferramentas de adivinhação e varinhas mágicas. (Aqui está uma ideia: por que não substituir as espadas e facas rituais por uma roca?) Os sacerdotes castigavam as mulheres por invocarem divindades não-cristãs enquanto teciam e por amarrar símbolos pagãos nos seus teares. Certa vez, enquanto observava um grupo de velhas gregas cardando lã, disseram-me que “as nossas mães” ensinaram-nos como fazer isso. Gostaria de ter-lhes perguntado se o ensino era por meio de música, mas com certeza que era.

Uma imagem mais clara começa a surgir: as mulheres preservaram mistérios antigos que celebravam os poderes femininos de criatividade enquanto realizavam as tarefas do quotidiano. Não foi tão fácil acabar com essas práticas, porque as mulheres entendiam que as suas canções e rituais eram essenciais para o florescimento contínuo da vida.

Obrigada, Max, pelo seu trabalho brilhante. Que ele mude a forma como vemos o mundo!


BIO: Carol P. Christ (1945-2021) foi uma escritora, ativista e educadora feminista e ecofeminista internacionalmente conhecida. O seu trabalho continua por meio da sua fundação sem fins lucrativos, o Instituto Ariadne para o Estudo do Mito e do Ritual.

Texto original:

https://feminismandreligion.com/2022/07/04/the-legacy-of-carol-p-christ-weaving-and-spinning-women-witches-and-pagans-by-max-dashu-a-review/

quinta-feira, 1 de abril de 2021

E se partíssemos da hipótese de que a Creta Antiga era matriarcal, matrifocal e matrilinear?

Carol P. Christ em 22 DE FEVEREIRO DE 2021
Se começássemos com a hipótese de que a Creta antiga era matriarcal, matrifocal e matrilinear, o que esperaríamos que fosse o foco central da sua religião? * Harriet Boyd Hawes e a sua colega Blanche E. Williams apresentaram uma incipientemente feminista análise, centrada na mulher, da religião da antiga Creta, em Gournia, o livro que descreve a escavação de uma aldeia minóica no início do século XX. Boyd Hawes argumentou que as evidências arqueológicas mostravam não apenas a preeminência da Deusa, conclusão com a qual Williams concordava, mas também a força e a independência das mulheres numa cultura que ela definiu como matriarcal e matrilinear, centrada na família materna. Se a Creta antiga era matrilinear, matrifocal e matriarcal, deveríamos esperar encontrar evidências de que as mulheres não eram apenas fortes e independentes, mas também que assumiam papéis de liderança na religião e na cultura. Williams notou a presença de sacerdotisas. Os frescos em miniatura de Cnossos mostram um grupo de mulheres idosas sentadas no lugar de honra e um grupo de mulheres realizando uma dança ritual. Onde faltam evidências sobre as funções de liderança, não se deve presumir que a liderança deve ter estado nas mãos de homens.
Não deveríamos surpreender-nos ao descobrir que a Deusa ou a mãe terra estava no centro dos rituais e cerimónias na Creta antiga. No entanto, dizer que a Deusa é central levanta a questão do que queremos dizer quando dizemos Deusa. No Ocidente, a divindade é entendida como transcendente em relação ao mundo, representada como um Outro, um ser masculino dominante, juiz das/os vivas/os e das/os mortas/os. Citando o Dicionário Oxford English, o arqueólogo Colin Renfrew baseia a sua discussão sobre a religião minóica na ideia da transcendência divina. Mas se aceitarmos a visão de Marija Gimbutas de que a Deusa representa os poderes do nascimento, morte e regeneração em todas as formas de vida, surge-nos uma imagem diferente. A Deusa é imanente, ao invés de transcendente em relação ao mundo. Ela é a força vivificante nos seres humanos e em toda a natureza. Ela não é a juíza das/os vivas/os e das/os mortas/os, pois as/os mortas/os são devolvidos ao seu corpo. Ao contrário das divindades gregas posteriores, as deusas da Velha Europa e da antiga Creta geralmente não são retratadas como seres humanos idealizados. Embora muitas vezes tenham olhos, seios e triângulos sagrados, elas também têm bicos e asas, têm o formato de montanhas e são decoradas com linhas fluidas que simbolizam rios ou riachos. Essas formas híbridas sugerem que toda a vida é uma imagem da divindade e que os seres humanos não são superiores, melhores ou separados de outras formas de vida. Imagens híbridas celebram a conexão de todos os seres na teia da vida e chamam os seres humanos a participarem e a desfrutarem deste mundo, não a procurarem escapar ou elevar-se acima dele. Uma religião centrada na gratidão pela vida neste mundo é muito diferente daquela que se concentra no medo, no julgamento e no anseio pela vida após a morte. A percepção de Jacquetta Hawkes de que a religião da antiga Creta celebrava "a graça da vida" está exatamente certa.
A velha deusa europeia ou minóica é uma ou várias? Os monoteístas têm insistido que só pode haver um Deus, mas os politeístas reverenciam uma pluralidade de imagens, enquanto os animistas celebram os espíritos de seres vivos (percebidos) como rios e árvores, montanhas e cavernas. Os termos monoteísmo e politeísmo não são neutros. Ambos foram desenvolvidos por monoteístas: o monoteísmo descreve as crenças correctas do self; politeísmo, as falsas crenças da/o outra/o. Acho que a distinção da teóloga e liturgista Marcia Falk entre monoteísmo exclusivo e inclusivo é útil para resolver a questão do um/a e das/os muitas/os. Segundo Falk, o monoteísmo inclusivo é uma intuição da unidade do ser na diversidade do mundo: celebrando a unidade do ser, acolhe uma pluralidade de imagens para representar a diversidade e a diferença no mundo. Desse ponto de vista, as fronteiras entre o monoteísmo e o politeísmo são porosas. Quando Gimbutas falou dos poderes de nascimento, morte e regeneração em toda a vida, ela referia-se à unidade de ser subjacente à diversidade de formas de vida, incluindo plantas, animais e seres humanos. Da mesma forma, quando os povos indígenas falam da mãe terra como a doadora de tudo e de todos os seres como parentes, eles reconhecem que toda a vida é sustentada por uma única fonte. O fato dos povos cretenses antigos imaginarem a divindade de maneiras diferentes e com características diferentes não exige a conclusão de que eles adoravam muitas divindades distintas, como argumentam alguns arqueólogos: considero que intuíram uma unidade de ser enquanto celebravam a diversidade da vida. Esta parece ter sido a conclusão de Williams, que escreveu sobre “a proeminência de uma deusa sob vários aspectos”.
Se as culturas matrilineares, matrifocais e matriarcais tendem a ver a Terra como uma grande e generosa mãe, podemos esperar que essa percepção seja expressa em rituais e cerimónias. A gratidão é a resposta apropriada aos presentes dados gratuitamente. Sugiro que a gratidão pelo dom e dádivas da vida não era apenas um foco, mas o foco central da religião na Creta antiga. Se for assim, devemos esperar encontrar rituais celebrando o dom da vida no nascimento de bebés, na chegada à maioridade das meninas, bem como em rituais de morte homenageando as/aos ancestrais. Também podemos esperar encontrar rituais que honrem a linha materna e expressem gratidão pela sabedoria das ancestrais. Muitos desses rituais teriam ocorrido na Casa matrilinear, como sugere o arqueólogo Jan Driessen. Os rituais para as/os ancestrais também podem ter acontecido em cemitérios. Devemos também esperar encontrar rituais que expressem gratidão pelo alimento que sustenta a vida, por exemplo, nas oferendas de primícias à mãe terra e no derramamento de libações que são absorvidas de volta ao seu corpo. Se as mulheres inventaram a agricultura e, como argumentou Gimbutas, a religião da Velha Europa celebrava os processos de nascimento, morte e regeneração em toda a vida, deveríamos encontrar rituais focados no plantio, colheita e armazenamento de sementes. Alguns desses rituais podem ter ocorrido nas Casas matrilineares, enquanto outros certamente ocorreram na natureza e nos campos. Se a fabricação de cerâmica e a tecelagem fossem entendidas como mistérios de transformação envolvendo nascimento, morte e regeneração, poderíamos encontrar evidências de rituais associados a essas atividades nas Casas ou nas oficinas. É sabido que os ritos na Creta antiga envolviam árvores, montanhas e cavernas, bem como fontes de água. Devemos perguntar-nos se e como tais cerimónias expressam gratidão à mãe terra, a fonte da vida, e aos ciclos de nascimento, morte e regeneração. * Essas reflexões são parte de um rascunho inicial do prólogo metodológico de um ensaio que me pediram para escrever sobre Religião numa vila minóica a ser publicado no relatório arqueológico sobre as escavações recentes em Gournia. Na parte anterior do prólogo, discuto as teorias sobre as culturas matriarcal, matrifocal e matrilinear de Harriet Boyd Hawes, Blanche E. Williams, Marija Gimbutas, Heide Goettner-Abendroth e outras/os. Original aqui

domingo, 12 de julho de 2020

O Patriarcado é um sistema de dominação masculina criado pela intercessão da necessidade de controlo das mulheres, da propriedade privada e da guerra – primeira parte, Carol P. Christ


O patriarcado é frequentemente definido como um sistema de dominação masculina. Esta definição não esclarece, apenas obscurece, o complexo conjunto de factores que contribuem para o funcionamento do sistema patriarcal. Precisamos duma definição mais complexa se queremos compreender e desafiar o sistema patriarcal em todos os seus aspectos.

O patriarcado é o sistema de dominação masculina ancorado num etos de Guerra que legitima a violência, santificada pelos símbolos religiosos, no qual os homens dominam as mulheres através do controlo da sexualidade feminina, com a intenção de legarem a propriedade aos herdeiros masculinos, e no qual os homens, heróis de guerra, são instruídos para matar homens, autorizados a violar mulheres, a apoderarem-se da terra e das suas riquezas, a explorarem recursos e a apropriarem-se ou dominarem por qualquer meio os povos conquistados.

Marx e Engels disseram que a família patriarcal, a propriedade privada e o estado surgiram ao mesmo tempo. Embora a sua compreensão das sociedades que precederam o patriarcado tenha falhas, a intuição que tiveram de que o patriarcado está ligado à propriedade privada e à dominação em nome do Estado está correta. Desde há muito que é óbvio para mim que o patriarcado não pode ser separado da Guerra e dos reis que tomam o poder na sequência da guerra. Fiquei surpreendida há anos com a alegação de Merlin Stone de que na sociedade matrilinear não existem crianças ilegítimas porque todas as crianças têm mãe. Mais tarde, tentei perceber por que razão a Igreja de Roma e outras igrejas e o Partido Republicano na América se opõem tão fortemente ao direito das mulheres controlarem o seu próprio corpo e tentam a todo o custo impedir o seu direito ao aborto.

Na definição do patriarcado que dou acima, junto todas estas questões numa síntese que descreve além das suas origens a forma como está relacionado com o controlo da sexualidade feminina, com a questão da propriedade privada, da guerra, da conquista, da violação usada como arma de guerra e do recurso à escravidão.

O sistema que defino como patriarcal é um sistema de dominação reforçado pela violência ou pela ameaça da violência. É um sistema desenvolvido e controlado por homens poderosos, no qual as mulheres, crianças, outros homens e a própria natureza são dominadas. Devo entretanto acrescentar que não acredito que esteja na “natureza” do homem dominar pela violência. O sistema patriarcal tem uma origem histórica, o que significa que não é eterno nem inevitável. Houve mulheres e homens que ofereceram resistência ao patriarcado ao longo da sua história. Podemos juntar-nos também hoje em dia para lhe oferecermos resistência.

A minha definição de patriarcado foi influenciada por novos dados da pesquisa feita por Heidi  Goettner-Abendroth em Sociedades de Paz, que faz avançar o nosso entendimento das sociedades pré-patriarcais que ela designa por “matriarcais” “sociedades de paz”.

Goettner-Abendroth identifica a estrutura profunda dos matriarcados usando quarto marcadores: 

1) económico: estas sociedades usualmente praticam agricultura em pequena escala e conseguem relativa igualdade económica através da dádiva enquanto hábito social; 

2) social: estas sociedades são igualitárias, matrilineares, matrilocais, sendo a terra propriedade do clã materno e com ambos os géneros, mulheres e homens, permanecendo no respetivo clã materno; 

3) político: estas sociedades são igualitárias e possuem sistemas democráticos de consenso bem desenvolvidos; 

4) cultura, espiritualidade: estas sociedades tendem a considerar a Terra como a Grande Mãe Doadora. Mais importante e permeando tudo o resto, estas sociedades honram princípios de cuidado, amor e generosidade que associam à ideia de  maternidade, acreditando que tais princípios devem ser praticados tanto pelas mulheres como pelos homens.

A cultura Mosuo dos Himalaias, objeto de estudo recente, mesmo encontrando-se em vias de desaparecimento, é um exemplo clássico. Fiquei a saber da sua existência ao ouvir a discussão de Michael Palin sobre os hábitos sexuais das mulheres de Mosuo no seu documentário sobre os Himalaias. Estas mulheres explicaram a Palin que na sua cultura as mulheres e os homens se definem a si próprias e a si próprios através da sua conexão com a clã materno. Quando uma rapariga atinge a idade da maturidade sexual, a mãe prepara-lhe um quarto onde ela poderá convidar um rapaz para jantar. Caso este lhe agrade, ele é convidado a passar a noite com ela. As crianças nascidas destas relações tornam-se parte do clã materno. O papel do pai é assumido pelos tios e irmãos da mãe, sendo o papel desta partilhado com as irmãs. Quando algum membro dum casal se cansa da relação, esta acaba e cada pessoa encontra um novo parceiro ou uma nova parceira. Obviamente que o Michael Palin teve alguma dificuldade para acreditar no que as mulheres lhe contavam.

 Esta história ilustra uma importante diferença entre os costumes matrilineares e matrifocais dos Mosuo e os das culturas patriarcais com os quais estamos familiarizadas. Entre as mulheres desta etnia é de norma a livre escolha dos parceiros sexuais. Não existem crianças ilegítimas nesta cultura porque todas têm uma mãe. Não existem mulheres “perdidas” (bom reflectir sobre o sentido deste termo) nem prostitutas porque as mulheres são livres para terem relações com quem decidirem. A dicotomia entre a santa e a pecadora tão bem conhecida nas culturas patriarcais pura e simplesmente não existe aqui.

Com o contraste fornecido por Mosuo, é possível entender a um nível mais profundo que o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sexualidade feminina. O controlo da sexualidade feminina através da instituição do casamento não é acidental no patriarcado, sendo pelo contrário algo central. Os costumes que rodeiam o casamento patriarcal, incluindo a exigência de que a noiva esteja intocada ou “virgem”, a protecção da virgindade das raparigas pelo pai e pelos irmãos, o isolamento das raparigas e das mulheres, a exigência de estrita fidelidade da parte das esposas em relação aos maridos, e a imposição destes hábitos com o recurso à vergonha pública, à violência, ou ameaça de violência, tem um propósito: assegurar que os descendentes do homem sejam legítimos, sejam dele. Enquanto saber quem é a mãe biológica é fácil, ter a certeza de quem é  o verdadeiro pai é bem mais difícil. Se uma mulher tem mais do que um amante, então, sem teste de DNA que apenas foi descoberto recentemente, é quase impossível ter a certeza sobre quem é o pai. Uma primeira solução para esse dilema consiste em definir a paternidade de outra forma e uma segunda solução é o absoluto controlo sobre a sexualidade das mulheres.

Entretanto podemos perguntar-nos por que razão é tão crucial para um homem saber quem são os seus filhos biológicos que um complicado sistema de isolamento, vergonha e controlo da sexualidade feminina teve de ser posto em prática? A resposta encontra-se na próximo segmento da minha definição: o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sua sexualidade com a intenção de transmitir a propriedade aos herdeiros masculinos. Marx e Engels tinham razão ao afirmarem haver uma relação entre patriarcado e propriedade privada.  Não haveria necessidade do homem ter tanta certeza sobre a paternidade das suas crianças se a instituição da propriedade privada não existisse e se o valor dos indivíduos não fosse definido em função da propriedade que detêm e transmitem aos seus herdeiros, habitualmente do género masculino.

Apercebi-me recentemente de que a palavra “herança” ou “propriedade herdada” em grego moderno, “periousia”, derivada do grego antigo, ilustra a conexão entre propriedade e identidade de forma mais óbvia do que a palavra “herança”. “Ousia” no grego antigo refere-se ao ser ou à essência do indivíduo. “Peri-ousia” é aquilo que rodeia o ser essencial e portanto define “quem” se “é”. O seu sentido óbvio é que “quem se é” é definido pela “propriedade” que se herda e se transmite. Sem a clara identificação da “essência” dum homem com a sua propriedade, não seria necessária uma preocupação tão grande com a certeza de que o herdeiro da propriedade do pai é de facto o seu filho biológico.  

Fevereiro 18, 2013

Imagens:
1. Yves Yves, Unsplash 
2. Estandartes das Deusas do mundo, de Lydia Ruyle, cenário da Conferência da Deusa Portugal 2019, Sintra
3.Cariátides, museu de arqueologia da Acrópole, Atenas

quarta-feira, 20 de maio de 2020

FEMININO RACIONAL E INTUITIVO - INVENÇÕES DAS MULHERES CRUCIAIS PARA A EVOLUÇÃO HUMANA


As mulheres inventaram a agricultura, a cerâmica e a tecelagem e criaram a religião neolítica 
CAROL P. CHRIST em 11 de maio de 2020

Quando olho para os dois capítulos da história da deusa no meu livro Rebirth of the Goddess (1996), há muito pouco que eu mudaria, mas há novas evidências que acrescentaria.  Antes de abordar a questão, gostaria de destacar dois pontos importantes que introduzi ao discutir a história da deusa, que muitas vezes são ignorados por outras pessoas na sua investigação. O primeiro é que as mulheres foram as prováveis ​​inventoras de três novas tecnologias no início da era neolítica: a agricultura (porque eram colectoras de plantas e preparadoras de alimentos vegetais), a cerâmica (principalmente usada para armazenamento e preparação de alimentos) e a tecelagem (papel das mulheres em quase todas as sociedades tradicionais). A segunda é que a chamada "era da Deusa" não é um estágio da cultura mais "primitivo" ou "inconsciente" que precisava de ser substituído ou derrubado por culturas guerreiras patriarcais mais "evoluídas" ou mais "racionais".

Teóricos da cultura, como o psicólogo arquetípico Carl Jung, afirmam que "o feminino" representa os modos inconscientes e não-racionais de conhecer, como a intuição. Disto se segue para ele que a época da Deusa era a época do inconsciente. Isso soa bem a algumas mulheres e até a algumas feministas que experimentaram aspectos das tradições filosóficas, teológicas e científicas racionais como dogmáticas, autoritárias e erradas! Erradas sobre as mulheres e erradas quando excluem outras formas de conhecimento "racionais" que não sejam as estritamente definidas. No entanto, existem razões importantes para rejeitar a teoria de Jung.

A teoria de que culturas mais “femininas” ou pré-patriarcais anteriores são inconscientes ou pré-racionais foi usada por Jung e seus seguidores para justificar a destruição de culturas anteriores por grupos guerreiros patriarcais, a fim de permitir que a humanidade desenvolvesse os chamados modos racionais de pensar identificados como "masculinos". O fato dos homens considerados racionais dessas culturas serem guerreiros, subordinarem as mulheres, tomarem terras alheias e escravizarem outros seres humanos raramente é considerado como sendo algo contrário à sua suposta superioridade. Além disso, a teoria de que as culturas da Deusa pré-patriarcais do Neolítico podem ser categorizadas como inconscientes de forma alguma explica as invenções tecnológicas que definem a era neolítica. As mulheres não acordaram uma manhã com a intuição de que, se plantassem sementes e as regassem, as colheitas cresceriam. A invenção da agricultura envolveu um longo processo de observação e teste. As mulheres também não inventaram recipientes quando inconscientemente observaram serpentes enroladas ou inventaram cozer a cerâmica no fogo quando acidentalmente uma panela caiu numa fogueira. Essas coisas podem ter acontecido, mas elas só teriam levado à invenção da cerâmica se alguém "pensasse" no que havia ocorrido e tivesse tomado uma decisão consciente de testar as ideias e depois repetir o processo até ao seu aperfeiçoamento. O mesmo se aplica à ideia ainda mais contra-intuitiva de que a lã ou o linho podem ser fiados, isto é, transformados em fios e que destes se pode produzir tecidos. A invenção da agricultura, cerâmica e tecelagem surgiu através de longos processos de observação da natureza (observação científica) e tentativa e erro (experimentação científica). Provavelmente, a intuição estava envolvida (como os cientistas modernos estão cada vez mais admitindo nas suas próprias descobertas), mas foi complementada pelo que devemos chamar de pensamento racional e métodos científicos. As mulheres nunca estiveram "atoladas" no inconsciente ou "limitadas" a maneiras não-racionais de conhecer. Sempre usámos maneiras racionais e não racionais de conhecer, a fim de melhorar as condições de vida para nós e para as nossas famílias.

O fato das mulheres serem as possíveis inventoras da agricultura, cerâmica e tecelagem tem implicações importantes para o entendimento da religião neolítica. As mulheres teriam codificado as técnicas que descobriram na música, na história e na dança, a fim de transmitir os seus conhecimentos às  gerações seguintes. (“É assim que plantamos as sementes, plantamos as sementes…”). Em outras palavras, as mulheres não foram apenas as inventoras da agricultura, da cerâmica e da tecelagem, mas também as criadoras dos ritos religiosos relacionados com as suas invenções - como rituais de plantio e  de colheita - isso teria sido central nas culturas neolíticas. Se as mulheres inventaram a agricultura, a cerâmica e a tecelagem, é difícil acreditar (como geralmente se supõe) que padres ou xamãs do sexo masculino foram os principais criadores da religião neolítica. Embora eu acreditasse que as mulheres  foram as criadoras da religião neolítica quando escrevi Rebirth, estou ainda mais certa disso agora. Nos anos 30, Marija Gimbutas gravou mais de 5000 canções folclóricas no interior da Lituânia, muitas delas cantadas apenas por mulheres, e a maioria delas relacionadas com plantio e colheita, nascimento e casamento. Pesquisas em sociedades matriarcais vivas, como Minangkabau e Mosuo, mostram que as mulheres orquestram e transmitem rituais importantes relacionados com o plantio, nascimento e maioridade. Muitos desses rituais envolvem alimentos e roupas especiais, um reflexo e uma celebração do trabalho e da inteligência das mulheres.

Excerto do novo prefácio para leitoras/es coreanas/os da próxima tradução coreana de Rebirth of the Goddess.


Carol P. Christ é uma escritora, activista e educadora feminista e ecofeminista internacionalmente conhecida em vias de se mudar para mudar para Heraklion, em Creta. Os livros recentes de Carol são: Goddess and God in the World: Conversations in Embodied Theology e A Serpentine Path: Mysteries of the Goddess.


 Imagens: Creta