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quarta-feira, 20 de julho de 2022

Antigas Histórias da Deusa - Mitos ou Verdades Culturais, Religiosas e Espirituais?

 


Os antigos acadianos deixaram escrito que a Deusa conhecida como Mami arrancou catorze pedaços de barro e transformou sete deles em mulheres e sete deles em homens. Ela criou a vida sobre a terra. No Daomé considerava-se que a Deusa conhecida como Mawu havia construído as montanhas e os vales, colocado o sol no céu, e que a vida na terra tinha sido criada por ela. Os textos chineses registam que a Deusa conhecida como Nu Kwa remendou a terra e os céus, quando estes foram despedaçados, e assim restaurou a harmonia e o equilíbrio no universo. Registos mexicanos revelam que a Deusa conhecida como Coatlicue viveu no alto de uma montanha, numa nuvem, e lá ela deu à luz a lua, o sol e todas as outras divindades. Hesíodo escreveu que a Deusa conhecida como Gaia deu à luz o céu e, acasalando-se com ele, deu à luz as outras divindades. Os textos sumérios dizem-nos que a Deusa conhecida como Nammu foi considerada a mãe que deu à luz o céu e a terra, e que Ela supervisionou a criação da vida por sua filha Ninmah. Os australianos explicam que é à Deusa conhecida como Kunapipi, que o nosso espírito retorna após a morte, permanecendo com Ela até ao renascimento seguinte. Nos hieróglifos egípcios, estava escrito que a Deusa conhecida como Au Sept era a mais antiga das antigas, Aquela da qual tudo proveio.

Deusa Chinesa Nu Kwa
Estas são apenas algumas imagens da mulher como divindade, força primordial da existência, como é concebida por várias culturas. Será completamente coincidência que a multiplicidade de relatos da mulher como divindade tenha sido classificada como “mitologia” em vez de como escritura sagrada e religiosa? Parece haver poucas pessoas nas sociedades ocidentais contemporâneas que sejam capazes ou estejam dispostas a perceber as histórias da criação e os relatos de divindades, que foram escritos em tabuletas de argila ou papiros por culturas antigas, como conceitos verdadeiramente “religiosos”... separados por geografia, cultura ou cronologia. Eles revelam contemplações espirituais e conceitos religiosos que se desenvolveram nessas culturas em todo o mundo, assim como as histórias das Escrituras Hebraicas se desenvolveram na sociedade primitiva, o Novo Testamento na sociedade cristã primitiva e o Alcorão na sociedade islâmica primitiva. Alguns afirmam que é uma certa qualidade “primitiva”, uma “irracionalidade” nos eventos e imagens, que definem um relato como mito. No entanto, quantas das pessoas que fazem essas afirmações e criam essas definições se referem ao relato da criação no livro de Gênesis, ao relato da abertura do Mar Vermelho, ou ao relato de Jesus andando sobre as águas e alimentando cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes como mitologia? Todos esses relatos espirituais são experiências e expressões das culturas do seu tempo. O que antes era desconsiderado como “mito” precisa de ser reivindicado como verdade cultural, religiosa e espiritual.
 
Texto elaborado por Jennifer Murphy, @primalwaters, com base no trabalho de Merlin Stone (1984) Ancient Mirrors of Womanhood (Antigos Espelhos da Feminilidade)  

Tradução de Luiza Frazão

Imagem 1: Grupo de antigas representações da Deusa provenientes da Síria, terceiro e segundo milénio antes da nossa era.

Imagem 2: Nu Kwa (clique sobre a imagem) 


terça-feira, 5 de julho de 2022

Mulheres Fiandeiras e Tecedeiras: Bruxas e Pagãs, por Max Dashu

 Uma Revisão

POR CAROL P. CHRIST

 

Witches and Pagans: Women in European Folk Religion 700-1000, de Max Dashu, desafia a suposição de que a Europa foi totalmente cristianizada em poucos séculos, como nos dizem os historiadores tradicionais. A maioria de nós aprendeu que, não apenas a Europa se tornou cristã muito rapidamente, como também que os europeus estavam mais do que dispostos a adotar uma nova religião que era “superior” ao “paganismo” em todos os sentidos. Leitoras/es cuidadosas/os do importante novo trabalho de Dashu serão desafiadas/os a rever os seus pontos de vista. Quando os 15 volumes completos da série projetada forem impressos, os historiadores podem ser forçados a baixar a cabeça de vergonha. Isso, claro, pressupõe que os estudiosos lerão o trabalho de Dashu. É mais provável que a ignorem, mas mais cedo ou mais tarde – atrevo-me a esperar – a verdade virá à tona.

A história foi escrita pelos vencedores – no caso da Europa por homens cristãos de elite. Esses homens podem ter querido acreditar que os seus pontos de vista eram amplamente aceites, mas Dashu sugere que não. Combinando registos artísticos e arqueológicos, Dashu descobre (para dar um exemplo) que imagens da Mãe Terra amamentando uma cobra estão longe de ser incomuns e podem até ser encontradas como ilustrações em documentos e monumentos cristãos. Os clérigos enfurecem-se contra as pessoas – principalmente as mulheres – que continuam a visitar poços sagrados e árvores sagradas e a praticar rituais de adivinhação e cura invocando poderes pagãos. Parafraseando Shakespeare: “Acho que o clérigo protesta demais”. Se essas coisas não acontecessem e não acontecessem com frequência, não haveria necessidade de condená-las. Usando estas pistas, Dashu fornece novas leituras intrigantes da coletânea de poemas Edda e das sagas nórdicas.

Ler este livro é como abrir uma caixa cheia de joias deixadas para nós por ancestrais que nem sabíamos que tínhamos. O grande número de factos e sugestões de factos é esmagador. A própria Dashu é a primeira a admitir que ainda não juntou todas as peças numa nova e abrangente história da Europa. Ainda assim, é difícil negar que, se o seu trabalho for levado a sério, é exatamente isso que os outros serão inspirados a fazer.

Para mim, a parte mais interessante deste livro são as novas informações sobre os rituais ligados à fiação e à tecelagem. Há muito sei que as mulheres foram responsáveis ​​por três invenções que marcaram a entrada da humanidade no Neolítico ou na Nova Idade da Pedra. Estas são a invenção da agricultura, a invenção da fiação e da tecelagem e a invenção da cerâmica cozida. Há muito entendo que essas invenções envolvem a descoberta de mistérios de transformação: sementes em plantas comestíveis; lã ou linho em fios e em tecidos; barro, pela ação do fogo, em potes resistentes.

Os primeiros trabalhos de Marija Gimbutas sobre as canções rituais de plantio e colheita das mulheres de sua terra natal, a Lituânia, demonstraram que as mulheres continuaram a transmitir os “segredos” da agricultura de geração em geração por milhares de anos. Embora eu estivesse ciente de que a invenção da tecelagem pelas mulheres era lembrada na tradição grega posterior das “Três Parcas”, não tinha uma imagem clara das mulheres transmitindo os “segredos” da fiação e tecelagem por meio de rituais e canções.

As mulheres fiam e tecem juntas, o seu trabalho emoldurado pelas árvores da vida.

Os primeiros capítulos de Bruxas e Pagãos preenchem essa lacuna. As nossas ancestrais europeias não apenas se sentaram e continuaram com o trabalho de fiação e tecelagem, como invocavam os poderes femininos – deusas, ancestrais e espíritos – quando começaram a girar e usaram as suas rocas (varas de madeira ou varas que seguravam o linho ou lã não fiado) como ferramentas de adivinhação e varinhas mágicas. (Aqui está uma ideia: por que não substituir as espadas e facas rituais por uma roca?) Os sacerdotes castigavam as mulheres por invocarem divindades não-cristãs enquanto teciam e por amarrar símbolos pagãos nos seus teares. Certa vez, enquanto observava um grupo de velhas gregas cardando lã, disseram-me que “as nossas mães” ensinaram-nos como fazer isso. Gostaria de ter-lhes perguntado se o ensino era por meio de música, mas com certeza que era.

Uma imagem mais clara começa a surgir: as mulheres preservaram mistérios antigos que celebravam os poderes femininos de criatividade enquanto realizavam as tarefas do quotidiano. Não foi tão fácil acabar com essas práticas, porque as mulheres entendiam que as suas canções e rituais eram essenciais para o florescimento contínuo da vida.

Obrigada, Max, pelo seu trabalho brilhante. Que ele mude a forma como vemos o mundo!


BIO: Carol P. Christ (1945-2021) foi uma escritora, ativista e educadora feminista e ecofeminista internacionalmente conhecida. O seu trabalho continua por meio da sua fundação sem fins lucrativos, o Instituto Ariadne para o Estudo do Mito e do Ritual.

Texto original:

https://feminismandreligion.com/2022/07/04/the-legacy-of-carol-p-christ-weaving-and-spinning-women-witches-and-pagans-by-max-dashu-a-review/