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sábado, 15 de outubro de 2022

Uma História Secreta e Simbólica das Romãs e a sua relação com a mito de Deméter e Perséfone

Perséfone, Dante Gabriel Rossetti
Kate Lebo:

Abrir uma é como levantar a tampa duma caixa de joias

 

Quando Perséfone volta para sua mãe, o submundo ainda está nela. Numa versão dessa reunião mítica, Yannis Ritsos escreve:

Eu ouvi as vossas vozes chamarem por mim;

e meu nome era estranho; 

e os meus amigos eram estranhos; 

estranha a luz superior com o quadrado, branco puro das casas,

os frutos carnudos, multicoloridos, pretensiosos e insolentes. . .

Perséfone viu as mortas e os mortos, casou-se com o seu rei, comeu três ou quatro ou sete bagos da sua romã. Sua mãe, a deusa da colheita Deméter, tendo sido esmagada pela dor, recusou-se a permitir que novas colheitas crescessem até que a sua filha lhe fosse devolvida. Os e as mortais ficaram famintos e até os deuses temeram que ninguém sobrevivesse para lhes fazer oferendas. Em outra versão do mito, Zeus foi convencido a fazer com que Hades devolvesse Perséfone.

Deméter, entretanto, recebeu em casa uma rapariga mudada, enrugada e assustadora, inquieta no império verde de sua mãe. Uma rapariga casada que ouve e fala dum mundo que Deméter não consegue entender. “A voz é mais pálida do que os lábios que deixa”, diz Deméter na releitura de Edith Wharton, a sua alegria transformando-se em confusão.

As romãs são frutas incomuns, “não mais do que um armário de sementes suculentas”, como Jane Grigson as descreve. Poetas são conhecidos por comparar esses bagos a joias. Abrir uma romã parece ser um pouco como levantar a tampa duma caixa de joias, na expectativa, senão na sensação – a menos que alguém abra uma caixa de joias numa postura defensiva –  de  antecipar um borrifo de vermelho. Dentro da casca dividida, porém, encontra-se um padrão ornamentado, reluzente e comestível.

De acordo com a tradição judaica, a romã contém 613 sementes, uma para cada mitsvá. Por milénios, em toda a Europa, Pérsia e Ásia, nas tradições budista, islâmica, judaica e cristã, as romãs foram invocadas como símbolo de fertilidade e às vezes esmagadas em câmaras nupciais para incentivar o nascimento de muitas crianças. Em O Unicórnio em Cativeiro, uma tapeçaria medieval europeia, que pode ser vista no Met Cloisters, em Manhattan, um unicórnio senta-se numa pastagem cercada sob uma romãzeira. Ele parece contente em cativeiro, um símbolo de fertilidade e casamento e da fertilidade do casamento duma alma com Cristo. O unicórnio parece estar sangrando das feridas da caçada que o acorrentou àquela árvore. Todavia, numa inspeção mais apurada, verificamos que as feridas não sangram – elas choram sementes. O sangue é o sumo da romã.

A palavra “granada” vem de “romã”, e é assim chamada pelo modo como uma granada dissemina estilhaços imitando a explosão propagadora de sementes duma romã ao ser esmagada.

As sementes de romã têm a forma de incisivos — gordas numa extremidade, onde um rubor de sangue se acumula, estreitando-se na ponta translúcida, onde a semente poderia, se fosse um dente real, enraizar na mandíbula. Se acreditarmos na Doutrina das Assinaturas – a ideia de que Deus escreveu uma linguagem nas plantas que podemos ler para identificar os nossos remédios –, essa forma significa que as romãs podem aliviar doenças orais. “Uma infusão forte cura úlceras na boca e na garganta e fixa os dentes”, escreveu Culpeper.

É estranho para nós agora esse tipo de antropomorfização que desmembra as plantas em partes humanas em vez de lhes dar personalidades humanas – reparadores de dentes em forma de dente. A Doutrina das Assinaturas fazia parte da visão de mundo pela qual as primeiras e os primeiros médicas, herbalistas e boticárias transformavam um organismo num recurso medicinal específico, uma alquimia que nós, capitalistas de hoje, certamente entendemos. “Cada planta é uma estrela terrestre”, como descreve Agnes Arber na sua história das ervas de 1912, “e cada estrela é uma planta espiritualizada”. O marketing moderno ignora a Doutrina das Assinaturas e vende o suco de romã como um elixir da juventude, com promessas antioxidantes que ficam apenas um pouco aquém de ressuscitarem os mortos e as mortas.

Os taninos no suco de romã, como no bom vinho, equilibram o ácido e o açúcar e adicionam uma sensação de substância, como se eu estivesse comendo algo da terra.

As romãs representam a fertilidade, mas também uma pausa na fertilidade — no mito e na vida.

No mito, Deméter lamenta o desaparecimento da sua filha deixando as colheitas morrerem. Ela abandona os seus deveres e caminha entre as e os mortais disfarçada no tipo de velha que pode cuidar das crianças na corte. Nada vai crescer até que sua filha retorne. E mesmo depois de Perséfone voltar para casa, ela comera a comida dos mortos e das mortas e deve voltar ao Hades por um quarto ou um terço ou metade do ano, provocando outro inverno. Esse ciclo de morte e renascimento torna Deméter e Perséfone empáticas com as e os mortais como nenhuma outra divindade. “Na sua dor e na hora da morte”, escreve Edith Hamilton na sua antologia de mitos gregos de 1940, “as mulheres e os homens podiam recorrer à compaixão da deusa que sofria e da deusa que morria”.

As romãs representam a fertilidade, mas também uma pausa na fertilidade — no mito e na vida. Na Grécia antiga, Dioscorides recomendou sementes e casca de romã como controle de natalidade. “Escritos médicos indicam que a romã foi administrada como um supositório”, escreve John M. Riddle em Eve’s Herbs – não oralmente, como o mito pode levar-nos a concluir. Ele relata que, em 1933, as tamareiras foram objeto da primeira experiência que encontrou compostos estrogénicos em plantas – a primeira confirmação de que a tradição de controle da natalidade à base de plantas tinha uma base biológica e cientificamente mensurável (embora os resultados da experiência não tenham sido duplicados e confirmados por pares até 1966). Experiências posteriores, nas décadas de 1970 e 1980, sobre os poderes contraceptivos das plantas, descobriram que ratos fêmeas alimentados com romãs e emparelhados com ratos machos que não foram alimentados com romãs experimentaram uma queda de 72% na fertilidade. Em cobaias, a queda foi de 100%. As sementes, raízes e planta inteira não tiveram efeito; o composto estrogénico estava no fruto — especificamente, na polpa ao redor da semente. Após 40 dias sem a dieta da romã, a fertilidade dos roedores voltou.

Em algumas versões, Zeus instrui Perséfone a não comer enquanto estiver no submundo. Quando Hermes a recupera, ela está faminta. Hades oferece-lhe a sua romã.

O Regresso de Perséfone
Frederic Leighton

Em Eating in the Underworld (Comendo no Submundo), de Rachel Zucker, Perséfone deixa Deméter por escolha própria,

Longe de onde o

corpo da minha mãe é

em toda parte,

uma jornada que imita o distanciamento maduro (mas ainda doloroso) da filha em relação à  mãe, que, porque a mãe está em toda parte, deve ir ao Hades - um deus e um lugar - para se libertar.

Só uma mãe poderia fabricar tal história:

a terra se abriu e me puxou para baixo.

 Nesta versão do mito, as romãs representam a persistência da vida, mas também criam o vínculo matrimonial que rebaixa a primazia das relações mãe-filha e interrompe a fertilidade. Winter, nesta história, observa a sua filha crescer e tornar-se alguém que não consegue entender. É fugir da sua mãe para que possa conhecer-se sem sentir-se esmagada pela sua fertilidade e amor.

O Inverno também significa descanso. Deméter chora e recusa-se a trabalhar. Com a fertilidade em pausa, um agricultor pode descansar da agitação de plantar, cuidar, colher, vender, preservar e armazenar antes de plantar novamente.

Lembre-se, quando me vê,

Perséfone diz,

Estou dentro de quem eu era.

 A terra onde cultivamos as nossas colheitas é a terra onde enterramos os nossos corpos. As romãs representam essa mesma contradição, esse ciclo completo: vida e morte e vida de novo, voltando de novo, voltando transformada.

De O Livro dos Frutos Difíceis (The Book of Difficult Fruit), de Kate Lebo (traduzido e adaptado/remanejado por Luiza Frazão)

https://lithub.com/a-secret-symbolic-history-of-pomegranates/