Perséfone, Dante Gabriel Rossetti |
Abrir uma é como levantar a tampa duma caixa de joias
Quando Perséfone volta para sua mãe, o submundo ainda está
nela. Numa versão dessa reunião mítica, Yannis Ritsos escreve:
Eu ouvi as vossas vozes chamarem por mim;
e meu nome era estranho;
e os meus amigos eram estranhos;
estranha a luz superior com o quadrado, branco puro das casas,
os frutos carnudos, multicoloridos, pretensiosos e
insolentes. . .
Perséfone viu as mortas e os mortos, casou-se com o seu rei, comeu três ou quatro ou sete bagos da sua romã. Sua mãe, a deusa da
colheita Deméter, tendo sido esmagada pela dor, recusou-se a permitir que novas
colheitas crescessem até que a sua filha lhe fosse devolvida. Os e as mortais ficaram
famintos e até os deuses temeram que ninguém sobrevivesse para lhes fazer
oferendas. Em outra versão do mito, Zeus foi convencido a fazer com que Hades devolvesse Perséfone.
Deméter, entretanto, recebeu em casa uma rapariga mudada,
enrugada e assustadora, inquieta no império verde de sua mãe. Uma rapariga
casada que ouve e fala dum mundo que Deméter não consegue entender. “A voz é
mais pálida do que os lábios que deixa”, diz Deméter na releitura de Edith
Wharton, a sua alegria transformando-se em confusão.
As romãs são frutas incomuns, “não mais do que um armário de
sementes suculentas”, como Jane Grigson as descreve. Poetas são conhecidos por
comparar esses bagos a joias. Abrir uma romã parece ser um pouco como levantar a
tampa duma caixa de joias, na expectativa, senão na sensação – a menos que
alguém abra uma caixa de joias numa postura defensiva – de antecipar um borrifo de vermelho. Dentro da
casca dividida, porém, encontra-se um padrão ornamentado, reluzente e comestível.
A palavra “granada” vem de “romã”, e é assim chamada pelo
modo como uma granada dissemina estilhaços imitando a explosão propagadora de
sementes duma romã ao ser esmagada.
As sementes de romã têm a forma de incisivos — gordas numa
extremidade, onde um rubor de sangue se acumula, estreitando-se na ponta
translúcida, onde a semente poderia, se fosse um dente real, enraizar na
mandíbula. Se acreditarmos na Doutrina das Assinaturas – a ideia de que Deus
escreveu uma linguagem nas plantas que podemos ler para identificar os nossos
remédios –, essa forma significa que as romãs podem aliviar doenças orais. “Uma
infusão forte cura úlceras na boca e na garganta e fixa os dentes”, escreveu
Culpeper.
É estranho para nós agora esse tipo de antropomorfização
que desmembra as plantas em partes humanas em vez de lhes dar personalidades
humanas – reparadores de dentes em forma de dente. A Doutrina das Assinaturas
fazia parte da visão de mundo pela qual as primeiras e os primeiros médicas,
herbalistas e boticárias transformavam um organismo num recurso medicinal
específico, uma alquimia que nós, capitalistas de hoje, certamente entendemos.
“Cada planta é uma estrela terrestre”, como descreve Agnes Arber na sua
história das ervas de 1912, “e cada estrela é uma planta espiritualizada”. O
marketing moderno ignora a Doutrina das Assinaturas e vende o suco de romã como um elixir da juventude, com promessas antioxidantes
que ficam apenas um pouco aquém de ressuscitarem os mortos e as mortas.
Os taninos no suco de romã, como no bom vinho, equilibram o
ácido e o açúcar e adicionam uma sensação de substância, como se eu estivesse
comendo algo da terra.
As romãs representam a fertilidade, mas também uma pausa na fertilidade — no mito e na vida.
No mito, Deméter lamenta o desaparecimento da sua filha deixando as colheitas morrerem.
Ela abandona os seus deveres e caminha entre as e os mortais disfarçada no tipo de velha que
pode cuidar das crianças na corte. Nada vai crescer até que sua filha retorne.
E mesmo depois de Perséfone voltar para casa, ela comera a comida dos mortos e das mortas e
deve voltar ao Hades por um quarto ou um terço ou metade do ano, provocando
outro inverno. Esse ciclo de morte e renascimento torna Deméter e Perséfone
empáticas com as e os mortais como nenhuma outra divindade. “Na sua dor e na hora
da morte”, escreve Edith Hamilton na sua antologia de mitos gregos de 1940, “as
mulheres e os homens podiam recorrer à compaixão da deusa que sofria e da deusa
que morria”.
As romãs representam a fertilidade, mas também uma pausa na
fertilidade — no mito e na vida. Na Grécia antiga, Dioscorides recomendou
sementes e casca de romã como controle de natalidade. “Escritos médicos indicam
que a romã foi administrada como um supositório”, escreve John M. Riddle em
Eve’s Herbs – não oralmente, como o mito pode levar-nos a concluir. Ele relata
que, em 1933, as tamareiras foram objeto da primeira experiência que encontrou
compostos estrogénicos em plantas – a primeira confirmação de que a tradição de
controle da natalidade à base de plantas tinha uma base biológica e
cientificamente mensurável (embora os resultados da experiência não tenham sido
duplicados e confirmados por pares até 1966). Experiências posteriores, nas
décadas de 1970 e 1980, sobre os poderes contraceptivos das plantas, descobriram
que ratos fêmeas alimentados com romãs e emparelhados com ratos machos que não
foram alimentados com romãs experimentaram uma queda de 72% na fertilidade. Em
cobaias, a queda foi de 100%. As sementes, raízes e planta inteira não tiveram
efeito; o composto estrogénico estava no fruto — especificamente, na polpa ao
redor da semente. Após 40 dias sem a dieta da romã, a fertilidade
dos roedores voltou.
Em algumas versões, Zeus instrui Perséfone a não comer
enquanto estiver no submundo. Quando Hermes a recupera, ela está faminta. Hades
oferece-lhe a sua romã.
O Regresso de Perséfone Frederic Leighton |
Em Eating in the Underworld (Comendo no Submundo), de Rachel Zucker, Perséfone deixa Deméter por escolha própria,
Longe de onde o
corpo da minha mãe é
em toda parte,
uma jornada que imita o distanciamento maduro (mas ainda doloroso) da filha em relação à mãe, que, porque a mãe está em toda parte, deve ir ao Hades - um deus e um lugar - para se libertar.
Só uma mãe poderia fabricar tal
história:
a terra se abriu e me puxou
para baixo.
O Inverno também significa descanso. Deméter chora e recusa-se
a trabalhar. Com a fertilidade em pausa, um agricultor pode descansar da
agitação de plantar, cuidar, colher, vender, preservar e armazenar antes de
plantar novamente.
Lembre-se, quando me vê,
Perséfone diz,
Estou dentro de quem eu era.
De O Livro dos Frutos Difíceis (The Book of Difficult
Fruit), de Kate Lebo (traduzido e adaptado/remanejado por Luiza Frazão)
https://lithub.com/a-secret-symbolic-history-of-pomegranates/
Sem comentários:
Enviar um comentário