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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O Caldeirão de Cerridwen: Roubar da Velha Mãe Universo

 

Por Kelle ban Dea

 A história de como Cerridwen, a deusa das bruxas, prepara uma poção mágica cheia de awen (inspiração) que é acidentalmente ingerida pelo jovem Gwion Bach, é muito apreciada em todo o mundo ocidental, especialmente pelos neo-druidas. Gwion Bach renasce então como Taliesin, o maior bardo da Grã-Bretanha. É um típico conto de heróis, com Cerridwen como musa e iniciadora.

Ou será que é? Este conto sempre me deixou um sabor estranho na boca, e quando li recentemente The Broken Cauldron (O Caldeirão Quebrado) de Lorna Smithers, percebi porquê. Na versão mais antiga que temos deste conto, Gwion Bach não prova acidentalmente o awen. Ele rouba-o.

E depois o caldeirão parte-se, e o resto da poção derrama-se pelo chão e envenena a terra.

Esta versão faz lembrar outros contos do mundo “celta”, em que os caldeirões ou cálices das mulheres mágicas são roubados ou partidos, o poder das mulheres é afetado por roubo ou violação e a terra fica a sofrer com isso, geralmente por inundação ou, pelo contrário, por seca. É um tema recorrente, que as ecofeministas consideram simbólico tanto da opressão do patriarcado sobre as mulheres como da exploração da Terra. Estas mulheres são representantes da Deusa da Soberania, que personifica a terra e determina quem está apto a governá-la. Um rei tem de fazer um pacto com a deusa para proteger a terra e o seu povo.

Só que, contam os mitos, a dada altura os reis e os “heróis” aperceberam-se de que podiam simplesmente violar e roubar, e assim as mulheres retiram-se para o Outro Mundo e a terra fica desolada.

Estes motivos parecem tão óbvios que não consigo compreender por que razão, durante tanto tempo, foram lidos como contos de heróis e não exatamente o oposto - contos que nos dizem que os heróis são muitas vezes, de facto, homens violentos e que a glória é normalmente sinónimo de conquista. Alguém sai sempre magoado, ou magoada, mas são os vencedores que contam e, durante demasiado tempo, interpretam as histórias.

Prefiro a interpretação de Smithers. Ela refere-se a Cerridwen como “uma deusa que passei a conhecer como a Velha Mãe Universo”. Tradicionalmente, o caldeirão simboliza inspiração, sabedoria e renascimento. Mas a maioria das interpretações deste conto centra-se nas façanhas de Taliesin e ignora as consequências do caldeirão partido e da magia roubada.

O caldeirão roubado ou partido volta a aparecer num poema mítico galês - alegadamente da autoria do próprio Taliesin - chamado “Os Despojos de Annwfn”. Annwfn é o Outro/ Submundo celta, onde se encontra um caldeirão mágico de inspiração e renascimento, cuidado por nove sacerdotisas. Taliesin acompanha o famoso herói, o Rei Artur, e os seus guerreiros numa incursão a Annwfn para roubar o caldeirão. Segue-se uma matança e um derramamento de sangue. Apenas sete homens regressam a casa. Mas tudo vale a pena, porque os heróis lendários têm o seu prémio.

Na história de Branwen, sobre a qual já escrevi aqui anteriormente, o caldeirão do renascimento é roubado a uma mulher gigante e entregue a um rei que o utiliza para ressuscitar guerreiros caídos em guerreiros silenciosos e mortos-vivos. Máquinas de matar. Isto faz claramente parte de um mito antigo, pois vemos este motivo no artefacto do século I d.C., o Caldeirão de Gundestrup (embora aqui os guerreiros estejam provavelmente a renascer no Outro Mundo e não como zombies assassinos). O caldeirão do renascimento é antigo, mas a humanidade corrompeu-o. Derramou uma poção envenenada sobre a terra.

Mais tarde, no conto, o brutal meio-irmão de Branwen, Efnisien, mata o seu filho bebé atirando-o para o fogo e depois, presumivelmente num acesso de remorsos, atira-se ao caldeirão, partindo-o para que deixe de poder ser utilizado. Este é talvez o mais brutal de todos os contos, um que me faz sempre estremecer quando o leio.

As nove donzelas que cuidam do caldeirão são também um motivo recorrente, embora nos contos arturianos posteriores se tenham transformado em nove bruxas, e são (naturalmente) abatidas pelo herói, como no conto de Peredur.

Se o caldeirão do renascimento e da inspiração representa o ventre da Deusa, como a maioria parece interpretá-lo, ou o próprio Feminino, então o que significa o facto de os nossos supostos heróis o terem roubado e quebrado? Que os nossos contos heroicos pareçam completamente despreocupados com as consequências, mas que celebrem os seus protagonistas másculos? Apenas o conto de Branwen parece apresentar o verdadeiro horror sem restrições, e talvez não seja surpreendente que os estudiosos tenham teorizado que este foi, de facto, escrito pela primeira vez por uma mulher.

Voltando à própria Cerridwen, creio que precisamos de novas interpretações, como a de Smithers, que, de facto, nos devolvam ao que é certamente o núcleo e a verdade deste conto. Cerridwen não é simplesmente uma bruxa-musa, cujo papel é inspirar e dar à luz o herói e depois desaparecer da narrativa; ela é a narrativa, a deusa que produz o awen e que é responsável pela morte e pelo renascimento. A própria Velha Mãe Universo.

Na verdade, o roubo da nossa humanidade não diminui a Velha Mãe Universo. Como é que isso pode acontecer? Ela continua a destruir estrelas, a dar à luz mundos e a criar vida. As galáxias continuarão a girar sem o nosso contributo. Os que prejudicamos somos nós próprios e o próprio ecossistema de que dependemos para sobreviver.

Aquilo que roubamos aos nossos descendentes.

E por isso temos de fazer o que pudermos para reparar o caldeirão, antes que sejamos deixados numa Terra Desolada mais uma vez.

 

[1] Smithers, Lorna The Broken Cauldron (2021) Ritona Press

 

Fonte:

https://feminismandreligion.com/2024/09/01/cerridwens-cauldron-stealing-from-old-mother-universe-by-kelle-ban-dea/

Imagem 1 - Cerridwen, arte de Wendy Andrew

Imagem 2 - O Caldeirão de Gundestrup, Wikipedia