Encontrei este texto entre o material que não foi seleccionado para o meu primeiro livro... Entretanto acho que, apesar de já tão repetidas, estas são ideias que considero muito válidas...
Para algumas pessoas parece muito
difícil compreenderem por que é tão importante que esta espiritualidade esteja
centrada apenas no feminino e na Deusa e não inclua também Deuses masculinos.
Acreditam estarmos assim a fomentar o mesmo desequilíbrio criado pelo
patriarcado quando excluiu a Deusa e proibiu às mulheres o acesso directo ao
sagrado. Para estas pessoas, deveríamos estar a praticar uma espiritualidade
integrada, digamos, com igual enfoque nos dois géneros da divindade e não a
enfatizar apenas um aspecto. Pessoalmente, compreendo perfeitamente este ponto
de vista e esta preocupação, que vejo muito em algumas mulheres, que parecem
pouco à vontade por vezes, como se sentissem que estão a abandonar os homens
quando os deviam estar a apoiar. Normalmente conhecem inúmeros homens que
também se sentem vítimas do sistema patriarcal e parece-lhes injusto exclui-los
ou deixá-los em segundo lugar. Para onde deverão ir estes homens tão bem
intencionados e que se sentem muito melhor com as mulheres do que no mundo dos
homens, e que ao mesmo tempo precisam de cultuar, de se identificar e receber
força dos Deuses à semelhança dos quais foram feitos, tal como nós mulheres fomos
feitas à semelhança da Deusa?
Admito que a questão seja
complexa, e antes de mais é bom não esquecer que existem grupos pagãos que
incluem e cultuam Deusas e o Deuses na sua Roda do Ano e portanto parece-me que
quem não se identifica com uma espiritualidade apenas focada no Feminino, quem
não sente a sua necessidade e vê aí apenas mais desequilíbrio a acrescentar ao
desequilíbrio, tem outras opções. Digo isto logo em primeiro lugar porque a
espiritualidade da Deusa, e a pagã em geral, e outras como o Budismo, ao que
sei, não é, não são, proselitistas, ninguém tenta converter ninguém.
Para mim, entretanto, faz todo o
sentido uma espiritualidade centrada apenas na Deusa. Certa vez alguém terá
perguntado a Kathy Jones, fundadora do Templo da Deusa de Glastonbury, por que
nunca falava em Deus, ao que ela terá respondido que não o faria enquanto
houvesse no mundo um tal desequilíbrio entre a Deusa e o Deus. Completamente de
acordo. Já tínhamos visto por que é que as mulheres precisam da Deusa e agora
vou justificar do meu ponto de vista por que considero tão importante para elas
ficarem a sós com a sua Deusa. Quando digo “a sós” não significa que não haja
homens neste movimento, conheço vários sacerdotes da Deusa neste movimento,
nenhuma porta lhes está vedada, que fique bem claro. Nem sequer são silenciados
e apenas remetidos para funções subalternas, embora a sua postura seja discreta
por compreenderem o que está em causa e a intenção e as necessidades das
mulheres. Admiro e amo esses homens que estão connosco a apoiar-nos e
rendo-lhes aqui a minha sincera homenagem. Essa intenção e necessidades das
mulheres, em primeiro lugar, como eu compreendo a questão, consistem antes de
mais em criar um espaço de confiança e de cura para as feridas, para o corpo de
dor do Feminino, criado pela violência patriarcal sobre a mulher a todos os
níveis. Níveis que vão do mais óbvio ao mais subtil. Ao nível cultural, ser
mulher ou ser homem são programações, digamos, muito diferentes, que implicam
papéis diferentes, com níveis de liberdade muito diferentes. Às mulheres foram
consignados papéis que se limitavam à esfera da intimidade, da família,
enquanto os papéis mais sociais foram reservados aos homens. A mulher,
tradicionalmente, lida com o interior e o homem com o exterior, para simplificar,
tendo-se as coisas extremado ao ponto de quem está apenas voltada para o
interior nada saber nem ter a dizer sobre o que se passa no exterior, acabando
por perder poder nas grandes decisões que depois determinam como se vive também
na esfera íntima. Isto terá demorado a acontecer mas aconteceu, embora agora
haja a sensação para muitas pessoas de que as coisas já não são assim, porque
as mulheres têm acesso a praticamente todos os cargos de poder. Menos a religião
e a alta finança. O que acontece, entretanto, é que as mulheres têm acesso a
uma estrutura de poder criada desde um ponto de vista masculino, tendo perdido
toda a noção do que seria um poder centrado na sua forma específica de ser
enquanto mulheres, seres que geram vida dentro do seu corpo e que por isso
mesmo foram desenhados para cuidar dela em primeiro lugar, o que não acontece
com o homem. Há toda uma diferença a nível biológico, hormonal, psíquico entre
os dois seres que determina diferentes posturas perante a vida. As mulheres,
por exemplo, em caso de ameaça, juntam-se, juntam as crianças, criam união para
se fortalecerem, enquanto os homens atacam. Nas mulheres foi identificado um
instinto muito especial designado por “instinto de cuidar” que é não apenas
usado com as suas crianças mas que se estende a quem precise, a quem se
encontre em situação de necessidade.
Ora, compreendemos que os poderes que regem
este mundo estão exactamente em contradição com estes princípios, esses poderes
não têm a marca feminina, a Mãe foi silenciada e colocada numa posição
subalterna. Basta vermos o que se passa na esfera do religioso, que é, como costuma
dizer por exemplo a Zsuzsanna Budapeste, a política no mais alto nível. Basta
atentarmos na posição da Virgem Maria na Igreja Católica, para percebermos como
Ela reflecte exactamente a posição das mulheres neste mundo de homens. Maria, que
foi perdendo atributos femininos na iconografia religiosa ao ponto de mais
parecer uma adolescente anoréctica, amputada dos seios e do ventre fecundo da
Grande Mãe criadora, não tem estatuto divino, e o seu papel é o de interceder
pelas suas filhas e filhos junto dum Deus implacável, demasiado importante e
ocupado para ter tempo para ninharias. É incrível perceber, se atentarmos na
Virgem Maria dos católicos, na Senhora de Fátima, que é onde é mais forte
actualmente o seu culto, como Ela espelha exactamente a posição das mulheres, das
mães, neste mundo, cuidando de filhas e filhos que são do pai, aguentando a
estrutura da Igreja, que sem Ela há muito já teria desaparecido, tal como sobre
as mulheres recai todo o trabalho de manter coesa e em funcionamento a
estrutura familiar, mas sempre subjugadas a uma autoridade que fala mais alto.
Ora esta é a programação que
conhecemos, por muito que estejamos conscientes, é de acordo com ela que
funcionamos. Temos inscrita em nós toda uma forma de ser, de nos vermos e de
vermos o outro (e a outra), e de com ele interagirmos, que seria bom mudarmos,
porque colocámos muito poder fora de nós, em mãos alheias. O pai precede a mãe
na nossa alma quando para o bem maior de todas e de todos, para maior segurança
da humanidade, deveria ser o contrário, porque e Mãe é que é a criadora e
portanto é quem está em melhor posição para agir de forma a proteger a vida. O
pai protege os seus interesses, preocupado em manter e aumentar o seu poder e o
seu domínio. O uso da palavra foi incentivado nos homens e interditado às
mulheres. Os primeiros apóstolos como S. Paulo ou Santo Agostinho tiveram o
cuidado de determinar que às mulheres fosse proibido o acesso ao púlpito. E
mais tarde a Inquisição destruiu tudo quanto restava do antigo poder das
mulheres, daquele que tiveram antes da instalação do domínio patriarcal.
Por muito que achemos que isto é
história antiga, vendo bem essa é a programação que subsiste na esfera mais
elevada do poder político, que é a igreja dominante na nossa cultura, onde as
mulheres continuam sem acesso ao púlpito, sem acesso directo ao sagrado embora
sejam elas quem enche as igrejas.
Essa interdição do uso público da
palavra e o aniquilamento cirúrgico do seu antigo poder remeteu as mulheres para
o silêncio e a invisibilidade. O medo de falar em público, de ser vista, de
exprimir a sua opinião, a sensação de nada ter a dizer de importante, de
inadequação a todos os níveis enfraqueceu a mulher de um modo que nenhum homem
pode sentir na sua própria pele. O que acontece com frequência quando homens e
mulheres interagem em grupos mistos é que temos dois tipos de participantes,
com posturas completamente diferentes em relação ao uso da palavra, à
auto-expressão e à capacidade de liderança. Por um lado temos aqueles que foram
estimulados a usar da palavra em público, os que estão habituados a ser ouvidos
e a comandar, não temendo a eventual ignorância sobre qualquer assunto, porque
é suposto que um homem saiba tudo de tudo. Do outro lado temos aquelas que
carregam toda uma história de silenciamento, de proibição do uso da palavra, de
desempoderamento, de sensação de irrelevância, de medo de não saber o
suficiente, de sensação de que a sua validação como ser humano vem através do
homem, do salvador masculino.
Sei que muitas pessoas mais jovens se insurgem
perante esta forma de ver as coisas, achando que já não é assim. Esta análise seria
justa nos anos sessenta, digamos, mas não em dois mil e tais. A minha
experiência como professora até 2011, entretanto, lamento, não me permite
concluir que tenha havido grande evolução. Pelo contrário, tive suspeitas de um
forte e preocupante retrocesso quando certa vez fui assistir com uma turma de
adolescentes a um debate entre as duas listas concorrentes à associação de
estudantes na escola onde dava aulas. Sobre o palco do pavilhão polivalente, onde
ia ter lugar o debate, constatei que na representação duma das listas não havia
qualquer rapariga. Ao indagar sobre a razão foi-me dito que sim que também havia
raparigas naquela lista mas que elas estavam com vergonha de subir ao palco…
Essa vergonha, essa falta de à
vontade para subir ao palco, essa sensação de irrelevância, de falta de poder, de
nada saber nem ter a dizer, essa herança feminina, continua portanto viva e
actuante. Como se cura? Do meu ponto de vista ela cura-se primeiro com a consciência
de que é algo de bem real, sem tentar negar o que é óbvio, como acontece tão
frequentemente, como se fosse algo de já resolvido e ultrapassado. E depois
cura-se criando circunstâncias seguras para as mulheres se exprimirem, para exprimirem
a sua criatividade, o seu talento, a sua forma particular de ser e de ver o
mundo, ligadas a um propósito maior que as faça sair da esfera da intimidade,
da família, onde estão limitadas, como que aprisionadas, ao serviço de valores
de cuja criação no fundo não participaram. Aliás, também é lugar-comum dizer-se
que nos países latinos por exemplo as mulheres têm muito poder na família, são
as super-mães, o que a meu ver é mais outra falácia. As mulheres usam e aplicam
o poder dos homens, agindo como regentes em nome do rei, não como as rainhas
que deveriam ser, exercendo um poder centrado no seu útero de grandes criadoras
e no seu coração.
UMA ZONA LIVRE DE PATRIARCADO
Basicamente todo e qualquer homem
para uma mulher é um representante do sistema patriarcal, quer ele queira quer
não, quer ele se regozije ou se entristeça com isso. Esta parece-me ser uma boa
base de trabalho a partir da qual poderemos agir no sentido de nos libertarmos, ambos os géneros, desta
programação, negar isto não nos fará avançar um milímetro.
Quando em 2011 assisti à primeira
Conferência da Deusa de Glastonbury, compreendi a importância das mulheres
criarem coisas por si mesmas, de se apresentarem ao mundo em seu próprio nome.
Ver ali grandes mulheres com a sua visão própria do mundo, existindo por sua
própria conta e risco, mulheres já meias lendárias, as nossas grandes heras do
presente, mulheres que nos servem de modelo, de inspiração para uma maneira de
ser verdadeiramente feminina, mestras, foi o melhor bálsamo que a minha alma já
experimentou neste mundo. Mulheres que eram, que são, criativas e exuberantes e
não mulherzinhas normalizadas, uniformizadas da cabeça aos pés, tanto na forma
como pensam e agem como na forma como se vestem e penteiam, sem liberdade para
irem mais além, para questionarem nada, prisioneiras, preocupadas apenas em
manter coeso um mundo fragmentado em pedaços, ferido de morte.
A experiência deste evento criado
por mulheres e para mulheres, com a ajuda e o apoio de alguns homens, diga-se, um
espaço seguro porque criado a partir da consciência das nossas debilidades e daquilo
que nos faz falta, uma zona livre de patriarcado, do pesado olhar do homem que
nos mantém numa determinada frequência, marcou para sempre a minha maneira de
estar no mundo. Era o nível seguinte, não mais o nível apenas da revolta, da
denúncia dum estado de coisas que nos diminui e torna infelizes, mas um espaço
de criação de algo de novo usando essa energia da indignação e da revolta. Que
fique bem claro o que eu penso sobre esta questão, a força para mudarmos o
mundo vem-nos da fúria, da raiva, da recusa em aceitarmos não poder viver
plenamente por nós mesmas, como direito à experiência e ao erro, a vida que nos
foi dada e de vermos o estado em que o mundo se encontra porque governado desde
um ponto em que o poder da Mãe e do Feminino foi abolido e mantido inoperante. Nesta
indignação e revolta está a força para criar outra realidade, ela não está em
mais lugar nenhum.
Estamos portanto no passo
seguinte da criação daquilo que queremos para nós. E queremos aquilo que nos
foi tirado e negado: uma Deusa à nossa imagem e semelhança, a Grande Deusa do
passado que por mais de 30 000 anos inspirou sociedades pacíficas e
sustentáveis. Queremos o poder da Mãe no mundo. O poder da Mãe dá-nos, por essa
experiência de milhares de anos, confiança absoluta.
É óbvio que há muitos homens que
não se revêm no patriarcado, que compreendem o nosso ponto de vista, que têm a
sua parte feminina muito activa, etc. Conheço alguns, convivi com grupos de Permacultura
e sei que existem homens com as melhores intenções, e não apenas aí, claro.
Acontece que por muito bem-intencionados que sejam esses homens, eles não
viveram a nossa história, eles não partilham o nosso corpo de dor, o deles, que
também existe, óbvio, é diferente. A experiência deles é outra. Eles não
carregam o fardo da culpa, da grande culpa da mulher.
Por outro lado, para nós, eles transporta toda essa carga
patriarcal, é impossível não olhar para eles e, mesmo que seja apenas de forma
inconsciente, não os ver como estando do lado de quem pode tudo, de quem
legitimamente pode usar da palavra, de quem espera de nós lealdade, apoio, de
quem tem condições de nos validar, de ser o nosso salvador… Um homem é muito
mais do que apenas uma pessoa, ele é todo um programa, assim como a mulher para
eles representa igualmente todo um programa.
Será que não existe outra solução
senão separarmo-nos, será que não podemos trabalhar lado a lado para tentar
ultrapassar estas questões, quebrar as imagens estereotipadas que temos de cada
um dos géneros? A minha opinião, o que eu sinto, é que precisamos de solidão
para nos conhecermos, as mulheres, solicitadas de todos os lados, ao serviço de
todos, precisam de solidão, de fazer outras coisas, de saber o que valem, do
que são capazes, de se apaixonar por uma causa, um projecto, em vez de quase
exclusivamente por pessoas. Elas precisam de saturar cada pontinho da sua alma
faminta de imagens, de símbolos e de mitos que lhes falem do feminino, precisam
da Deusa, da sua força e do seu poder.
Queridos homens, não sei de
vocês, mas as mulheres estão esvaídas, desnutridas, exauridas, intoxicadas por
uma cultura de pura violência de todas as formas possíveis contra a sua
essência e a sua alma. Isto é o que eu sinto e o que eu sei. E também sei que
vos amamos muito e não queremos desistir de vocês. Então por que não experimentam
também essa solidão para se conhecerem fora da programação patriarcal, por que
não se juntam entre vós, procurando saber quem são, o que querem, quais são as
vossas feridas, trazendo assim cura uns aos outros, àqueles que tal como cada
um de vós viveram as mesmas experiências, em vez de continuarem a querer que
essa cura venha duma mulher sem poder nem autoridade, esvaída, desnutrida,
insegura e assustada que ainda por cima vos aconchega o ego confiando na vossa
autoridade e vendo-vos como o salvador? A insalubridade desta situação,
convenhamos, exige no mínimo um bom arejamento.
©Luiza Frazão
Imagens: Conferências da Deusa Glastonbury e Sintra (2019)