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sexta-feira, 1 de maio de 2020

UM REGRESSO À DEUSA: POR QUE AS MULHERES PRECISAM DUMA ESPIRITUALIDADE CENTRADA NUMA DIVINDADE À SUA IMAGEM E SEMELHANÇA


Encontrei este texto entre o material que não foi seleccionado para o meu primeiro livro... Entretanto acho que, apesar de já tão repetidas, estas são ideias que considero muito válidas...  

Para algumas pessoas parece muito difícil compreenderem por que é tão importante que esta espiritualidade esteja centrada apenas no feminino e na Deusa e não inclua também Deuses masculinos. Acreditam estarmos assim a fomentar o mesmo desequilíbrio criado pelo patriarcado quando excluiu a Deusa e proibiu às mulheres o acesso directo ao sagrado. Para estas pessoas, deveríamos estar a praticar uma espiritualidade integrada, digamos, com igual enfoque nos dois géneros da divindade e não a enfatizar apenas um aspecto. Pessoalmente, compreendo perfeitamente este ponto de vista e esta preocupação, que vejo muito em algumas mulheres, que parecem pouco à vontade por vezes, como se sentissem que estão a abandonar os homens quando os deviam estar a apoiar. Normalmente conhecem inúmeros homens que também se sentem vítimas do sistema patriarcal e parece-lhes injusto exclui-los ou deixá-los em segundo lugar. Para onde deverão ir estes homens tão bem intencionados e que se sentem muito melhor com as mulheres do que no mundo dos homens, e que ao mesmo tempo precisam de cultuar, de se identificar e receber força dos Deuses à semelhança dos quais foram feitos, tal como nós mulheres fomos feitas à semelhança da Deusa?
Admito que a questão seja complexa, e antes de mais é bom não esquecer que existem grupos pagãos que incluem e cultuam Deusas e o Deuses na sua Roda do Ano e portanto parece-me que quem não se identifica com uma espiritualidade apenas focada no Feminino, quem não sente a sua necessidade e vê aí apenas mais desequilíbrio a acrescentar ao desequilíbrio, tem outras opções. Digo isto logo em primeiro lugar porque a espiritualidade da Deusa, e a pagã em geral, e outras como o Budismo, ao que sei, não é, não são, proselitistas, ninguém tenta converter ninguém.

Para mim, entretanto, faz todo o sentido uma espiritualidade centrada apenas na Deusa. Certa vez alguém terá perguntado a Kathy Jones, fundadora do Templo da Deusa de Glastonbury, por que nunca falava em Deus, ao que ela terá respondido que não o faria enquanto houvesse no mundo um tal desequilíbrio entre a Deusa e o Deus. Completamente de acordo. Já tínhamos visto por que é que as mulheres precisam da Deusa e agora vou justificar do meu ponto de vista por que considero tão importante para elas ficarem a sós com a sua Deusa. Quando digo “a sós” não significa que não haja homens neste movimento, conheço vários sacerdotes da Deusa neste movimento, nenhuma porta lhes está vedada, que fique bem claro. Nem sequer são silenciados e apenas remetidos para funções subalternas, embora a sua postura seja discreta por compreenderem o que está em causa e a intenção e as necessidades das mulheres. Admiro e amo esses homens que estão connosco a apoiar-nos e rendo-lhes aqui a minha sincera homenagem. Essa intenção e necessidades das mulheres, em primeiro lugar, como eu compreendo a questão, consistem antes de mais em criar um espaço de confiança e de cura para as feridas, para o corpo de dor do Feminino, criado pela violência patriarcal sobre a mulher a todos os níveis. Níveis que vão do mais óbvio ao mais subtil. Ao nível cultural, ser mulher ou ser homem são programações, digamos, muito diferentes, que implicam papéis diferentes, com níveis de liberdade muito diferentes. Às mulheres foram consignados papéis que se limitavam à esfera da intimidade, da família, enquanto os papéis mais sociais foram reservados aos homens. A mulher, tradicionalmente, lida com o interior e o homem com o exterior, para simplificar, tendo-se as coisas extremado ao ponto de quem está apenas voltada para o interior nada saber nem ter a dizer sobre o que se passa no exterior, acabando por perder poder nas grandes decisões que depois determinam como se vive também na esfera íntima. Isto terá demorado a acontecer mas aconteceu, embora agora haja a sensação para muitas pessoas de que as coisas já não são assim, porque as mulheres têm acesso a praticamente todos os cargos de poder. Menos a religião e a alta finança. O que acontece, entretanto, é que as mulheres têm acesso a uma estrutura de poder criada desde um ponto de vista masculino, tendo perdido toda a noção do que seria um poder centrado na sua forma específica de ser enquanto mulheres, seres que geram vida dentro do seu corpo e que por isso mesmo foram desenhados para cuidar dela em primeiro lugar, o que não acontece com o homem. Há toda uma diferença a nível biológico, hormonal, psíquico entre os dois seres que determina diferentes posturas perante a vida. As mulheres, por exemplo, em caso de ameaça, juntam-se, juntam as crianças, criam união para se fortalecerem, enquanto os homens atacam. Nas mulheres foi identificado um instinto muito especial designado por “instinto de cuidar” que é não apenas usado com as suas crianças mas que se estende a quem precise, a quem se encontre em situação de necessidade.


Ora, compreendemos que os poderes que regem este mundo estão exactamente em contradição com estes princípios, esses poderes não têm a marca feminina, a Mãe foi silenciada e colocada numa posição subalterna. Basta vermos o que se passa na esfera do religioso, que é, como costuma dizer por exemplo a Zsuzsanna Budapeste, a política no mais alto nível. Basta atentarmos na posição da Virgem Maria na Igreja Católica, para percebermos como Ela reflecte exactamente a posição das mulheres neste mundo de homens. Maria, que foi perdendo atributos femininos na iconografia religiosa ao ponto de mais parecer uma adolescente anoréctica, amputada dos seios e do ventre fecundo da Grande Mãe criadora, não tem estatuto divino, e o seu papel é o de interceder pelas suas filhas e filhos junto dum Deus implacável, demasiado importante e ocupado para ter tempo para ninharias. É incrível perceber, se atentarmos na Virgem Maria dos católicos, na Senhora de Fátima, que é onde é mais forte actualmente o seu culto, como Ela espelha exactamente a posição das mulheres, das mães, neste mundo, cuidando de filhas e filhos que são do pai, aguentando a estrutura da Igreja, que sem Ela há muito já teria desaparecido, tal como sobre as mulheres recai todo o trabalho de manter coesa e em funcionamento a estrutura familiar, mas sempre subjugadas a uma autoridade que fala mais alto.

Ora esta é a programação que conhecemos, por muito que estejamos conscientes, é de acordo com ela que funcionamos. Temos inscrita em nós toda uma forma de ser, de nos vermos e de vermos o outro (e a outra), e de com ele interagirmos, que seria bom mudarmos, porque colocámos muito poder fora de nós, em mãos alheias. O pai precede a mãe na nossa alma quando para o bem maior de todas e de todos, para maior segurança da humanidade, deveria ser o contrário, porque e Mãe é que é a criadora e portanto é quem está em melhor posição para agir de forma a proteger a vida. O pai protege os seus interesses, preocupado em manter e aumentar o seu poder e o seu domínio. O uso da palavra foi incentivado nos homens e interditado às mulheres. Os primeiros apóstolos como S. Paulo ou Santo Agostinho tiveram o cuidado de determinar que às mulheres fosse proibido o acesso ao púlpito. E mais tarde a Inquisição destruiu tudo quanto restava do antigo poder das mulheres, daquele que tiveram antes da instalação do domínio patriarcal.
Por muito que achemos que isto é história antiga, vendo bem essa é a programação que subsiste na esfera mais elevada do poder político, que é a igreja dominante na nossa cultura, onde as mulheres continuam sem acesso ao púlpito, sem acesso directo ao sagrado embora sejam elas quem enche as igrejas.

Essa interdição do uso público da palavra e o aniquilamento cirúrgico do seu antigo poder remeteu as mulheres para o silêncio e a invisibilidade. O medo de falar em público, de ser vista, de exprimir a sua opinião, a sensação de nada ter a dizer de importante, de inadequação a todos os níveis enfraqueceu a mulher de um modo que nenhum homem pode sentir na sua própria pele. O que acontece com frequência quando homens e mulheres interagem em grupos mistos é que temos dois tipos de participantes, com posturas completamente diferentes em relação ao uso da palavra, à auto-expressão e à capacidade de liderança. Por um lado temos aqueles que foram estimulados a usar da palavra em público, os que estão habituados a ser ouvidos e a comandar, não temendo a eventual ignorância sobre qualquer assunto, porque é suposto que um homem saiba tudo de tudo. Do outro lado temos aquelas que carregam toda uma história de silenciamento, de proibição do uso da palavra, de desempoderamento, de sensação de irrelevância, de medo de não saber o suficiente, de sensação de que a sua validação como ser humano vem através do homem, do salvador masculino. 

 Sei que muitas pessoas mais jovens se insurgem perante esta forma de ver as coisas, achando que já não é assim. Esta análise seria justa nos anos sessenta, digamos, mas não em dois mil e tais. A minha experiência como professora até 2011, entretanto, lamento, não me permite concluir que tenha havido grande evolução. Pelo contrário, tive suspeitas de um forte e preocupante retrocesso quando certa vez fui assistir com uma turma de adolescentes a um debate entre as duas listas concorrentes à associação de estudantes na escola onde dava aulas. Sobre o palco do pavilhão polivalente, onde ia ter lugar o debate, constatei que na representação duma das listas não havia qualquer rapariga. Ao indagar sobre a razão foi-me dito que sim que também havia raparigas naquela lista mas que elas estavam com vergonha de subir ao palco…

Essa vergonha, essa falta de à vontade para subir ao palco, essa sensação de irrelevância, de falta de poder, de nada saber nem ter a dizer, essa herança feminina, continua portanto viva e actuante. Como se cura? Do meu ponto de vista ela cura-se primeiro com a consciência de que é algo de bem real, sem tentar negar o que é óbvio, como acontece tão frequentemente, como se fosse algo de já resolvido e ultrapassado. E depois cura-se criando circunstâncias seguras para as mulheres se exprimirem, para exprimirem a sua criatividade, o seu talento, a sua forma particular de ser e de ver o mundo, ligadas a um propósito maior que as faça sair da esfera da intimidade, da família, onde estão limitadas, como que aprisionadas, ao serviço de valores de cuja criação no fundo não participaram. Aliás, também é lugar-comum dizer-se que nos países latinos por exemplo as mulheres têm muito poder na família, são as super-mães, o que a meu ver é mais outra falácia. As mulheres usam e aplicam o poder dos homens, agindo como regentes em nome do rei, não como as rainhas que deveriam ser, exercendo um poder centrado no seu útero de grandes criadoras e no seu coração.

UMA ZONA LIVRE DE PATRIARCADO
Basicamente todo e qualquer homem para uma mulher é um representante do sistema patriarcal, quer ele queira quer não, quer ele se regozije ou se entristeça com isso. Esta parece-me ser uma boa base de trabalho a partir da qual poderemos agir no sentido de nos  libertarmos, ambos os géneros, desta programação, negar isto não nos fará avançar um milímetro.


Quando em 2011 assisti à primeira Conferência da Deusa de Glastonbury, compreendi a importância das mulheres criarem coisas por si mesmas, de se apresentarem ao mundo em seu próprio nome. Ver ali grandes mulheres com a sua visão própria do mundo, existindo por sua própria conta e risco, mulheres já meias lendárias, as nossas grandes heras do presente, mulheres que nos servem de modelo, de inspiração para uma maneira de ser verdadeiramente feminina, mestras, foi o melhor bálsamo que a minha alma já experimentou neste mundo. Mulheres que eram, que são, criativas e exuberantes e não mulherzinhas normalizadas, uniformizadas da cabeça aos pés, tanto na forma como pensam e agem como na forma como se vestem e penteiam, sem liberdade para irem mais além, para questionarem nada, prisioneiras, preocupadas apenas em manter coeso um mundo fragmentado em pedaços, ferido de morte.

A experiência deste evento criado por mulheres e para mulheres, com a ajuda e o apoio de alguns homens, diga-se, um espaço seguro porque criado a partir da consciência das nossas debilidades e daquilo que nos faz falta, uma zona livre de patriarcado, do pesado olhar do homem que nos mantém numa determinada frequência, marcou para sempre a minha maneira de estar no mundo. Era o nível seguinte, não mais o nível apenas da revolta, da denúncia dum estado de coisas que nos diminui e torna infelizes, mas um espaço de criação de algo de novo usando essa energia da indignação e da revolta. Que fique bem claro o que eu penso sobre esta questão, a força para mudarmos o mundo vem-nos da fúria, da raiva, da recusa em aceitarmos não poder viver plenamente por nós mesmas, como direito à experiência e ao erro, a vida que nos foi dada e de vermos o estado em que o mundo se encontra porque governado desde um ponto em que o poder da Mãe e do Feminino foi abolido e mantido inoperante. Nesta indignação e revolta está a força para criar outra realidade, ela não está em mais lugar nenhum.

Estamos portanto no passo seguinte da criação daquilo que queremos para nós. E queremos aquilo que nos foi tirado e negado: uma Deusa à nossa imagem e semelhança, a Grande Deusa do passado que por mais de 30 000 anos inspirou sociedades pacíficas e sustentáveis. Queremos o poder da Mãe no mundo. O poder da Mãe dá-nos, por essa experiência de milhares de anos, confiança absoluta.
É óbvio que há muitos homens que não se revêm no patriarcado, que compreendem o nosso ponto de vista, que têm a sua parte feminina muito activa, etc. Conheço alguns, convivi com grupos de Permacultura e sei que existem homens com as melhores intenções, e não apenas aí, claro. Acontece que por muito bem-intencionados que sejam esses homens, eles não viveram a nossa história, eles não partilham o nosso corpo de dor, o deles, que também existe, óbvio, é diferente. A experiência deles é outra. Eles não carregam o fardo da culpa, da grande culpa da mulher.
Por outro lado, para nós, eles transporta toda essa carga patriarcal, é impossível não olhar para eles e, mesmo que seja apenas de forma inconsciente, não os ver como estando do lado de quem pode tudo, de quem legitimamente pode usar da palavra, de quem espera de nós lealdade, apoio, de quem tem condições de nos validar, de ser o nosso salvador… Um homem é muito mais do que apenas uma pessoa, ele é todo um programa, assim como a mulher para eles representa igualmente todo um programa.

Será que não existe outra solução senão separarmo-nos, será que não podemos trabalhar lado a lado para tentar ultrapassar estas questões, quebrar as imagens estereotipadas que temos de cada um dos géneros? A minha opinião, o que eu sinto, é que precisamos de solidão para nos conhecermos, as mulheres, solicitadas de todos os lados, ao serviço de todos, precisam de solidão, de fazer outras coisas, de saber o que valem, do que são capazes, de se apaixonar por uma causa, um projecto, em vez de quase exclusivamente por pessoas. Elas precisam de saturar cada pontinho da sua alma faminta de imagens, de símbolos e de mitos que lhes falem do feminino, precisam da Deusa, da sua força e do seu poder.

Queridos homens, não sei de vocês, mas as mulheres estão esvaídas, desnutridas, exauridas, intoxicadas por uma cultura de pura violência de todas as formas possíveis contra a sua essência e a sua alma. Isto é o que eu sinto e o que eu sei. E também sei que vos amamos muito e não queremos desistir de vocês. Então por que não experimentam também essa solidão para se conhecerem fora da programação patriarcal, por que não se juntam entre vós, procurando saber quem são, o que querem, quais são as vossas feridas, trazendo assim cura uns aos outros, àqueles que tal como cada um de vós viveram as mesmas experiências, em vez de continuarem a querer que essa cura venha duma mulher sem poder nem autoridade, esvaída, desnutrida, insegura e assustada que ainda por cima vos aconchega o ego confiando na vossa autoridade e vendo-vos como o salvador? A insalubridade desta situação, convenhamos, exige no mínimo um bom arejamento.

©Luiza Frazão

Imagens: Conferências da Deusa Glastonbury e Sintra (2019)
                                                                                                                                        

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