Podes ir pela rua e de repente encontrar a Cale. Mas para isso
acontecer é melhor ires à província, descer ao país profundo. A Cale veste-se
de negro, porque toda a gente da sua geração, pelo menos, já desencarnou. Resta
ela, a resiliente. Lembro-me de umas quantas epifanias de Cale na minha vida.
Numa peregrinação à Cova da Iria, por exemplo, na véspera dum dia 13 de Maio,
vimo-la passar, magrinha, sequinha, ultrapassando tudo e toda a gente na
rapidez desembaraçada e ritmada do seu passo que já vinha assim desde o Norte.
Ainda mal refeitas do nosso espanto, ao vermos como, naquela que era a derradeira
etapa do nosso percurso, a famosa e dolorosa “recta de Fátima”, ela, a Cale,
magrinha e sequinha, vestida de negro, de lenço atado na cabeça, se movia,
antes de podermos articular palavra, já a tínhamos perdido de vista. Devia ter
perto de 80 anos, e foi um espanto e um profundo respeito e quase embaraço da
nossa parte, por sermos muito mais novas e tão mais lentas, pesadas e cansadiças.
Mas a Cale é de outra dimensão. Por onde passa, ela deixa um rasto, ou
um borrifo, de profundo reconhecimento, anagnórise, será o melhor termo para o
que acaba de nos acontecer. Sabíamos que ela devia existir porque lemos a
respeito nas histórias antigas, mas não tínhamos bem ideia de onde procurar, e
de repente acontece qualquer coisa, como uma brisa fresca de liberdade, que faz
um upgrade na nossa coragem e alarga a nossa visão da vida, da extensão da
duração da vida e da excitação de se estar viva, porque lá no fundo pode estar a
Cale.
Uma vez encontrei-a do lado de dentro do balcão de um café para os
lados dos Amiais de Cima. Vestia de negro, mas não era uma saia e blusa e um avental
qualquer. Era um vestido bem feito, marcado na cintura, com um xaile pelas
costas. Tinha um olhar frontal e usava cordão e brincos de ouro e todo o
conjunto denunciava uma atitude de quem é muito senhora de si e não precisa de
impressionar ninguém. Mas impressionava, sobretudo ali naquele lugar, numa
aldeia onde ninguém se veste nunca assim. Apetecia copiar-lhe o estilo, mas
ainda era preciso cultivar muito a Cale em si para aquilo cair como caía nela.
Há poucos anos lembrei-me e fui de propósito lá só para a ver de novo, mas já
tinha partido para o Jardim das Hespérides.
A Nazaré também é um lugar onde ainda se pode encontrar a Cale. Num
dia de sorte, podes encontrá-la ocupada com alguma coisa ou simplesmente com
nada, sentada no areal à beira da marginal, já me aconteceu. De xaile cobrindo
a cabeça. Ou de lenço. Se o teu olhar se encontrar com o dela, é possível que
te aconteça viajares em pânico para algum lugar recôndito e mal cheiroso da tua
alma que com tanto cuidado pensavas estar preservado, desinfectado e selado.
No Norte também é provável que a encontres. Mas entre os ambientes
onde não se dá, o pior deve ser aquele onde um fluxo televisivo ininterrupto mantém
a cabeça numa frequência de idiotice, vazia de qualquer ideia ou pensamento
original, observando acontecerem coisas mirabolantes em que não se é tida nem
achada.
De resto, a Calaica é muito desconfiada, não vais encontrá-la em
nenhuma fila de farmácia, sala de médico de família, lar de terceira idade,
onde te tratam de “menina” para baixo e te imbecilizam e te provam que não és
capaz e te fazem duvidar de que alguma vez sequer o tenhas sido. A Calaica fenece
nesses lugares de pura irrelevância. Ela precisa de vida a acontecer na guelra,
de movimento, de desafio, de giro, do ar da madrugada, do pó da estrada nas
plantas dos pés, da água dos córregos, do vento e da geada, de gravetos para a fogueira,
de ir e de vir, de ser tida e achada. Abençoada.
©Luiza Frazão
©Luiza Frazão
��Verdade �� esta reflexão faz-nos viajar aos nossos mais diversos momentos de infância ou juventude. Maravilhosa reflexão, que me fez saltar para a minha infância, nos dias que ia com a minha avó até as fazendas, porque is terrenos que estavam junto às ribeiras só agora estavam em condições de serem semeados. Então lá íamos nós, com o farnel aviado, o bolo que a matriarca fez, de batata doce e canela, aquele cheirinho que nos enfeiticava, os ovos cozidos e os moranguinhos que a avó tinha apanhado para a netinha comer, porque adorava. E lá íamos nós por entre canaviais e caminhos sempre junto à ribeirinha. No caminho passávamos junto à casa da tia Calia, aquela mulher alta, que ficava mais alta ainda quando punha os molhos de vides à cabeça, magra, magra, rugas bem definidas, que se destacavam por causa do negro lenço na cabeça. As suas vestes, saia preta comprida, que lhe permitia esconder aquele corpo forte mas ao mesmo tempo seco, apenas ossos.
ResponderEliminarUm dia fiquei estupefacta, e até hoje nunca me esqueci desta visão... Calia vinha entretida pelo caminho, com os seus animais, cão, cabra e o porquinho e ela pára no meio do caminho, levanta as saias até ao joelho e ali no meio do nada, de pé, satisfaz uma das suas necessidades fisiológicas.... Durante anos pensei nisto, e quando me diziam "as meninas fazem xixi sentadas, eu pensava para comigo *isso é que vocês se enganam, Calia faz de pé *
Grata pela viagem.
Que texto fantástico Luiza Frazão! A Cale está viva em nós.. Povo sabido arranja sempre uma solução perante a adversidade que se levanta em massa para alimentar a revolução que era dos militares ou fica em casa mesmo antes das ordens oficiais pois tem noção de que se não fizer por si ninguém fará...
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