“Não basta dizermos que é preciso uma nova relação com o feminino.
Aquilo de que precisamos mesmo é de nos relacionar com o lado negro do
feminino.” Fred Gustafson, The Black Madonna (Boston, Sigo Press,
1990)
Nas sociedades tradicionais que
reverenciavam a lua como Deusa, a 3.ª fase negra era personificada pela Deusa
Negra, sábia e compassiva, que governava os mistérios da morte, transformação e
renascimento. Com o tempo, sucessivas culturas foram gradualmente esquecendo o
antigo culto da lua, e o antigo conhecimento da ciclicidade da realidade,
reflectida nas suas fases perdeu-se.
Na nossa sociedade actual a maior
parte de nós desconhece o potencial de cura e de renovação que existe como
qualidade intrínseca do processo cíclico da fase escura da lua. Em vez disso,
associamos a ideia de escuridão à da morte, do mal, da destruição, isolamento e
perda. Numa sociedade governada pela clara consciência solar, fomos ensinad@s a
temer, rejeitar, desvalorizar e desempoderar tudo quanto se relaciona com os
conceitos de escuridão – pessoas de cor, mulheres, sexualidade, menstruação,
natureza, o oculto, o paganismo, a noite, o inconsciente, o irracional e a
própria morte. Do ponto de vista mítico, associamos todos estes medos da
escuridão à imagem do feminino demoníaco conhecido como a Deusa Negra,
intimamente relacionada com a lua negra.
Ao longo da história, o poder
original da Deusa Negra enquanto renovadora foi esquecido e ela tornou-se
assustadora e destruidora. Em muitas mitologias do mundo, ela foi descrita como
a Tentadora, a Mãe Terrível, a Anciã que traz a morte. As suas biografias mais
tardias descrevem-na como negra, malvada, venenosa, demoníaca, terrível,
malevolente, fogosa. À medida que a cultura patriarcal se tornou dominante, ela
foi-se transformando num símbolo da devoradora sexualidade feminina que faz com
que o homem transgrida as suas convicções morais e religiosas, consumindo-lhe a
essência vital no seu abraço mortífero.
Na imaginação mítica das culturas
dominadas pelo homem, a sua natureza original foi distorcida e ela tomou
proporções horríficas. Enquanto Kali, ela surge nos crematórios adornada com
uma grinalda de caveiras, empunhando a cabeça cortada do seu companheiro,
Shiva, escorrendo sangue. Enquanto Lilith, ela voa pelos céus nocturnos como
uma demoníaca criatura que seduz os homens e mata criancinhas. Enquanto Medusa,
a sua bela e abundante cabeleira tornou-se uma coroa de serpentes sibilantes e
o seu olhar feroz transforma os homens em pedra. Enquanto Hécate, ela persegue
os homens nas encruzilhadas pela noite com os seus ferozes cães do inferno.
Podemos perguntar-nos por que razão a Deusa Negra apresenta uma imagem tão terrífica e de que modo ela e a sua contraparte psicológica, o feminino negro, ameaçam a nossa sociedade e criam destruição nas nossas vidas. E ainda como é que o seu poder destruidor se relaciona com as suas qualidades de cura que permitem a renovação. De que formas a Deusa Negra representa o nosso medo do escuro, do oculto, da morte, da mudança; o nosso medo do sexo, bem como o do confronto com o nosso ser e essencialmente com a nossa essência e a nossa própria interpretação da verdade. As respostas para estas questões podem encontrar-se na transição de uma cultura matriarcal para uma cultura patriarcal que ocorreu há 5 mil anos. As pesquisas actuais sobre a história antiga, nos domínios da teologia, da arqueologia, da história da arte e da mitologia, estão a trazer à evidência que, com início há 3 mil anos AC, ocorreu uma transformação nas estruturas religiosas e políticas que governavam a humanidade. Sociedades matriarcais que cultuavam as Deusas da terra e da lua, como Innana, Ishtar, Ísis, Deméter e Artemis, deram lugar a sociedades patriarcais, seguidoras do deus solar e dos heróis masculinos, como Gilgamesh, Amon Ra, Zeus, Yahweh e Apolo.
Antes disso, uma conexão entre a morte e o renascimento estava implícita na cíclica renovação da Deusa Lua, cultuada pelos povos antigos. A Deusa ensinava que a morte mais não é do que a precursora do renascimento e que o sexo não serve apenas para a procriação, serve também para o êxtase, a cura, a regeneração e a iluminação espiritual. Quando a humanidade adoptou o culto dos deuses solares, os símbolos da Deusa começaram a desaparecer da cultura e os seus ensinamentos foram esquecidos, distorcidos e reprimidos.
Académic@s contemporâne@s começam
a descobrir evidências de como o culto da Deusa foi suprimido, os seus templos
e artefactos destruídos, os seus e as suas seguidr@s perseguid@s e assassinad@s
e a sua realidade negada. O novo sistema de crenças das tribos dos
conquistadores solares patriarcais renegaram a renovação cíclica, negando assim
o ciclo natural do nascimento, morte e regeneração da Deusa Lua, o terceiro
aspecto da Deusa Tripla. A Deusa Tripla da Lua, na sua fase nova, cheia e escura,
era o modelo da natureza feminina enquanto Donzela, Mãe e Anciã. No seu culto
original da Deusa Negra, como o terceiro aspecto desta trilogia lunar, ela era
honrada, amada e aceite pela sua sabedoria, pelo seu conhecimento dos mistérios
da renovação.
Durante a prevalência da cultura
patriarcal, entretanto, ela e os seus ensinamentos foram banidos e remetidos
para os recantos escondidos do nosso inconsciente.
(…)
Com a diminuição da luz da lua,
ela transforma-se na Anciã Negra na lua escura minguante que recebe @ mort@ e @
prepara para o renascimento. Na sua sabedoria que deriva da experiência, ela
relaciona-se com a estação do inverno e o mundo subterrâneo. Enraizada na sua
força interior, a Deusa da Lua Negra está repleta de compaixão e de compreensão
da fragilidade da natureza humana e o seu conselho é sábio e justo.
Ela governa as artes da magia, o
conhecimento secreto, os oráculos. A Anciã da Lua Negra era artisticamente
representada como a terrível face da Deusa que devora a vida, e algumas imagens
representam a sua vulva como símbolo da subsequente renovação. Rainhas da magia
e do submundo, como Hécate, Kali, Eresh-Kigal, são símbolos da fase minguante
da Deusa da Lua Negra.
(…)
Os povos antigos sabiam que, tal como ela morria todos os
meses com a velha Lua Negra, também renasceria na Lua Nova crescente. Era a
Anciã da Lua Negra que tomava a vida no seu útero; mas @s antig@s também sabiam
que a Deusa Virgem da Lua Nova daria à luz a nova vida. A anciã era a doadora
da morte assim como a virgem era a que trazia o renascimento. A reencarnação
era representada pela refertilização da anciã-tonada-virgem. A interacção
contínua entre a destruição que se transformava em nova criação é a eterna
dança que sustém o cosmos.
A Deusa Negra eliminava e
consumia aquilo que estava velho, degradado, desvitalizado e sem préstimo. Tudo
isso era transformado no seu caldeirão e oferecido depois como elixir. Como
podemos ver nos seus antigos rituais sagrados, as antigas religiões partilhavam
o conceito dum submundo para onde a Deusa Negra conduzia a alma através dos
negros espaços do sem forma, onde ela exercia os seus secretos poderes de
regeneração.
A palavra inglesa “hell” vem do
nome da terra subterrânea da Deusa escandinava Hel. O seu subterrâneo não era
entretanto um lugar de punição, mas antes o escuro útero, simbolizado pela
cave, o caldeirão, o fosso, a cova, o poço. A Deusa Negra não era temida e o
seu espaço não era um lugar de tortura. Ela guardava os seus e as suas
iniciad@s nos cemitérios, a entrada do seu templo. Através da morte o indivíduo
entra no ciclo da fase escura da lua; aí encontra a Deusa Negra que o conduz
através da passagem intermédia de volta à vida.
Quando este natural desfecho do
tempo de vida era compreendido e aceite, a Deusa Negra era honrada pela sua
sabedoria e amada pela sua ilimitada aceitação e compaixão para com os
habitantes da terra. Ela não era temida pelos povos que cultuavam a lua, que
entendiam a morte como um hiato no tempo entre vidas.
MYSTERIES OF THE DARK MOON – The Healing Power
of the Dark Goddess, Demetra George, HarperSanFrancisco, 1992
Traduzido por Luiza Frazão
Imagens: Caroline Hillyer