Conteúdos

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A DEUSA NEGRA - A SOMBRA FEMININA

“Não basta dizermos que é preciso uma nova relação com o feminino. Aquilo de que precisamos mesmo é de nos relacionar com o lado negro do feminino.Fred Gustafson, The Black Madonna (Boston, Sigo Press, 1990)

Nas sociedades tradicionais que reverenciavam a lua como Deusa, a 3.ª fase negra era personificada pela Deusa Negra, sábia e compassiva, que governava os mistérios da morte, transformação e renascimento. Com o tempo, sucessivas culturas foram gradualmente esquecendo o antigo culto da lua, e o antigo conhecimento da ciclicidade da realidade, reflectida nas suas fases perdeu-se.

Na nossa sociedade actual a maior parte de nós desconhece o potencial de cura e de renovação que existe como qualidade intrínseca do processo cíclico da fase escura da lua. Em vez disso, associamos a ideia de escuridão à da morte, do mal, da destruição, isolamento e perda. Numa sociedade governada pela clara consciência solar, fomos ensinad@s a temer, rejeitar, desvalorizar e desempoderar tudo quanto se relaciona com os conceitos de escuridão – pessoas de cor, mulheres, sexualidade, menstruação, natureza, o oculto, o paganismo, a noite, o inconsciente, o irracional e a própria morte. Do ponto de vista mítico, associamos todos estes medos da escuridão à imagem do feminino demoníaco conhecido como a Deusa Negra, intimamente relacionada com a lua negra.

Ao longo da história, o poder original da Deusa Negra enquanto renovadora foi esquecido e ela tornou-se assustadora e destruidora. Em muitas mitologias do mundo, ela foi descrita como a Tentadora, a Mãe Terrível, a Anciã que traz a morte. As suas biografias mais tardias descrevem-na como negra, malvada, venenosa, demoníaca, terrível, malevolente, fogosa. À medida que a cultura patriarcal se tornou dominante, ela foi-se transformando num símbolo da devoradora sexualidade feminina que faz com que o homem transgrida as suas convicções morais e religiosas, consumindo-lhe a essência vital no seu abraço mortífero.
Na imaginação mítica das culturas dominadas pelo homem, a sua natureza original foi distorcida e ela tomou proporções horríficas. Enquanto Kali, ela surge nos crematórios adornada com uma grinalda de caveiras, empunhando a cabeça cortada do seu companheiro, Shiva, escorrendo sangue. Enquanto Lilith, ela voa pelos céus nocturnos como uma demoníaca criatura que seduz os homens e mata criancinhas. Enquanto Medusa, a sua bela e abundante cabeleira tornou-se uma coroa de serpentes sibilantes e o seu olhar feroz transforma os homens em pedra. Enquanto Hécate, ela persegue os homens nas encruzilhadas pela noite com os seus ferozes cães do inferno.



Podemos perguntar-nos por que razão a Deusa Negra apresenta uma imagem tão terrífica e de que modo ela e a sua contraparte psicológica, o feminino negro, ameaçam a nossa sociedade e criam destruição nas nossas vidas. E ainda como é que o seu poder destruidor se relaciona com as suas qualidades de cura que permitem a renovação. De que formas a Deusa Negra representa o nosso medo do escuro, do oculto, da morte, da mudança; o nosso medo do sexo, bem como o do confronto com o nosso ser e essencialmente com a nossa essência e a nossa própria interpretação da verdade. As respostas para estas questões podem encontrar-se na transição de uma cultura matriarcal para uma cultura patriarcal que ocorreu há 5 mil anos. As pesquisas actuais sobre a história antiga, nos domínios da teologia, da arqueologia, da história da arte e da mitologia, estão a trazer à evidência que, com início há 3 mil anos AC, ocorreu uma transformação nas estruturas religiosas e políticas que governavam a humanidade. Sociedades matriarcais que cultuavam as Deusas da terra e da lua, como Innana, Ishtar, Ísis, Deméter e Artemis, deram lugar a sociedades patriarcais, seguidoras do deus solar e dos heróis masculinos, como Gilgamesh, Amon Ra, Zeus, Yahweh e Apolo.

 Antes disso, uma conexão entre a morte e o renascimento estava implícita na cíclica renovação da Deusa Lua, cultuada pelos povos antigos. A Deusa ensinava que a morte mais não é do que a precursora do renascimento e que o sexo não serve apenas para a procriação, serve também para o êxtase, a cura, a regeneração e a iluminação espiritual. Quando a humanidade adoptou o culto dos deuses solares, os símbolos da Deusa começaram a desaparecer da cultura e os seus ensinamentos foram esquecidos, distorcidos e reprimidos.

Académic@s contemporâne@s começam a descobrir evidências de como o culto da Deusa foi suprimido, os seus templos e artefactos destruídos, os seus e as suas seguidr@s perseguid@s e assassinad@s e a sua realidade negada. O novo sistema de crenças das tribos dos conquistadores solares patriarcais renegaram a renovação cíclica, negando assim o ciclo natural do nascimento, morte e regeneração da Deusa Lua, o terceiro aspecto da Deusa Tripla. A Deusa Tripla da Lua, na sua fase nova, cheia e escura, era o modelo da natureza feminina enquanto Donzela, Mãe e Anciã. No seu culto original da Deusa Negra, como o terceiro aspecto desta trilogia lunar, ela era honrada, amada e aceite pela sua sabedoria, pelo seu conhecimento dos mistérios da renovação.
Durante a prevalência da cultura patriarcal, entretanto, ela e os seus ensinamentos foram banidos e remetidos para os recantos escondidos do nosso inconsciente.
(…)
Com a diminuição da luz da lua, ela transforma-se na Anciã Negra na lua escura minguante que recebe @ mort@ e @ prepara para o renascimento. Na sua sabedoria que deriva da experiência, ela relaciona-se com a estação do inverno e o mundo subterrâneo. Enraizada na sua força interior, a Deusa da Lua Negra está repleta de compaixão e de compreensão da fragilidade da natureza humana e o seu conselho é sábio e justo.
Ela governa as artes da magia, o conhecimento secreto, os oráculos. A Anciã da Lua Negra era artisticamente representada como a terrível face da Deusa que devora a vida, e algumas imagens representam a sua vulva como símbolo da subsequente renovação. Rainhas da magia e do submundo, como Hécate, Kali, Eresh-Kigal, são símbolos da fase minguante da Deusa da Lua Negra.
(…)
Os povos antigos sabiam que, tal como ela morria todos os meses com a velha Lua Negra, também renasceria na Lua Nova crescente. Era a Anciã da Lua Negra que tomava a vida no seu útero; mas @s antig@s também sabiam que a Deusa Virgem da Lua Nova daria à luz a nova vida. A anciã era a doadora da morte assim como a virgem era a que trazia o renascimento. A reencarnação era representada pela refertilização da anciã-tonada-virgem. A interacção contínua entre a destruição que se transformava em nova criação é a eterna dança que sustém o cosmos.

A Deusa Negra eliminava e consumia aquilo que estava velho, degradado, desvitalizado e sem préstimo. Tudo isso era transformado no seu caldeirão e oferecido depois como elixir. Como podemos ver nos seus antigos rituais sagrados, as antigas religiões partilhavam o conceito dum submundo para onde a Deusa Negra conduzia a alma através dos negros espaços do sem forma, onde ela exercia os seus secretos poderes de regeneração.

A palavra inglesa “hell” vem do nome da terra subterrânea da Deusa escandinava Hel. O seu subterrâneo não era entretanto um lugar de punição, mas antes o escuro útero, simbolizado pela cave, o caldeirão, o fosso, a cova, o poço. A Deusa Negra não era temida e o seu espaço não era um lugar de tortura. Ela guardava os seus e as suas iniciad@s nos cemitérios, a entrada do seu templo. Através da morte o indivíduo entra no ciclo da fase escura da lua; aí encontra a Deusa Negra que o conduz através da passagem intermédia de volta à vida.

Quando este natural desfecho do tempo de vida era compreendido e aceite, a Deusa Negra era honrada pela sua sabedoria e amada pela sua ilimitada aceitação e compaixão para com os habitantes da terra. Ela não era temida pelos povos que cultuavam a lua, que entendiam a morte como um hiato no tempo entre vidas.

MYSTERIES OF THE DARK MOON – The Healing Power of the Dark Goddess, Demetra George, HarperSanFrancisco, 1992

Traduzido por Luiza Frazão

Imagens: Caroline Hillyer

     


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

De Santa a Rameira - a visão patriarcal da antiga religião da Deusa

De Santa (qadesh) a Rameira (Harlot)

Lendo Merlin Stone, a famosa autora de When God Was a Woman (Quando Deus era Mulher)... A obra que tenho em mãos é The Paradise Papers  - The Suppression of Women’s Rites (Os papéis do Paraíso- a Supressão dos Ritos Femininos). Como se diz na capa, um “clássico feminista”…

Merlin Stone revela aqui o que encontramos quando um novo olhar, um olhar feminino, ou feminista, é lançado sobre documentos antigos. Um crivo de preconceitos patriarcais é usado pelos arqueólogos académicos, segundo aqui se demonstra, para interpretarem dados do passado… muito interessante e revelador.

Fica aqui uma amostra:

“Na maior parte dos textos arqueológicos, a religião centrada numa divindade feminina é referida como um simples “culto de fertilidade”, parecendo tal classificação revelar atitudes em relação à sexualidade que decorrem da influência da visão das religiões contemporâneas professadas pelos próprios autores. No entanto a evidência arqueológica e mitológica da veneração duma divindade feminina enquanto criadora, legisladora, inventora, profetiza, com influência no destino humano, inventora, curadora, caçadora e líder imponente no campo de batalha sugere que a designação “culto de fertilidade” não passa duma simplificação grosseira duma complexa estrutura teológica.
(…)
Nas suas descrições de cidades e de templos há muito soterrados, os académicos homens escreveram sobre a sexualidade activa da Deusa como sendo “indecente”, “intoleravelmente agressiva” “embaraçosamente vazia de moral”, enquanto as divindades masculinas que seduziam e violavam ninfas ou mulheres míticas, são descritas como “brincalhonas” ou até admiravelmente “viris”. A evidente natureza sexual da Deusa, justaposta à Sua sagrada divindade confundiu de tal forma um académico que este acabou por decidir-se pelo desconcertante epíteto de Virgem-Rameira. As mulheres que seguiam os antigos hábitos sexuais do culto da Deusa, designadas na sua própria língua como sagradas ou santas mulheres, foram repetidamente classificadas como “prostitutas ritualísticas”. Esta selecção de palavras é reveladora uma vez mais duma ética etnocêntrica provavelmente baseada em atitudes bíblicas. Acrescente-se ainda que usar o termo “prostituta” para designar mulheres cujo título era na verdade qadesh, que significava santa, revela uma enorme falta de compreensão da verdadeira estrutura social e teológica que estes autores estão a tentar descrever.

As descrições da divindade feminina como criadora do universo, inventora, dispensadora de cultura, são feitas habitualmente em uma ou duas linhas se tanto; os académicos rapidamente passam por cima destes aspectos da divindade feminina que segundo eles não merecem sequer discussão.
Apesar do facto de o título da Deusa em muitos documentos históricos do Médio Oriente ser Rainha dos Céus, alguns autores apenas parecem dispostos a conhecê-la como Mãe Terra…


A divindade feminina, venerada como guerreira ou caçadora, lutadora corajosa ou ágil atiradora, foi por vezes descrita como possuindo curiosos “atributos masculinos”, implicando isso que a Sua força e valor a tornavam uma espécie de aberração, ou alguém psicologicamente anormal. O professor de Arqueologia Pré-histórica J. Maringer rejeita a ideia de que os crânios de rena fossem troféus de caça duma tribo paleolítica. A razão? Foram encontrados no túmulo duma mulher. Escreve ele: “Aqui o esqueleto era o de uma mulher, uma circunstância que parece descartar a hipótese dos crânios e hastes de rena serem troféus de caça”. Estarão estes autores a julgar a natureza física intrínseca da mulher pelos modernos ideais de esbelteza e fragilidade?”

Merlin Stone, The Paradise Papers (tradução de Luiza Frazão)  

Imagem do centro: Deusa Tanit