O patriarcado é frequentemente
definido como um sistema de dominação masculina. Esta definição não esclarece, apenas
obscurece, o complexo conjunto de factores que contribuem para o funcionamento
do sistema patriarcal. Precisamos duma definição mais complexa se queremos
compreender e desafiar o sistema patriarcal em todos os seus aspectos.
O patriarcado é o sistema de
dominação masculina ancorado num etos de Guerra que legitima a violência,
santificada pelos símbolos religiosos, no qual os homens dominam as mulheres
através do controlo da sexualidade feminina, com a intenção de legarem a
propriedade aos herdeiros masculinos, e no qual os homens, heróis de guerra,
são instruídos para matar homens, autorizados a violar mulheres, a
apoderarem-se da terra e das suas riquezas, a explorarem recursos e a
apropriarem-se ou dominarem por qualquer meio os povos conquistados.
Marx e Engels disseram que a
família patriarcal, a propriedade privada e o estado surgiram ao mesmo tempo. Embora
a sua compreensão das sociedades que precederam o patriarcado tenha falhas, a
intuição que tiveram de que o patriarcado está ligado à propriedade privada e à
dominação em nome do Estado está correta. Desde há muito que é óbvio para mim que
o patriarcado não pode ser separado da Guerra e dos reis que tomam o poder na
sequência da guerra. Fiquei surpreendida há anos com a alegação de Merlin Stone
de que na sociedade matrilinear não existem crianças ilegítimas porque todas as
crianças têm mãe. Mais tarde, tentei perceber por que razão a Igreja de Roma e
outras igrejas e o Partido Republicano na América se opõem tão fortemente ao
direito das mulheres controlarem o seu próprio corpo e tentam a todo o custo
impedir o seu direito ao aborto.
Na definição do patriarcado que dou acima, junto todas estas
questões numa síntese que descreve além das suas origens a forma como está
relacionado com o controlo da sexualidade feminina, com a questão da
propriedade privada, da guerra, da conquista, da violação usada como arma de
guerra e do recurso à escravidão.
O sistema que defino como patriarcal é um sistema de
dominação reforçado pela violência ou pela ameaça da violência. É um sistema
desenvolvido e controlado por homens poderosos, no qual as mulheres, crianças,
outros homens e a própria natureza são dominadas. Devo entretanto acrescentar
que não acredito que esteja na “natureza” do homem dominar pela violência. O
sistema patriarcal tem uma origem histórica, o que significa que não é eterno
nem inevitável. Houve mulheres e homens que ofereceram resistência ao
patriarcado ao longo da sua história. Podemos juntar-nos também hoje em dia para
lhe oferecermos resistência.
A minha definição de patriarcado foi influenciada por novos
dados da pesquisa feita por Heidi Goettner-Abendroth
em Sociedades de Paz, que faz avançar o nosso entendimento das sociedades
pré-patriarcais que ela designa por “matriarcais” “sociedades de paz”.
Goettner-Abendroth identifica a estrutura profunda dos
matriarcados usando quarto marcadores:
1) económico: estas sociedades
usualmente praticam agricultura em pequena escala e conseguem relativa
igualdade económica através da dádiva enquanto hábito social;
2) social: estas
sociedades são igualitárias, matrilineares, matrilocais, sendo a terra
propriedade do clã materno e com ambos os géneros, mulheres e homens,
permanecendo no respetivo clã materno;
3) político: estas sociedades são igualitárias
e possuem sistemas democráticos de consenso bem desenvolvidos;
4) cultura,
espiritualidade: estas sociedades tendem a considerar a Terra como a Grande Mãe
Doadora. Mais importante e permeando tudo o resto, estas sociedades honram
princípios de cuidado, amor e generosidade que associam à ideia de maternidade, acreditando que tais princípios
devem ser praticados tanto pelas mulheres como pelos homens.
A cultura Mosuo dos Himalaias,
objeto de estudo recente, mesmo encontrando-se em vias de desaparecimento, é um
exemplo clássico. Fiquei a saber da sua existência ao ouvir a discussão de
Michael Palin sobre os hábitos sexuais das mulheres de Mosuo no seu
documentário sobre os Himalaias. Estas mulheres explicaram a Palin que na sua
cultura as mulheres e os homens se definem a si próprias e a si próprios através da sua conexão
com a clã materno. Quando uma rapariga atinge a idade da maturidade sexual, a
mãe prepara-lhe um quarto onde ela poderá convidar um rapaz para jantar. Caso este lhe agrade, ele é convidado a passar a noite com ela. As
crianças nascidas destas relações tornam-se parte do clã materno. O papel do
pai é assumido pelos tios e irmãos da mãe, sendo o papel desta partilhado com
as irmãs. Quando algum membro dum casal se cansa da relação, esta acaba e cada pessoa encontra um novo parceiro ou uma nova parceira. Obviamente que o Michael Palin teve alguma
dificuldade para acreditar no que as mulheres lhe contavam.
Esta história ilustra uma importante diferença
entre os costumes matrilineares e matrifocais dos Mosuo e os das culturas
patriarcais com os quais estamos familiarizadas. Entre as mulheres desta etnia
é de norma a livre escolha dos parceiros sexuais. Não existem crianças
ilegítimas nesta cultura porque todas têm uma mãe. Não existem mulheres
“perdidas” (bom reflectir sobre o sentido deste termo) nem prostitutas porque as
mulheres são livres para terem relações com quem decidirem. A dicotomia entre a
santa e a pecadora tão bem conhecida nas culturas patriarcais pura e
simplesmente não existe aqui.
Com o contraste fornecido por Mosuo, é possível entender a
um nível mais profundo que o patriarcado é um sistema de dominação masculina no
qual o homem domina a mulher através do controlo da sexualidade feminina. O
controlo da sexualidade feminina através da instituição do casamento não é
acidental no patriarcado, sendo pelo contrário algo central. Os costumes que
rodeiam o casamento patriarcal, incluindo a exigência de que a noiva esteja
intocada ou “virgem”, a protecção da virgindade das raparigas pelo pai e pelos
irmãos, o isolamento das raparigas e das mulheres, a exigência de estrita
fidelidade da parte das esposas em relação aos maridos, e a imposição destes hábitos
com o recurso à vergonha pública, à violência, ou ameaça de violência, tem um
propósito: assegurar que os descendentes do homem sejam legítimos, sejam dele.
Enquanto saber quem é a mãe biológica é fácil, ter a certeza de quem é o verdadeiro pai é bem mais difícil. Se uma
mulher tem mais do que um amante, então, sem teste de DNA que apenas foi
descoberto recentemente, é quase impossível ter a certeza sobre quem é o pai.
Uma primeira solução para esse dilema consiste em definir a paternidade de
outra forma e uma segunda solução é o absoluto controlo sobre a sexualidade das
mulheres.
Entretanto podemos perguntar-nos por que razão é tão crucial
para um homem saber quem são os seus filhos biológicos que um complicado
sistema de isolamento, vergonha e controlo da sexualidade feminina teve de ser
posto em prática? A resposta encontra-se na próximo segmento da minha
definição: o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem
domina a mulher através do controlo da sua sexualidade com a intenção de
transmitir a propriedade aos herdeiros masculinos. Marx e Engels tinham razão
ao afirmarem haver uma relação entre patriarcado e propriedade privada. Não haveria necessidade do homem ter tanta
certeza sobre a paternidade das suas crianças se a instituição da propriedade
privada não existisse e se o valor dos indivíduos não fosse definido em função
da propriedade que detêm e transmitem aos seus herdeiros, habitualmente do
género masculino.
Apercebi-me recentemente de que a palavra “herança” ou “propriedade
herdada” em grego moderno, “periousia”, derivada do grego antigo, ilustra a
conexão entre propriedade e identidade de forma mais óbvia do que a palavra “herança”.
“Ousia” no grego antigo refere-se ao ser ou à essência do indivíduo. “Peri-ousia”
é aquilo que rodeia o ser essencial e portanto define “quem” se “é”. O seu
sentido óbvio é que “quem se é” é definido pela “propriedade” que se herda e se
transmite. Sem a clara identificação da “essência” dum homem com a sua
propriedade, não seria necessária uma preocupação tão grande com a certeza de
que o herdeiro da propriedade do pai é de facto o seu filho biológico.
Fevereiro 18, 2013
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