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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Ansiando pela Escuridão

Virgem negra, Nazaré, Portugal
Texto de Elizabeth Ann Bartlett

(tradução Luiza Frazão)

Quando me mudei para o Minnesota, toda a gente lá em casa expressou preocupação com as baixas temperaturas do Inverno. Ninguém me avisou, todavia, sobre o quão escuros eles seriam, nem quanto tempo duraria essa escuridão. Durante anos, reclamei, mas gradualmente passei a aceitar a escuridão. A escuridão convida-nos a desacelerar, a descansar, a dormir, a sonhar. É um momento de abertura para as nossas profundezas e para as de outras pessoas. Existe uma espécie de magia na escuridão. Sem a dura luz do julgamento, no escuro, é mais provável que partilhemos os nossos segredos e histórias, as nossas feridas e as nossas dúvidas, os nossos corações e esperanças uns e umas com as outras. À medida que as árvores caducas perdem as suas folhas, o firmamento também se abre, dando origem ao céu noturno. A escuridão do inverno dá-nos de presente as estrelas e uma sensação de sabermos o nosso lugar no universo. Elas chegam como velhas amigas. As Sete Irmãs das Plêiades aparecem à noite, e Orion cumprimenta-me todas as manhãs. Quando o cometa Hale-Bopp era visível da Terra,  procurei-o nas minhas viagens noturnas para casa, e lá estava ele, o meu companheiro constante nas noites frias do inverno. As estrelas lembram-nos de que não estamos sós, que todas e todos somos parentes, pois somos matéria das estrelas.

Ultimamente, tenho sentido falta da escuridão. Quando me mudei para a minha casa na floresta, a noite era escura. À medida que a cidade cresceu, mais casas foram construídas e postes de luz acrescentados. A escuridão foi eclipsada por um crepúsculo sem fim. Nos nossos esforços humanos para resistirmos à escuridão, esquecemos o mandamento terreno para descansar e todas e todos estamos a sofrer as consequências. A poluição luminosa afeta a nossa saúde, diminuindo a liberação de melatonina - abrindo caminho para a perda de sono, aumento da ansiedade e uma série de outras doenças. A saúde de outros animais também é afetada, assim como a migração das tartarugas marinhas e das aves que navegam pelas estrelas e pelo luar. Iluminamos a noite para não nos perdermos na escuridão, mas talvez nos tenhamos perdido por estarmos demasiado iluminadas/os. Como o bolbo da primavera que precisa do frio e da escuridão para florescer, também nós precisamos da nutrição da escuridão profunda para restaurarmos a nossa criatividade e poder.

Gruta de Alcobertas, Portugal

No nosso anseio pela escuridão, não é apenas pela escuridão física que ansiamos, mas também pela metafísica - o poço profundo da antiga escuridão divina, a matriz original. Como China Galland meditou: "O anseio pela escuridão [é] também um anseio pelo ventre de Deus." [I] No seu Anseio pelas Trevas, Galland lembra-nos da persistência desse anseio e da sua emergência como Ishtar, Ísis, Astarte, Asherah, Tara, Kali, Parvati, Durga, bem como Maria e os místicos cristãos que escreveram sobre a maternidade do divino. As suas representações iconográficas abundam em todo o mundo, desde os templos de Tara em toda a Ásia aos muitos santuários para a Madona Negra em toda a Europa. Não é de admirar que é neste tempo de escuridão profunda que Maria é celebrada dentro do Cristianismo - Maria não como passiva, mas como a força divina materna forte, corajosa, ferozmente protetora e terrena.

Lucia Birnbaum lembra-nos que a primeira mãe africana é a nossa herança genética, homenageada por milênios como Erishkegal, Ísis, Lilith, Kali, Oxum, Hagar. Foi somente com o surgimento do patriarcado que o divino feminino negro foi rebaixado, deslocado, apagado e relegado para o espaço subterrâneo. No entanto, ela continua a crescer na nossa psique e nos nossos anseios mais profundos. A cada ano, milhares caminham centenas de quilómetros em peregrinação para visitar esses santuários, todas e todos buscando conexão com as energias femininas sombrias, divinas e pré-patriarcais das quais tanto precisamos.

Galland escreve: “Dizer que alguém está 'ansiando pela escuridão' é dizer que anseia pela transformação, por uma escuridão que traz equilíbrio, plenitude, integração, sabedoria, discernimento.” [Ii] Certamente, se existe um tempo em que precisamos de restaurar o equilíbrio e obter discernimento e sabedoria, é agora, pois vivemos num mundo profundamente desequilibrado. Diz-nos a Física teórica que a matéria escura é aquilo que mantém as estrelas e as galáxias juntas - matéria, da mesma raiz que mãe - mater. Termos banido a matéria escura desequilibrou-nos. Eu imagino um mundo que saiu fora do seu eixo, vacilando através do universo. As energias preponderantes do ódio, violência, opressão, dominação e patriarcado desequilibraram-nos. Precisamos das qualidades do divino feminino escuro - compaixão, justiça, igualdade e a transformação do patriarcado hierárquico violento numa democracia pacífica e radicalmente igualitária. Já estivemos lá antes; podemos voltar.

Gruta Rio Maior
bell hooks [iii] escreveu sobre como, quando criança, o seu espírito encontrava nutrição nas casas de mulheres negras. As mulheres negras resistiram à opressão criando lugares para se curarem, se afirmarem e terem a sua dignidade restaurada - lugares onde novas possibilidades poderiam surgir. A matriz do feminino negro divino é um lar, fomentando tanto a nossa resistência quanto a criação de novas possibilidades. Como lugares de renovação e oásis de resistência encontrados nas casas das mulheres negras, habitando com o divino feminino escuro, ela descobriu que encontramos “. . . o chão do nosso ser, o lugar do mistério, da criatividade e da possibilidade, pois é aí que podemos construir a mente que pode resistir, que pode rever, que pode criar os mapas que quando seguidos nos libertarão. ”[iv] Podemos começar, como disse Audre Lorde, “relembrando o que é escuro, antigo e divino dentro de nós”, [v] pois é desses lugares escuros interiores “. . . que, escondido e crescente, o nosso verdadeiro espírito surge. . . . “[Vi]

Neste tempo de escuridão, que os nossos espíritos possam elevar-se a esses lugares de possibilidade – as dádivas da matéria escura.

 

Notas (não traduzidas)

[i] Longing for Darkness, 54.

[ii] Ibid., 152.

[iii] I was writing this section when I learned of bell hooks’ death.  I dedicate this piece to the legacy of wisdom and love she gave us all.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bell_hooks

[iv] “Lorde,” 243.

[v] Sister Outsider, 69

[vi] Ibid., 36.

Notes

Birnbaum, Lucia Chiavola. Dark Mother: African Origins and Godmothers.  San Jose: Authors           Choice Press, 2001.

Eisler, Riane. The Chalice and the Blade: Our History, Our Future. NY: Harper One, 1988.

Galaxies Protected by Dark Matter | Space

Galland, China. Longing for Darkness: Tara and the Black Madonna. NY: Penguin, 1990.

 

hooks, bell. “Lorde: The Imagination of Justice.” in Byrd, Rudolph et. al. eds. I Am Your Sister:

Collected and Unpublished Writings of Audre Lorde. New York: Oxford U. Press, 2009.

______. Yearning: Race, Gender and Cultural Politics. Boston: South End Press, 1990.

Lerner, Gerda. The Creation of Patriarchy. New York: Oxford University Press, 1987.

Light Pollution | National Geographic Society

Lorde, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches by Audre Lorde. Trumansburg, NY: The

Crossing Press, 1984.

 BIO: Beth Bartlett, Ph.D., é educadora, autora, ativista e companheira espiritual. Ela é Professora Emérita de Estudos sobre Mulheres, Género e Sexualidade na Universidade de Minnesota-Duluth. Beth também serviu como co-facilitadora do grupo de estudos sobre Espiritualidade da NWSA. É autora de vários livros e artigos, incluindo Journey of the Heart: Spiritual Insights on the Road to a Transplant, Rebellious Feminism: Camus’s Ethic of Rebellion and Feminist Thought, and Making Waves: Grassroots Feminism in Duluth and Superior. Tem estdo ativa em movimentos feministas, pela paz e justiça, pelos direitos da natureza e pela justiça climática, e tem sido uma defensora comprometida das e dos protetores da água.

Versão original

terça-feira, 6 de julho de 2021

COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA - uma disciplina que tem muito para nos ensinar

MENINA?... não me parece... 
 

As formas de tratamento em Portugal são um tanto fluidas, como sabemos, e a formação das pessoas que lidam com o público, não inclui por vezes, todas as disciplinas que deveria incluir. Uma delas chama-se Comunicação não Violenta, uma matéria de que não ouço falar muito, mas do mais importante. Se se dissesse às funcionárias e aos funcionários, só para simplificar, algo de básico como “trate as mulheres como trata os homens” já se avançaria um bocadinho. Nunca ouvi nenhum/a atendente tratar um homem por Menino, seja qual for a sua idade, mas agora parece que se tornou moda tratar assim as mulheres. Não todas, claro, não as que estão na faixa etária correspondente, mas as mulheres de mais de 65 anos! Como eu. Hoje foi a terceira vez que reclamei com alguém sobre o assunto e não passou disso. A partir de agora passarei a usar o Livro de Reclamações. 

A funcionária repetiu várias vezes o epíteto alto e bom som, completamente a despropósito, enquanto me atendia. Acabou por ouvir o que não queria. Já reparou que está a usar um tom de ironia com uma pessoa que não conhece de lado nenhum? Por que tem de enfatizar a minha idade enquanto me atende? Qual é a necessidade? Se tivesse estudado Comunicação não Violenta teria percebido que a pessoa que é assim tratada, que anda ali descontraidamente apenas a fazer as suas compras, é de repente lembrada que está numa categoria aparte, numa categoria em que o desempoderamento avança de forma progressiva, tendo de aceitar a desconsideração de qualquer pessoa, disfarçada de simpatia.

Como na descida de Innana até aos domínios de sua irmã, rainha dos infernos, no mito sumério. No primeiro degrau a Deusa é despojada do seu colar, símbolo do seu poder… Aqui, no primeiro degrau, recebes um título irónico: Menina…  todos os outros títulos que já ostentaste esquecidos e obliterados, caducados… Podes ter sido Professora, Doutora, Senhora, Dona… Agora és simplesmente Menina… E deves achar piada como toda a gente parece achar à tua volta porque é com carinho, dizem-te… Na verdade com um tremendo desrespeito, desprezo e violência disfarçados…

Houve uma época em que eu achava que no Porto esse tratamento se tolerava e até teria a sua graça, mas a experiência diz-me para desconfiar de tudo o que não tem equivalente masculino. 

Sugiro que faça o teste e pense duas vezes antes de tratar uma pessoa de mais de 65 anos por Menina. Mesmo que ela esteja num lar de idosas/os, onde o tratamento está lamentavelmente oficializado, ela sabe muito bem que há ali um vampírico, insidioso, provinciano jogo de poder que por caridade merece ser denunciado.  

©Luiza Frazão 

sábado, 1 de maio de 2021

DEUSAS SOLARES - CAÍDAS E REMETIDAS PARA A NOITE



“(…) a Artemis grega, divindade solar na origem dos tempos,  que perdeu este aspeto e esta função a favor dum deus masculino. Podemos de resto ver como é que esse processo se desenrolou no mundo helénico e relacioná-lo com a tradição celta. Com efeito, primitivamente, Artemis identificava-se com sua mãe, Leto (ou Latona), tal como Core-Perséfone era a dupla da mãe Deméter: ela representava o Sol jovem, o Sol levante, por oposição a Leto que personificava o velho Sol, o Sol poente (tal como Core era a jovem filha, ou seja, a Terra jovem, face a Deméter, a velha Terra, o conhecido mito da renovação).

A partir do momento em que as divindades femininas foram masculinizadas, e também porque era impossível esquecer completamente o seu aspeto feminino, conservou-se a personagem de Artemis, apondo-se-lhe no entanto um paredro macho, o seu irmão Apolo, o qual monopolizou o aspeto solar, ao mesmo tempo que Artemis era remetida para a noite transformando-se em Deusa-Lua.

O mesmo aconteceu no Egipto onde Osiris tomou o lugar de Isis como Sol poente enquanto Hórus se tornava o Sol levante.

Sabemos que primitivamente a Lua era masculina e o Sol feminino, ainda assim é nas línguas semitas, germânicas e celtas e também nas tradições populares (onde se diz que “a Lua engravida as mulheres”).
Houve por conseguinte uma grande reviravolta no simbolismo mítico e religioso: a deusa-mãe Sol, Leto, foi substituída pelo seu filho e pela sua filha, macho e fêmea, e sabemos que Juno-Hera tudo fez para que essas crianças, fruto do adultério de Zeus (e portanto das prerrogativas paternalistas) não nascessem, o que significa que Hera, mulher divina, recusou admitir a mudança de orientação da sociedade, da ginecocracia para o paternalismo”.

Jean Markale, La Femme Celte, Payot (tradução Luiza Frazão) 
Imagem: Sun Goddess Mitra, Persian painting by Hojjat Shakiba

domingo, 25 de abril de 2021

BORA LÁ SALTAR NO ESCURO – Confissões duma Mulher para lá da Meia-Idade


Sou uma mulher de mais de 65 anos. Fui professora e continuo a sê-lo, embora a estrutura da instituição tenha mudado radicalmente ou já nem exista. Não trabalho com rede, como aconteceu por largos anos. Não tenho rede. Afirmo a minha visão por mim própria, dou a cara por ela, como se diz, embora por outro lado possa dizer que tenho uma vasta rede de apoio, constituída pelas mulheres que me precederam ou que são minhas contemporâneas no Movimento da Deusa, mulheres com as quais comungo da mesma perspectiva das coisas, da mesma devoção à Deusa, da mesma certeza de que sem a Sua representação no panteão divino da humanidade actual, as mulheres nunca poderão aspirar a assumir verdadeiro poder neste mundo (ver Carol Christ “Por que é que as mulheres precisam da Deusa”); mulheres que comungam do mesmo sonho dum futuro sustentável, para a concretização do qual o papel das mulheres é decisivo; mulheres que sabem que é preciso resgatar a Deusa antiga, nas Suas várias faces ou arquétipos, que reflectem a nossa humanidade, nas Suas múltiplas denominações e qualidades; mulheres conscientes de que precisamos de refazer a nossa cultura própria, de reinventar as nossas tradições, a nossa forma própria de ser e de estar no mundo, antes da domesticação patriarcal, de levantar do chão e de limpar da ignomínia o nosso poder de dar e de cuidar da vida, de redescobrir e de sacralizar o poder do sangue menstrual, de sacralizar o corpo e toda a natureza de que somos parte. 

Sou uma mulher de mais de 65 anos, activista da Deusa, e há partes de mim que por vezes se sentem cansadas, quase esgotadas… Sou uma mulher. Ser uma mulher com uma visão ou ser um homem com uma visão são realidades muitíssimo distintas. Na tradição masculina, na androcracia em que vivemos, por trás dum homem, grande ou pequeno, há sempre uma mulher – quanto mais não seja para acarretar com culpas e frustrações – que está lá quando ele chega a casa cansado, que o apoia, que diz ámen à sua visão, que torce por ele e fica orgulhosa quando as coisas correm bem. Ela faz a sopa, mantém o espaço, cuida dos aspectos práticos do quotidiano. Atrás dum homem está uma Esposa, que é uma espécie de extensão ou substituta da mãe, com funções acrescidas. Claro que isto é o quadro clássico, ou seja, já era, hoje em dia em que tudo está mais fluído, o que temos é a Companheira, que poderá ser mais intermitente, descartável, mas eventualmente bem mais talentosa e tecnologicamente funcional. Sempre existe uma ou mais para suprir as necessidades de apoiar, gerir, manter o espaço, torcer, dizer ámen, ajudar, e de forma cada vez mais prática e eficiente. Embora também existam, são raros, raríssimos, convenhamos, os casos em que estes papéis se invertem. Por norma, atrás duma mulher com uma visão não está ninguém a proteger o seu espaço nem a dar-lhe energia. O mais certo é que aconteça precisamente o contrário. Atrás dela pode estar o próprio marido a disputar a sua atenção e energia, ou o resto da família, que não acha a mínima graça à sua originalidade, que a conhece demasiado bem e por isso sabe que é um fake, que sempre foi. “Quem é que pensas que és?”. 

Óbvio que se ela fosse um homem, sim, aí teria toda a legitimidade para escrever e publicar livros, por exemplo, com toda a família a assistir orgulhosa ao seu lançamento. Já uma mulher sozinha a lançar um livro pode acontecer não ter uma única pessoa da família a assistir e a apoiá-la nesse momento. Ninguém. Não se fala nessa bizarrice, “Mas quem és tu afinal?”. Pode ser que atrás dela estejam pessoas que continuam a ver nela a mãe, cujo dever é apenas o de dar, e é bem possível até que nem ela própria saiba receber, que tacteie no escuro à procura do mais básico sentimento humano que é a sensação de que a sua existência é legítima, de que tem o direito de existir. E não se pode existir sem ter voz própria. E esta não é uma questão que amadureça saudável à medida que flui o tempo e se sucedem as estações, muito pelo contrário. Duvida sempre quando te disserem que a esperança de vida aumentou… As suas dúvidas existenciais como mulher são projectadas sobre pessoas que contestam a sua autoridade, desvalorizando tudo aquilo que com tanto esforço e trabalho, enfrentando tantos desafios, conseguiu, desmontando uma a uma todas as possíveis zonas de conforto. 

Uma mulher sozinha, recusando um enterro em vida, com a sua visão e voz própria, tem de ser capaz de conviver e de abraçar a impostora que se lhe colou à pele e à imagem, tem de poder olhar para ela no espelho e sossegá-la: “Bora lá saltar no escuro, segura-te!”. É a impostora em si que aguenta a parte das mil e uma razões para não, nunca estar à altura daquela Anciã longínqua, duma qualquer cultura exótica, idealizada pelo photoshop e enquadrada pelas frases prontas a servir do fast food verbal new-age. 

Uma mulher real sozinha, a partir de certa idade, é por norma suspeita, e se algum poder conquistou com o seu esforço, discernimento e coragem vai ser-lhe pedido que trate de o repartir, pedacinho a pedacinho, até não sobrar mais nada, ou que o use para promover outras pessoas. Afinal se já não és a mãe que se sacrifica como a vela se consome e arde para que haja luz, para que serves afinal? 

 Mas nesta escuridão criativa da alma, abençoada seja, a luz da Deusa nítida se recorta: “Pára de resmungar, de lamber as feridas, avança”… Pois… talvez, quem sabe, abrindo caminhos... 

 ©Luiza Frazão

quinta-feira, 1 de abril de 2021

E se partíssemos da hipótese de que a Creta Antiga era matriarcal, matrifocal e matrilinear?

Carol P. Christ em 22 DE FEVEREIRO DE 2021
Se começássemos com a hipótese de que a Creta antiga era matriarcal, matrifocal e matrilinear, o que esperaríamos que fosse o foco central da sua religião? * Harriet Boyd Hawes e a sua colega Blanche E. Williams apresentaram uma incipientemente feminista análise, centrada na mulher, da religião da antiga Creta, em Gournia, o livro que descreve a escavação de uma aldeia minóica no início do século XX. Boyd Hawes argumentou que as evidências arqueológicas mostravam não apenas a preeminência da Deusa, conclusão com a qual Williams concordava, mas também a força e a independência das mulheres numa cultura que ela definiu como matriarcal e matrilinear, centrada na família materna. Se a Creta antiga era matrilinear, matrifocal e matriarcal, deveríamos esperar encontrar evidências de que as mulheres não eram apenas fortes e independentes, mas também que assumiam papéis de liderança na religião e na cultura. Williams notou a presença de sacerdotisas. Os frescos em miniatura de Cnossos mostram um grupo de mulheres idosas sentadas no lugar de honra e um grupo de mulheres realizando uma dança ritual. Onde faltam evidências sobre as funções de liderança, não se deve presumir que a liderança deve ter estado nas mãos de homens.
Não deveríamos surpreender-nos ao descobrir que a Deusa ou a mãe terra estava no centro dos rituais e cerimónias na Creta antiga. No entanto, dizer que a Deusa é central levanta a questão do que queremos dizer quando dizemos Deusa. No Ocidente, a divindade é entendida como transcendente em relação ao mundo, representada como um Outro, um ser masculino dominante, juiz das/os vivas/os e das/os mortas/os. Citando o Dicionário Oxford English, o arqueólogo Colin Renfrew baseia a sua discussão sobre a religião minóica na ideia da transcendência divina. Mas se aceitarmos a visão de Marija Gimbutas de que a Deusa representa os poderes do nascimento, morte e regeneração em todas as formas de vida, surge-nos uma imagem diferente. A Deusa é imanente, ao invés de transcendente em relação ao mundo. Ela é a força vivificante nos seres humanos e em toda a natureza. Ela não é a juíza das/os vivas/os e das/os mortas/os, pois as/os mortas/os são devolvidos ao seu corpo. Ao contrário das divindades gregas posteriores, as deusas da Velha Europa e da antiga Creta geralmente não são retratadas como seres humanos idealizados. Embora muitas vezes tenham olhos, seios e triângulos sagrados, elas também têm bicos e asas, têm o formato de montanhas e são decoradas com linhas fluidas que simbolizam rios ou riachos. Essas formas híbridas sugerem que toda a vida é uma imagem da divindade e que os seres humanos não são superiores, melhores ou separados de outras formas de vida. Imagens híbridas celebram a conexão de todos os seres na teia da vida e chamam os seres humanos a participarem e a desfrutarem deste mundo, não a procurarem escapar ou elevar-se acima dele. Uma religião centrada na gratidão pela vida neste mundo é muito diferente daquela que se concentra no medo, no julgamento e no anseio pela vida após a morte. A percepção de Jacquetta Hawkes de que a religião da antiga Creta celebrava "a graça da vida" está exatamente certa.
A velha deusa europeia ou minóica é uma ou várias? Os monoteístas têm insistido que só pode haver um Deus, mas os politeístas reverenciam uma pluralidade de imagens, enquanto os animistas celebram os espíritos de seres vivos (percebidos) como rios e árvores, montanhas e cavernas. Os termos monoteísmo e politeísmo não são neutros. Ambos foram desenvolvidos por monoteístas: o monoteísmo descreve as crenças correctas do self; politeísmo, as falsas crenças da/o outra/o. Acho que a distinção da teóloga e liturgista Marcia Falk entre monoteísmo exclusivo e inclusivo é útil para resolver a questão do um/a e das/os muitas/os. Segundo Falk, o monoteísmo inclusivo é uma intuição da unidade do ser na diversidade do mundo: celebrando a unidade do ser, acolhe uma pluralidade de imagens para representar a diversidade e a diferença no mundo. Desse ponto de vista, as fronteiras entre o monoteísmo e o politeísmo são porosas. Quando Gimbutas falou dos poderes de nascimento, morte e regeneração em toda a vida, ela referia-se à unidade de ser subjacente à diversidade de formas de vida, incluindo plantas, animais e seres humanos. Da mesma forma, quando os povos indígenas falam da mãe terra como a doadora de tudo e de todos os seres como parentes, eles reconhecem que toda a vida é sustentada por uma única fonte. O fato dos povos cretenses antigos imaginarem a divindade de maneiras diferentes e com características diferentes não exige a conclusão de que eles adoravam muitas divindades distintas, como argumentam alguns arqueólogos: considero que intuíram uma unidade de ser enquanto celebravam a diversidade da vida. Esta parece ter sido a conclusão de Williams, que escreveu sobre “a proeminência de uma deusa sob vários aspectos”.
Se as culturas matrilineares, matrifocais e matriarcais tendem a ver a Terra como uma grande e generosa mãe, podemos esperar que essa percepção seja expressa em rituais e cerimónias. A gratidão é a resposta apropriada aos presentes dados gratuitamente. Sugiro que a gratidão pelo dom e dádivas da vida não era apenas um foco, mas o foco central da religião na Creta antiga. Se for assim, devemos esperar encontrar rituais celebrando o dom da vida no nascimento de bebés, na chegada à maioridade das meninas, bem como em rituais de morte homenageando as/aos ancestrais. Também podemos esperar encontrar rituais que honrem a linha materna e expressem gratidão pela sabedoria das ancestrais. Muitos desses rituais teriam ocorrido na Casa matrilinear, como sugere o arqueólogo Jan Driessen. Os rituais para as/os ancestrais também podem ter acontecido em cemitérios. Devemos também esperar encontrar rituais que expressem gratidão pelo alimento que sustenta a vida, por exemplo, nas oferendas de primícias à mãe terra e no derramamento de libações que são absorvidas de volta ao seu corpo. Se as mulheres inventaram a agricultura e, como argumentou Gimbutas, a religião da Velha Europa celebrava os processos de nascimento, morte e regeneração em toda a vida, deveríamos encontrar rituais focados no plantio, colheita e armazenamento de sementes. Alguns desses rituais podem ter ocorrido nas Casas matrilineares, enquanto outros certamente ocorreram na natureza e nos campos. Se a fabricação de cerâmica e a tecelagem fossem entendidas como mistérios de transformação envolvendo nascimento, morte e regeneração, poderíamos encontrar evidências de rituais associados a essas atividades nas Casas ou nas oficinas. É sabido que os ritos na Creta antiga envolviam árvores, montanhas e cavernas, bem como fontes de água. Devemos perguntar-nos se e como tais cerimónias expressam gratidão à mãe terra, a fonte da vida, e aos ciclos de nascimento, morte e regeneração. * Essas reflexões são parte de um rascunho inicial do prólogo metodológico de um ensaio que me pediram para escrever sobre Religião numa vila minóica a ser publicado no relatório arqueológico sobre as escavações recentes em Gournia. Na parte anterior do prólogo, discuto as teorias sobre as culturas matriarcal, matrifocal e matrilinear de Harriet Boyd Hawes, Blanche E. Williams, Marija Gimbutas, Heide Goettner-Abendroth e outras/os. Original aqui

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

A REVOLUCIONÁRIA DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA DA CIVILIZAÇÃO CRETENSE

 

O achado arqueológico da civilização cretense foi uma “bomba” no seio da comunidade de estudiosos de então, uma vez que, pelas suas evidências, não correspondia a nada do que até aí fora descoberto e a nada do que era “expectável” à luz dos valores patriarcais e masculinos que vigoravam e que dominavam a ciência da altura.

Houve todo um conjunto de descobertas e de particularidades, sobretudo através das manifestações artísticas que chegaram até à atualidade (e daí a importância fulcral da arte para compreendermos esta cultura e esta sociedade), que permitiram ver que se estava na presença de uma sociedade “diferente”. Baseada em valores pacíficos – quando, à sua volta, já quase todas as civilizações começavam a ser fortemente dominadas pelos valores bélicos –, tratava-se de uma sociedade essencialmente baseada na economia agrária, próspera, igualitária e estável.

Para além disto, chegou-se à conclusão de que se tratava de uma sociedade intensamente religiosa, em que o centro do seu culto era a Deusa. Na verdade, religião e vida quotidiana, misturavam-se de tal forma no quotidiano das cidades-estado desta ilha, que sagrado e quotidiano se entrelaçavam na vida dos cretenses. O próprio exercício físico e o desporto, bem como todo o tipo de atividades lúdicas e de entretenimento, estavam intimamente ligadas às práticas e cultos religiosos. Religião e divertimento associavam-se em harmonia, e a prática de jogos e desportos era caracterizada pela participação igualitária de mulheres e homens.

O que provavelmente foi uma das particularidades mais marcantes, e que mais deve ter impressionado os arqueólogos que primeiramente exploraram esta civilização, ainda muito imbuídos dos valores patriarcais (a “lente” através da qual observavam e analisavam os factos e fenómenos de estudo científico): a igualdade entre géneros. A forte e frequente presença das mulheres na arte cretense leva a concluir que elas representavam papéis sociais prestigiados, tanto no culto religioso da Deusa, como a nível de poder (chegando-se a sugerir a existência de uma rainha cretense).

Mas também a música, o canto e a dança integravam tanto as expressões culturais e artísticas dos cretenses como as suas próprias práticas religiosas. Todos estes aspetos se fundiam num só: “(…) a religião para os cretenses constituía uma ocupação feliz” e “(…) “Toda a vida impregnava-se de fé ardente na Deusa Natureza, fonte de toda criação e harmonia”, citando a autora da obra. Desta forma, era inevitável que o sistema de valores e crenças desta civilização se baseasse firmemente na paz, na dádiva, na compaixão, na beleza, nos prazeres da vida. A própria liberdade e fluidez com que a sexualidade era perspetivada e vivida pelos cretenses conduzia a um pacifismo e a uma anulação ou redução da agressividade, que se evidenciava mais noutros povos.

E, centrando-se no culto profundo e muito enraizado da Deusa, tal como afirma Nicholas Platon: "o medo da morte era praticamente obliterado pela omnipresente alegria de viver".

Estas são, em traços gerais, as características principais que diferenciam esta cultura, mas existem muitas mais particularidades que a distinguem das outras sociedades suas contemporâneas.

Uma delas é o facto de a sociedade minóica (assim chamada devido ao Rei Minos) ter sido uma sociedade muito baseada no “encanto pela vida”, pela “sensibilidade”, e “amor à beleza e natureza”, como se pode ler na obra de Riane Eisler. De uma forma geral era uma cultura baseada em valores hedonistas, de prazer, de valorização do lado belo e de harmonia da vida, e a arte, que chegou até nós, demonstra-nos isto de forma evidente: desde joias, a estatuária, aos frescos, entre outras formas de arte descobertas.

Em termos de estilo de vida, os cretenses eram fortemente ligados à natureza e ao respeito e usufruto da mesma, pelo que até as habitações particulares, edifícios públicos e demais construções refletiam esse estilo de vida.

Concluiu-se também que a sua organização social era caracterizada por uma justa divisão da riqueza, não existindo assimetrias sociais profundas, como nas outras civilizações desenvolvidas da época; registava-se uma significativa prosperidade económica (baseada não só na agricultura, mas também, posteriormente, pela pecuária, indústria e comércio, essencialmente, marítimo, que floresceu dadas as privilegiadas condições geográficas da ilha). Paralelamente, regista-se um avançado sistema de obras públicas, que abrangia desde estradas a sistemas de distribuição de água, etc., muito avançados e completos.

No entanto, nenhum destes aspetos, e esta é uma das singularidades que mais sobressaem, conduziu a uma sociedade onde a noção de poder fosse autocrática ou baseada na violência ou exploração de uns grupos sociais por outros. De forma alguma existem indicações de que o poder estivesse concentrado apenas num reduzido número de indivíduos, nem tão pouco que se tratasse de uma sociedade baseada no poder armado: verificou-se a ausência de estruturas de defesa ou fortificações. O que sugere que a participação em guerras dentro ou fora da ilha seriam provavelmente quase inexistentes.

Ainda assim, é pouco provável que não tenham existido combates para defenderem o seu rico território, no entanto, não eram esses os seus valores dominantes, nem a própria arte cretense valoriza ou glorifica os atos de guerra.

A autora Riane Eisler indica-nos fortes indícios de que em Creta o poder teria sido exercido pelas mulheres, e que estas teriam tido um papel muito relevante na vida religiosa e social das cidades da ilha.

As mulheres estavam mais retratadas “nas artes e ofícios”, o que reflete uma posição social, religiosa, política e económica elevada ou de destaque, e eram frequentemente retratadas na esfera pública, o que é sinónimo de respeito e prestígio na sociedade (ao contrário daquele que, posteriormente, foi o sentido da evolução cultural humana, que remeteu cada vez mais as mulheres para a esfera doméstica e privada, sem serem vistas nem terem “uma voz própria”). O papel feminino era bastante ativo em todas as esferas da sociedade.

De facto, toda a conceção de beleza, de paz, de harmonia, lúdica e de respeito (pelo outro e pelo meio ambiente), e a própria posição igualitária entre sexos, presentes nos traços culturais e no legado artístico de Creta, já nos indica que estamos na presença de uma sociedade que não é dominada pelos valores “ditos masculinos”, da guerra, da destruição ou da violência.

Os próprios valores cretenses, baseados “num espírito feminino”, como se observa na História da Arte, na perspetiva de Jaquetta Hawkes, espelhavam-se até na arquitetura característica da ilha.

Aliás, é sobretudo através da arte que chegam até nós os mais evidentes indícios de que o poder era exercido pelas mulheres: a autora fala-nos da própria “(…) influência da sensibilidade feminina — [que ofereceu] notável contribuição à arte minóica".

Muito do que se sabe sobre a cultura cretense advém do estudo da produção artística desse período e local: a arte cretense, por exemplo, não glorifica as atividades bélicas ou a guerra em geral. Há um evidente hedonismo em Creta: a vida agradável, rodeada de beleza e a comunhão com a Natureza; uma cultura de bem-estar e igualdade entre classes socioeconómicas e entre géneros.

O culto da Deusa, ali, era absolutamente central, e Ela é representada, por exemplo, num papel supremo: numa carruagem que leva um defunto para a sua transformação e renascimento, no eterno ciclo da vida-morte-vida.  As Suas sacerdotisas são frequentemente representadas, em frescos, liderando procissões, cultos e rituais. A própria historiadora da arte, Hawkes, coloca a hipótese de existir uma rainha cretense, que também é retratada: ou seja, estamos perante o próprio centro do poder, no feminino.

Toda a presença da simbologia da Deusa (intensamente ligada à natureza, tal como a borboleta e a serpente, símbolos da transmutação e metamorfose, e o machado de lâmina dupla, utilizado no cultivo agrícola, que simbolizava a própria divindade da transformação e do renascimento, e também a fertilidade da terra, sustento de toda a população) é outro fator que indicia o poder das mulheres nesta sociedade, pois surge com muita frequência nos mais variados objetos de arte que foram descobertos. 

O próprio facto de não existirem estátuas de governantes, por exemplo, um reflexo tão típico do enaltecimento do “poder masculino” de então, indicam-nos que o poder era mais exercido pelas mulheres.

Outro facto que indicia que a cultura, essencialmente centrada na Deusa e no papel e poder femininos, estava bastante enraizada, é o de que, mesmo após o início do período histórico seguinte, a Idade do Bronze, e com a complexificação das estruturas sociais, isso não significou em Creta o declínio do poder nem do status das mulheres, pelo contrário, pareceu até fortalecê-lo.  A Deusa continuou a ser cultuada e a ser o centro da vida nesta civilização. E, como tal, os seus princípios de conceção “feminina” do mundo, prevaleceram, da mesma forma que a importância do papel das mulheres também. 

Avançando mais ainda nesta interpretação, temos a evidência de que o poder nesta cultura estava intimamente ligado ao sexo feminino, pois, tal como nos refere Eisler, “(…) em Creta as virtudes "femininas" de concórdia e sensibilidade tinham prioridade social” – aspetos que não eram desvalorizados, como acontece(u) noutras culturas, e de que houve uma noção diferente de poder.

O poder era exercido não com base na força física ou do confronto militar ou da subjugação, mas sim com base numa noção de “responsabilidade maternal” (uma “característica do modelo de parceria da sociedade”, citando a autora).

Por fim, temos outra forte confirmação de que o poder era exercido pelas mulheres na sociedade cretense: a sucessão e herança eram feitas por linhagem feminina. Estamos, portanto, perante uma sociedade matrilinear. Uma sociedade onde a Deusa assume o poder divino central, e as sacerdotisas/rainha exercem o poder temporal, pese embora se mantivesse sempre o espírito de harmonia e igualdade entre mulheres e homens cretenses.

Creio que a mensagem da excecional civilização cretense é a de que pode constituir um modelo e um exemplo tanto para a nossa sociedade atual como para as futuras, cujas bases já se estão a construir agora. É admirável o facto de existirem provas concretas (e não “sonhos utópicos”, como muito bem sublinha Eisler) de como, há milhares de anos, existiu uma sociedade desenvolvida, que transmite uma mensagem que corresponde ao seu próprio sistemas de valores: igualitária, próspera e pacífica, com um paradigma totalmente invertido em relação às atuais.

Esta mensagem, em minha opinião, reflete-se nos seguintes aspetos: ausência de guerra e os valores de convivência pacífica e harmoniosa; valores ecológicos e de respeito pela natureza; uma conceção diferente de poder e um conceito diferente de governação.

A ausência de guerra e a centralidade dos valores de paz, estabilidade e harmonia entre povos vizinhos ou distantes é outro aspeto. Não se registavam manifestações que habitualmente conotamos como “características masculinas” de orgulho ou barbaridades para com o outro. A própria arte de Creta espelha a ausência de “dominação, destruição e opressão”, como refere a autora.

Verificámos em Creta a quase ausência de conflitos militares dentro da própria ilha ou com territórios circundantes, ao contrário do que prevalece ainda hoje, nas culturas predominantes, de valores patriarcais, onde a guerra parece ser o infrutífero e destrutivo modo de “resolução” de conflitos entre povos.

Valores ecológicos e de respeito para com a natureza: O culto da Deusa, vista como a Grande Mãe de tudo o que existe e A grande provedora da própria subsistência das comunidades, profundamente centrado na própria natureza, nos ciclos das estações e na abundância e prosperidade que advinham da terra e das atividades agrícolas, com certeza que foi a base deste mesmo respeito por tudo o que se relacionasse com a vida natural. O que entra em franco contraste com todas as agressões que as comunidades humanas têm vindo a cometer para com os ecossistemas, e este é um dos exemplos mais fundamentais para a humanidade atual, porque dele depende a própria sobrevivência da espécie humana e do Planeta.

Em Creta existiu uma conceção de poder, e igualmente de governação, extremamente diferente das sociedades que lhe eram contemporâneas, certamente das que se lhes seguiram, e das atuais. Tal como nos revela Riane Eisler, não existia, como por exemplo no Antigo Egito ou na Suméria, a “glorificação” dos governantes: a arte testemunha este facto com a ausência de monumentos ou estátuas dedicadas à dignificação dessas personalidades. Pelo contrário, o poder era exercido de forma pacífica e igualitária, de forma limitada, e com provável representação das diferentes classes socioprofissionais de cada cidade-estado de Creta. Um aspeto do qual certamente se distanciaram as culturas e povos que se lhes seguiram, mas que se aproxima daquele que hoje vigora nas sociedades ocidentais mais justas e igualitárias, por exemplo. Ainda assim, ainda estamos longe da ausência de representação de “figuras de poder”, mesmo na nossa sociedade atual, onde ainda se cultivam símbolos do poder e da governação tipicamente patriarcais. Temos o exemplo das monarquias atuais, europeias e não só, onde os símbolos, ainda que de um poder não efetivo na maior parte dos casos, estão bastante presentes. E, sem recuar muito no tempo, temos o próprio exemplo dos símbolos do poder e dos seus detentores, propagados e cultivados no Estado Novo, em Portugal, e em outros regimes autocráticos similares.

Em termos de governação, o exemplo de Creta também transmite uma importante mensagem de igualdade e respeito inter-pares.  Ainda que existisse (como era muito comum na época) uma estreita fusão entre religião e poder, como já referimos acima, cultivava-se o respeito e a harmonia entre iguais, no que respeita aos soberanos das diferentes cidades-estado da ilha. E também uma importante limitação de poderes, por parte de altos cargos de conselheiros oficiais, que faz concluir que provavelmente haveria uma conceção do poder e da governação como uma representação de interesses do povo, junto de quem os exercia – o que se trata de um sistema político altamente avançado e que impede a evolução para um poder despótico, tão comum nesta época, e tanto tempo antes do nascimento da democracia da Grécia do período Clássico. Algo que não corresponde à existência, que ainda perdura, de regimes autoritários em pleno século XXI.

A mensagem principal que Creta nos transmite, na atualidade, é, pois, a de que é efetivamente possível e exequível (e não uma fantasia), pensar e construir uma sociedade de paz, de justiça social, de igualdade em todos os sentidos, do respeito pelo planeta em que vivemos, sem prejuízo do crescimento económico, do desenvolvimento tecnológico e do bem-estar material dos indivíduos. É possível, efetivamente, construir uma sociedade em que prevalece a cooperação e a “parceria”, como lhe chama Eisler, em vez de destruição e dominação.

Texto de: Andreia Mendes

Imagens: viagem a Creta 2015, Luiza Frazão

 

 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O Segundo Sexo, O Cálice e a Espada e o poder das mulheres do passado

 

(…) Simone de Beauvoir refere categoricamente que as mulheres “(…) não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo. Não têm passado, não têm história”. E que “(…)  a divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana”.

Ora, à luz do que atualmente sabemos, e do estudo da obra de Riane Eisler, consideramos agora que estes factos não são exatamente rigorosos. E que houve, efetivamente, civilizações evoluídas e avançadas, em que a “eterna” dependência feminina, que Simone de Beauvoir considera ter sido a sua única condição, pura e simplesmente não existia.

Sociedades “perdidas no tempo”, porque, tal como realça Riane Eisler, “(…) quando havia evidência de um período de tempo anterior em que homem e mulher viviam como iguais, esse período simplesmente era ignorado.”

Sociedades, sendo a Cretense um dos exemplos mais esplendorosos, em que se cultuava a Deusa-Mãe, onde a ordem social surge centrada na mulher e na mãe, que assumiam papéis sociais e religiosos importantes, como sacerdotisas, por exemplo. Onde detinham um elevado status, e uma elevada participação social. Sociedades com uma organização matrifocal e matrilinear, mas não matriarcal. Sociedades cuja base eram os princípios da igualdade, cooperação e de “parceria” entre os sexos, tanto na esfera privada da vida social, como na pública. A obra de Riane Eisler veio detalhar e lançar uma nova luz sobre estas culturas “diferentes”, provavelmente bastante mais igualitárias do que aquela em que De Beauvoir viveu…

O desconhecimento destes factos levaram Simone de Beauvoir a assumir à partida que as mulheres, e passo a citar: “(…) por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem”, e também que “(…) a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições”…

Porém, e apesar dos postulados com que inicia a sua teoria, ainda assim de Beauvoir coloca uma questão, mais pertinente que as duas referidas inicialmente, e que nos fazem associá-la inevitavelmente à tese de Riane Eisler:

“Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres deveriam ter sido vitoriosas.”

Questão que Riane Eisler nos respondeu, décadas mais tarde, contrariando o que se havia assumido como uma verdade absoluta: a dependência das mulheres em relação aos homens.

Não só, como já verificámos, isto nem sempre foi verdade, como a própria evolução humana deveria, precisamente, ter apontado para uma “saída vitoriosa das mulheres” – ou, pelo menos, para o que Eisler designa de uma “cultura de parceria”, em vez de uma “cultura de dominação”, de acordo com a sua Teoria da Transformação Social.

É muito interessante constatar como as duas teses, sendo contraditórias em alguns aspetos, encontram pontos de encontro surpreendentes.

À questão colocada por Simone de Beauvoir, “Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar?”, a tese de Eisler responde de forma direta: tudo na evolução cultural humana parecia apontar nesse sentido; mas esta linha evolutiva foi interrompida.

Porque as antigas sociedades onde a Deusa era cultuada, baseada em valores “ditos femininos” de compaixão, paz, estabilidade, partilha, dádiva e parceria, foram sendo suplantadas, num dado momento da história da Humanidade, progressivamente, pelo poder bélico e destruidor de outros grupos sociais, para quem a conquista, a força física e a subjugação eram os valores dominantes.

A frase de Simone de Beauvoir, na página 13 da sua obra, é paradigmática: “Se a mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque não opera, ela própria, esse retorno.” E acaba por ser “visionária”, talvez sem o suspeitar. Porque se trata, de facto de um “retorno”, de um “regresso”, no âmbito da evolução humana, ao status quo das sociedades da Deusa, que engloba a mulher numa posição em pé de igualdade em relação ao homem, independente, em todas as vertentes da vida social, e em comunidades onde vigoram os valores “de parceria”.

Andreia Mendes

Imagem 1: https://educacao.uol.com.br/

Imagem 2: https://www.aneconomyofourown.org/riane-eisler

Imagem 3 : Creta

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Notícias do Sol em manhã de Inverno

 

Esta manhã o sol brilhava intensamente quando abri a janela do meu quarto rasgada a Leste. Saudei-A como faço habitualmente, à Mãe do Fogo, a nossa Estrela do Dia, Trebaruna, Brígida, Sul, Sula, Aurora, e fechando os olhos, visualizei a Sua luz dourada penetrando em cada célula do meu corpo, trazendo-me energia e renovação, fé, entusiasmo, propósito e capacidade de agir neste mundo. Preciso de me lembrar de que o fiz quando a letargia bater à porta, e de me sintonizar com a energia solar que convoquei para o meu corpo e para a minha alma. Preciso de muita energia para tudo o que tenho de organizar e agora também para responder a todas as mil e uma questões que começam a chegar de todos os lados...

Das tarefas que tenho de fazer, as mais agradáveis são sem dúvida a leitura, e vários livros demandam agora a minha atenção. São os meus livros de estudo, melhor dizendo. Deusas Solares, Êxtase, Feminino Activo e Solar e temas afins.

Incrível como nos temos contentado com a Lua com centenas de Deusas do Sol a acenarem-nos nos diversos panteões do mundo, mas cuja existência basicamente desconhecíamos, embora a própria Brígida, se pararmos para pensar, seja uma delas. Mas fomos levadas a voltar-lhes as costas, conformadas com o nosso reino da noite, com a luz projectada de fora, com a passividade como dote do nosso casamento com as sombras... o que, convenhamos também tem sido uma boa desculpa para não entrarmos em pleno na cena do mundo. Antes deixámo-la ser dominada por um masculino solar abrasador, desertificador, atómico, nitidamente com necessidade da sua contraparte lunar para equilibrar os excessos de todo esse fogo malparado...

Mas tanto que fazer neste dia, acrescendo-se tarefas tão banais como ir à mercearia... e os meus pés com tantas saudades de pisarem a terra...

E depois gerir todas as solicitações de pessoas querendo vir oferecer o seu saber à nossa Conferência... Como dizer "já não cabe", "já não é possível", a tanta abundância, qualidade e generosidade?... parece que estamos a precisar de magia para gerir o programa, de ser capazes de esticar o tempo... Mas para já, Mãe Sol, apenas um sentimento, Gratidão.

Imagem: estandarte da Deusa Trebaruna realizado por Helena Lebre


sábado, 9 de janeiro de 2021

POR QUE ESTUDAR A ANTIGA CIVILIZAÇÃO DE CRETA É TÃO IMPORTANTE PARA NÓS?

 

Uma História que nos Traz Esperança, por Elizabeth Chloe Erdmann

Há muitos anos atrás, havia uma antiga civilização minoica na ilha grega de Creta que foi anterior às nossas ideias mais comuns de como era a Grécia antiga ...

Antes de Platão, Aristóteles, da Acrópole, antes de Alexandre - antes da Guerra de Troia - antes de Esparta...

Havia uma civilização como nenhuma outra em Creta, a maior das ilhas gregas flutuando de forma autossuficiente num espaço entre o sul da Europa e o norte da África; era uma cultura de comércio marítimo. Há quatro mil anos, pequenas aldeias agrícolas começaram a construir "centros sagrados", geralmente chamados de "estruturas palacianas". O seu fim permanece um mistério altamente contestado. Os valores da Creta antiga eram semelhantes a muitas culturas e tradições indígenas - como os Haudenosaunee ou os iroqueses: reverência por todas as espécies animais e vegetais e um sentido profundo da natureza colectiva da existência.

Isso é muito diferente da arte e das representações que surgem depois no continente grego, onde os heróis conquistam serpentes de nove faces e realizam tarefas aparentemente impossíveis para Deuses e Deusas que têm um relacionamento complicado com os seres humanos. O próprio nome da Europa vem de Europa, que era uma jovem donzela atraída para fora de sua casa em Creta num touro, como parte de um truque inventado por Zeus. Esses mitos vêm duma época em que o domínio sobre a natureza é tido como fundamental: é a história que se desenrola nas imagens narrativas da Acrópole de Atenas.

Então, o que acontecia antes nessa misteriosa ilha de Creta?

O povo minoico. A cultura dessas pessoas era diferente daquela que veio depois. Os seus centros sagrados eram dedicados a eventos políticos, artísticos e culturais. O seu sentido do sagrado impregnava as actividades diárias. Nessa sociedade via-se a própria vida como sagrada. Houve uma redistribuição ou partilha de bens e alimentos nesses locais, de modo que ninguém passou fome ou escassez. Há muito pouca indicação de fortificação e armas, especialmente em comparação com as civilizações posteriores, como os gregos micénicos. A arte minoica retrata mulheres em posições de poder - como sacerdotisas com os braços erguidos em estados de êxtase e muitas vezes nuas até a cintura. Homens são mostrados cantando quando voltam da colheita, há vasos que mostram a alegre vida marinha e estatuetas de cães sorridentes feitos de barro. Quando percorremos o museu, não podemos deixar de pensar — uau, essas pessoas sabiam como se divertir. Elas parecem felizes por estarem vivas. Viviam em harmonia com a natureza.

Os seus frescos retratam jogos que consistiam em saltar sobre um touro. (Sim, falamos de pessoas que saltam sobre os chifres duma criatura bovina.) Isso contrasta totalmente com o foco na violência contra os animais, como touradas e sacrifícios, retratados nas civilizações que se sucedem à minóica. Os frescos minoicos mostram figuras masculinas e femininas agarrando o touro pelos chifres e saltando através deles dando uma espécie de salto mortal. Saltar sobre o touro poderia ter sido um desporto sagrado e extático para a geração mais jovem ou um tipo de iniciação.

O que torna a antiga cultura minoica diferente das que a seguem - daquelas com as quais estamos mais familiarizadas e familiarizados na cultura popular e na academia? Deixe-me dar um RESUMO em 8 PALAVRAS: representação feminina, menos violência, sem escravidão, recursos partilhados.

Então, voltando ao que aconteceu com essa cultura, é algo de muito misterioso. Sabemos por escavações que houve um imenso evento vulcânico catastrófico na antiga Thera (agora conhecida como Santorini), que enfraqueceu a cultura minoica. A chegada dos micénicos da Grécia continental levou a uma mistura relativamente breve de culturas. Na arte micénica, vemos cenas que retratam heróis conquistando a natureza, mulheres como vítimas e violência contra animais. Depois de algumas centenas de anos, a sociedade micénica chegou ao fim. As pessoas retiraram-se para as montanhas e a Grécia entrou num período conhecido como idade das trevas que durou cerca de quinhentos anos. Depois disso, vieram Homero e os famosos filósofos da Grécia.

Existem traços da visão de mundo minoica na nossa cultura? E por que devemos preocupar-nos com Creta e a cultura minoica?

A resposta é simples: a esperança está em nós.

 

Elizabeth Chloe Erdmann é uma teórica apaixonada pela “Teologia Nómade” - com uma profunda atracção pela história relacionada com a Deusa. Erdmann tem mestrado em estudos teológicos pela Boston University, esteve associada à  Amarkantak Tribal University na Índia e actualmente faz um doutorado pesquisando sobre o Contemporary Feminist Goddess Worship & Thealogy, na University College Cork, Irlanda. É autora publicada e palestrante regular sobre cultura, religião e feminismo e co-lidera a Peregrinação da Deusa, que tem lugar na Primavera a Creta, com Carol P. Christ. Mora em Chittenango, no interior do estado de Nova York, nas terras ancestrais da soberana Nação Onondaga, guardiães do fogo do Haudenosaunee - um povo indígena matrilinear com muitos costumes semelhantes aos da Creta antiga. Envolvida em ativismo e pesquisa com Sally Roesch-Wagner, no centro Matilda Joslyn Gage para Justiça Social em Fayetteville, NY, considera-se uma mulher curiosa e apaixonada pelos mistérios do mundo.

https://feminismandreligion.com/2020/10/26/a-story-to-inspire-hope-by-elizabeth-chloe-erdmann/#more-50552

 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Magia de Natal - faça você mesma

7 de Janeiro, dia de desmontar a árvore e as decorações de Natal

A árvore de Natal, pinheiro, ou abeto, é um símbolo de permanência no confronto com a realidade da finitude da vida, proposto pelo Inverno. Por isso a decoramos com luzes, brilhos e cores, com bolas que evocam a luz do sol eterno, que renasce pelo Solstício. 

Quando o frufru natalício se anuncia e  me atinge também a mim, dou asas à imaginação do meu self-criança, e à minha, e juntas montamos a árvore, sempre inspirada no tema da infância, e nos últimos tempos honrando também a Deusa que venero. Mas sem dúvida que ela é dedicada em especial ao meu tempo de criança, quando esta celebração era motivo de tanta excitação, pura alegria (havia férias!) e deleite. No coração do Inverno, inóspito, húmido, enregelado, a festa do Natal reconfortava e aquecia a alma. Nunca vou esquecer o encantamento provocado pela visão súbita do cortejo de pequenos anjos que irrompia capela adentro a meio da missa desse dia na aldeia. Era como se um portal se abrisse directamente no céu trazendo até nós a visão de criaturas do altíssimo. Tão pouco esquecerei a dor da revolta pelo cancelamento sem mais desse prodigioso evento. Profunda agonia por sentir que qualquer pedaço de paraíso podia ser tão fugaz, tão facilmente destruído, como se não houvesse vontade humana suficiente para dele cuidar, nem suficiente compreensão da importância primordial da beleza, o próprio amor solidificado, materializado ali naqueles anjinhos vestidos de branco delicado como os seus passinhos de criança e as suas solenes asas de penas. Era inquietante saber que não havia nesta dimensão guardiãs e guardiães do paraíso à altura, suficiente protecção contra cultivadores de distopias. Foi muito cruel.

Pode ter sido aí que o meu compromisso com a utopia e a magia foi assinado, embora também seja possível que ele venha da noite dos tempos, dos alvores da história da minha alma, uma suspeita levantada pelo encontro com François Vatel, do filme estreado no ano de 2000. Claro que o genial mordomo do Príncipe de Condé tinha meios com que não tenho sequer competência para sonhar. Restam-me os requintes dos musgos, das bagas negras das heras e do alfeneiro, das pinhas, da verdura da época e dos enfeites vários coleccionados ao longo dos anos e actualizados de acordo com as alterações do gosto. Nos últimos tempos, além de satisfazerem os caprichos da minha criança interior, eles procuram também honrar a minha devoção à Deusa. Foi assim que as aves do paraíso vieram em bando, ou que fui atraída por um enfeite com a forma da mão de Tanit, por outro que replica a Babuska, pela miniatura do gato chinês, que tem como origem uma antiga Deusa, por outro ainda com a forma dum balão de hidrogénio, honrando a Mãe do Ar deste festival. 

Por debaixo da árvore, sapatinhos, como é lógico, já que não tenho lareira: umas botas que foram usadas pelo meu pai em criança, uns sapatos de menina dourados com fivela de brilhantes trazidos duma charity shop inglesa, e ainda uma cadeira de fada, uma caixa rosa fúchsia brilhante para as rifas de Natal, uma lanterna e, no lugar de honra, a minha colecção dos quatro The Lady Bird Nature Books, que com a compostura, a graça e a candura dos anos 50 do século XX, ensinavam a nossa criança a ver a paisagem, a reconhecer as alterações, as marcas e os sinais que cada estação imprime na natureza e nas actividades humanas. Por vezes também lá ficam a destilar o seu sortilégio a colecção de Contos de Andersen ou o livro das Princesas Esquecidas e Desconhecidas, de Rebecca Dautremer e Philippe Lechermeir…

Com o tempo, criei tradições de Natal muito próprias e pessoais, e repito-as, ou recrio-as, a cada ano. Sozinha ou acompanhada, pouco importa neste capítulo. Depois do sumiço que levou o cortejo encantado dos anjinhos de Natal, e do encontro com outros e outras desmancha-prazeres, cuidei de aprender a criar magia para consumo próprio. Sem dúvida uma das melhores aprendizagens que levarei desta vida.

Luiza Frazão