O achado arqueológico da civilização cretense foi uma
“bomba” no seio da comunidade de estudiosos de então, uma vez que, pelas suas
evidências, não correspondia a nada do que até aí fora descoberto e a nada do
que era “expectável” à luz dos valores patriarcais e masculinos que vigoravam e
que dominavam a ciência da altura.
Houve todo um conjunto de descobertas e de particularidades,
sobretudo através das manifestações artísticas que chegaram até à atualidade (e
daí a importância fulcral da arte para compreendermos esta cultura e esta
sociedade), que permitiram ver que se estava na presença de uma sociedade
“diferente”. Baseada em valores pacíficos – quando, à sua volta, já quase todas
as civilizações começavam a ser fortemente dominadas pelos valores bélicos –,
tratava-se de uma sociedade essencialmente baseada na economia agrária, próspera,
igualitária e estável.
Para além disto, chegou-se à conclusão de que se tratava de
uma sociedade intensamente religiosa, em que o centro do seu culto era a Deusa.
Na verdade, religião e vida quotidiana, misturavam-se de tal forma no
quotidiano das cidades-estado desta ilha, que sagrado e quotidiano se
entrelaçavam na vida dos cretenses. O próprio exercício físico e o desporto,
bem como todo o tipo de atividades lúdicas e de entretenimento, estavam
intimamente ligadas às práticas e cultos religiosos. Religião e divertimento
associavam-se em harmonia, e a prática de jogos e desportos era caracterizada
pela participação igualitária de mulheres e homens.
O que provavelmente foi uma das particularidades mais
marcantes, e que mais deve ter impressionado os arqueólogos que primeiramente
exploraram esta civilização, ainda muito imbuídos dos valores patriarcais (a
“lente” através da qual observavam e analisavam os factos e fenómenos de estudo
científico): a igualdade entre géneros. A forte e frequente presença das
mulheres na arte cretense leva a concluir que elas representavam papéis sociais
prestigiados, tanto no culto religioso da Deusa, como a nível de poder
(chegando-se a sugerir a existência de uma rainha cretense).
Mas também a música, o canto e a dança integravam tanto as
expressões culturais e artísticas dos cretenses como as suas próprias práticas
religiosas. Todos estes aspetos se fundiam num só: “(…) a religião para os
cretenses constituía uma ocupação feliz” e “(…) “Toda a vida impregnava-se de fé
ardente na Deusa Natureza, fonte de toda criação e harmonia”, citando a autora
da obra. Desta forma, era inevitável que o sistema de valores e crenças desta
civilização se baseasse firmemente na paz, na dádiva, na compaixão, na beleza,
nos prazeres da vida. A própria liberdade e fluidez com que a sexualidade era
perspetivada e vivida pelos cretenses conduzia a um pacifismo e a uma anulação
ou redução da agressividade, que se evidenciava mais noutros povos.
E, centrando-se no culto profundo e muito enraizado da
Deusa, tal como afirma Nicholas Platon: "o medo da morte era praticamente
obliterado pela omnipresente alegria de viver".
Estas são, em traços gerais, as características principais
que diferenciam esta cultura, mas existem muitas mais particularidades que a
distinguem das outras sociedades suas contemporâneas.
Uma delas é o facto de a sociedade minóica (assim chamada
devido ao Rei Minos) ter sido uma sociedade muito baseada no “encanto pela
vida”, pela “sensibilidade”, e “amor à beleza e natureza”, como se pode ler na
obra de Riane Eisler. De uma forma geral era uma cultura baseada em valores
hedonistas, de prazer, de valorização do lado belo e de harmonia da vida, e a
arte, que chegou até nós, demonstra-nos isto de forma evidente: desde joias, a
estatuária, aos frescos, entre outras formas de arte descobertas.
Em termos de estilo de vida, os cretenses eram fortemente
ligados à natureza e ao respeito e usufruto da mesma, pelo que até as
habitações particulares, edifícios públicos e demais construções refletiam esse
estilo de vida.
Concluiu-se também que a sua organização social era
caracterizada por uma justa divisão da riqueza, não existindo assimetrias
sociais profundas, como nas outras civilizações desenvolvidas da época;
registava-se uma significativa prosperidade económica (baseada não só na
agricultura, mas também, posteriormente, pela pecuária, indústria e comércio,
essencialmente, marítimo, que floresceu dadas as privilegiadas condições
geográficas da ilha). Paralelamente, regista-se um avançado sistema de obras
públicas, que abrangia desde estradas a sistemas de distribuição de água, etc.,
muito avançados e completos.
No entanto, nenhum destes aspetos, e esta é uma das
singularidades que mais sobressaem, conduziu a uma sociedade onde a noção de
poder fosse autocrática ou baseada na violência ou exploração de uns grupos
sociais por outros. De forma alguma existem indicações de que o poder estivesse
concentrado apenas num reduzido número de indivíduos, nem tão pouco que se
tratasse de uma sociedade baseada no poder armado: verificou-se a ausência de
estruturas de defesa ou fortificações. O que sugere que a participação em
guerras dentro ou fora da ilha seriam provavelmente quase inexistentes.
Ainda assim, é pouco provável que não tenham existido combates
para defenderem o seu rico território, no entanto, não eram esses os seus
valores dominantes, nem a própria arte cretense valoriza ou glorifica os atos
de guerra.
A autora Riane Eisler indica-nos fortes indícios de que em
Creta o poder teria sido exercido pelas mulheres, e que estas teriam tido um
papel muito relevante na vida religiosa e social das cidades da ilha.
As mulheres estavam mais retratadas “nas artes e ofícios”, o
que reflete uma posição social, religiosa, política e económica elevada ou de
destaque, e eram frequentemente retratadas na esfera pública, o que é sinónimo
de respeito e prestígio na sociedade (ao contrário daquele que, posteriormente,
foi o sentido da evolução cultural humana, que remeteu cada vez mais as
mulheres para a esfera doméstica e privada, sem serem vistas nem terem “uma voz
própria”). O papel feminino era bastante ativo em todas as esferas da
sociedade.
De facto, toda a conceção de beleza, de paz, de harmonia,
lúdica e de respeito (pelo outro e pelo meio ambiente), e a própria posição
igualitária entre sexos, presentes nos traços culturais e no legado artístico
de Creta, já nos indica que estamos na presença de uma sociedade que não é
dominada pelos valores “ditos masculinos”, da guerra, da destruição ou da
violência.
Os próprios valores cretenses, baseados “num espírito
feminino”, como se observa na História da Arte, na perspetiva de Jaquetta
Hawkes, espelhavam-se até na arquitetura característica da ilha.
Aliás, é sobretudo através da arte que chegam até nós os
mais evidentes indícios de que o poder era exercido pelas mulheres: a autora
fala-nos da própria “(…) influência da sensibilidade feminina — [que ofereceu]
notável contribuição à arte minóica".
Muito do que se sabe sobre a cultura cretense advém do
estudo da produção artística desse período e local: a arte cretense, por
exemplo, não glorifica as atividades bélicas ou a guerra em geral. Há um
evidente hedonismo em Creta: a vida agradável, rodeada de beleza e a comunhão
com a Natureza; uma cultura de bem-estar e igualdade entre classes
socioeconómicas e entre géneros.
O culto da Deusa, ali, era absolutamente central, e Ela é
representada, por exemplo, num papel supremo: numa carruagem que leva um
defunto para a sua transformação e renascimento, no eterno ciclo da
vida-morte-vida. As Suas sacerdotisas
são frequentemente representadas, em frescos, liderando procissões, cultos e
rituais. A própria historiadora da arte, Hawkes, coloca a hipótese de existir
uma rainha cretense, que também é retratada: ou seja, estamos perante o próprio
centro do poder, no feminino.
Toda a presença da simbologia da Deusa (intensamente ligada
à natureza, tal como a borboleta e a serpente, símbolos da transmutação e
metamorfose, e o machado de lâmina dupla, utilizado no cultivo agrícola, que
simbolizava a própria divindade da transformação e do renascimento, e também a
fertilidade da terra, sustento de toda a população) é outro fator que indicia o
poder das mulheres nesta sociedade, pois surge com muita frequência nos mais
variados objetos de arte que foram descobertos.
O próprio facto de não existirem estátuas de governantes,
por exemplo, um reflexo tão típico do enaltecimento do “poder masculino” de
então, indicam-nos que o poder era mais exercido pelas mulheres.
Outro facto que indicia que a cultura, essencialmente
centrada na Deusa e no papel e poder femininos, estava bastante enraizada, é o
de que, mesmo após o início do período histórico seguinte, a Idade do Bronze, e
com a complexificação das estruturas sociais, isso não significou em Creta o
declínio do poder nem do status das mulheres, pelo contrário, pareceu até
fortalecê-lo. A Deusa continuou a ser
cultuada e a ser o centro da vida nesta civilização. E, como tal, os seus
princípios de conceção “feminina” do mundo, prevaleceram, da mesma forma que a
importância do papel das mulheres também.
Avançando mais ainda nesta interpretação, temos a evidência
de que o poder nesta cultura estava intimamente ligado ao sexo feminino, pois,
tal como nos refere Eisler, “(…) em Creta as virtudes "femininas" de
concórdia e sensibilidade tinham prioridade social” – aspetos que não eram
desvalorizados, como acontece(u) noutras culturas, e de que houve uma noção
diferente de poder.
O poder era exercido não com base na força física ou do
confronto militar ou da subjugação, mas sim com base numa noção de “responsabilidade
maternal” (uma “característica do modelo de parceria da sociedade”, citando a
autora).
Por fim, temos outra forte confirmação de que o poder era
exercido pelas mulheres na sociedade cretense: a sucessão e herança eram feitas
por linhagem feminina. Estamos, portanto, perante uma sociedade matrilinear.
Uma sociedade onde a Deusa assume o poder divino central, e as
sacerdotisas/rainha exercem o poder temporal, pese embora se mantivesse sempre
o espírito de harmonia e igualdade entre mulheres e homens cretenses.
Creio que a mensagem da excecional civilização cretense é a
de que pode constituir um modelo e um exemplo tanto para a nossa sociedade
atual como para as futuras, cujas bases já se estão a construir agora. É
admirável o facto de existirem provas concretas (e não “sonhos utópicos”, como
muito bem sublinha Eisler) de como, há milhares de anos, existiu uma sociedade
desenvolvida, que transmite uma mensagem que corresponde ao seu próprio
sistemas de valores: igualitária, próspera e pacífica, com um paradigma
totalmente invertido em relação às atuais.
Esta mensagem, em minha opinião, reflete-se nos seguintes
aspetos: ausência de guerra e os valores de convivência pacífica e harmoniosa;
valores ecológicos e de respeito pela natureza; uma conceção diferente de poder
e um conceito diferente de governação.
A ausência de guerra e a centralidade dos valores de paz,
estabilidade e harmonia entre povos vizinhos ou distantes é outro aspeto. Não
se registavam manifestações que habitualmente conotamos como “características
masculinas” de orgulho ou barbaridades para com o outro. A própria arte de
Creta espelha a ausência de “dominação, destruição e opressão”, como refere a
autora.
Verificámos em Creta a quase ausência de conflitos militares
dentro da própria ilha ou com territórios circundantes, ao contrário do que
prevalece ainda hoje, nas culturas predominantes, de valores patriarcais, onde
a guerra parece ser o infrutífero e destrutivo modo de “resolução” de conflitos
entre povos.
Valores ecológicos e de respeito para com a natureza: O
culto da Deusa, vista como a Grande Mãe de tudo o que existe e A grande
provedora da própria subsistência das comunidades, profundamente centrado na
própria natureza, nos ciclos das estações e na abundância e prosperidade que
advinham da terra e das atividades agrícolas, com certeza que foi a base deste
mesmo respeito por tudo o que se relacionasse com a vida natural. O que entra em
franco contraste com todas as agressões que as comunidades humanas têm vindo a
cometer para com os ecossistemas, e este é um dos exemplos mais fundamentais
para a humanidade atual, porque dele depende a própria sobrevivência da espécie
humana e do Planeta.
Em Creta existiu uma conceção de poder, e igualmente de
governação, extremamente diferente das sociedades que lhe eram contemporâneas,
certamente das que se lhes seguiram, e das atuais. Tal como nos revela Riane
Eisler, não existia, como por exemplo no Antigo Egito ou na Suméria, a
“glorificação” dos governantes: a arte testemunha este facto com a ausência de
monumentos ou estátuas dedicadas à dignificação dessas personalidades. Pelo
contrário, o poder era exercido de forma pacífica e igualitária, de forma
limitada, e com provável representação das diferentes classes
socioprofissionais de cada cidade-estado de Creta. Um aspeto do qual certamente
se distanciaram as culturas e povos que se lhes seguiram, mas que se aproxima
daquele que hoje vigora nas sociedades ocidentais mais justas e igualitárias,
por exemplo. Ainda assim, ainda estamos longe da ausência de representação de
“figuras de poder”, mesmo na nossa sociedade atual, onde ainda se cultivam
símbolos do poder e da governação tipicamente patriarcais. Temos o exemplo das
monarquias atuais, europeias e não só, onde os símbolos, ainda que de um poder
não efetivo na maior parte dos casos, estão bastante presentes. E, sem recuar
muito no tempo, temos o próprio exemplo dos símbolos do poder e dos seus detentores,
propagados e cultivados no Estado Novo, em Portugal, e em outros regimes
autocráticos similares.
Em termos de governação, o exemplo de Creta também transmite
uma importante mensagem de igualdade e respeito inter-pares.
Ainda que existisse (como era muito comum na
época) uma estreita fusão entre religião e poder, como já referimos acima,
cultivava-se o respeito e a harmonia entre iguais, no que respeita aos
soberanos das diferentes cidades-estado da ilha. E também uma importante
limitação de poderes, por parte de altos cargos de conselheiros oficiais, que
faz concluir que provavelmente haveria uma conceção do poder e da governação
como uma representação de interesses do povo, junto de quem os exercia – o que
se trata de um sistema político altamente avançado e que impede a evolução para
um poder despótico, tão comum nesta época, e tanto tempo antes do nascimento da
democracia da Grécia do período Clássico. Algo que não corresponde à
existência, que ainda perdura, de regimes autoritários em pleno século XXI.
A mensagem principal que Creta nos transmite, na atualidade,
é, pois, a de que é efetivamente possível e exequível (e não uma fantasia),
pensar e construir uma sociedade de paz, de justiça social, de igualdade em
todos os sentidos, do respeito pelo planeta em que vivemos, sem prejuízo do
crescimento económico, do desenvolvimento tecnológico e do bem-estar material
dos indivíduos. É possível, efetivamente, construir uma sociedade em que
prevalece a cooperação e a “parceria”, como lhe chama Eisler, em vez de
destruição e dominação.
Texto de: Andreia Mendes
Imagens: viagem a Creta 2015, Luiza Frazão