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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Ansiando pela Escuridão

Virgem negra, Nazaré, Portugal
Texto de Elizabeth Ann Bartlett

(tradução Luiza Frazão)

Quando me mudei para o Minnesota, toda a gente lá em casa expressou preocupação com as baixas temperaturas do Inverno. Ninguém me avisou, todavia, sobre o quão escuros eles seriam, nem quanto tempo duraria essa escuridão. Durante anos, reclamei, mas gradualmente passei a aceitar a escuridão. A escuridão convida-nos a desacelerar, a descansar, a dormir, a sonhar. É um momento de abertura para as nossas profundezas e para as de outras pessoas. Existe uma espécie de magia na escuridão. Sem a dura luz do julgamento, no escuro, é mais provável que partilhemos os nossos segredos e histórias, as nossas feridas e as nossas dúvidas, os nossos corações e esperanças uns e umas com as outras. À medida que as árvores caducas perdem as suas folhas, o firmamento também se abre, dando origem ao céu noturno. A escuridão do inverno dá-nos de presente as estrelas e uma sensação de sabermos o nosso lugar no universo. Elas chegam como velhas amigas. As Sete Irmãs das Plêiades aparecem à noite, e Orion cumprimenta-me todas as manhãs. Quando o cometa Hale-Bopp era visível da Terra,  procurei-o nas minhas viagens noturnas para casa, e lá estava ele, o meu companheiro constante nas noites frias do inverno. As estrelas lembram-nos de que não estamos sós, que todas e todos somos parentes, pois somos matéria das estrelas.

Ultimamente, tenho sentido falta da escuridão. Quando me mudei para a minha casa na floresta, a noite era escura. À medida que a cidade cresceu, mais casas foram construídas e postes de luz acrescentados. A escuridão foi eclipsada por um crepúsculo sem fim. Nos nossos esforços humanos para resistirmos à escuridão, esquecemos o mandamento terreno para descansar e todas e todos estamos a sofrer as consequências. A poluição luminosa afeta a nossa saúde, diminuindo a liberação de melatonina - abrindo caminho para a perda de sono, aumento da ansiedade e uma série de outras doenças. A saúde de outros animais também é afetada, assim como a migração das tartarugas marinhas e das aves que navegam pelas estrelas e pelo luar. Iluminamos a noite para não nos perdermos na escuridão, mas talvez nos tenhamos perdido por estarmos demasiado iluminadas/os. Como o bolbo da primavera que precisa do frio e da escuridão para florescer, também nós precisamos da nutrição da escuridão profunda para restaurarmos a nossa criatividade e poder.

Gruta de Alcobertas, Portugal

No nosso anseio pela escuridão, não é apenas pela escuridão física que ansiamos, mas também pela metafísica - o poço profundo da antiga escuridão divina, a matriz original. Como China Galland meditou: "O anseio pela escuridão [é] também um anseio pelo ventre de Deus." [I] No seu Anseio pelas Trevas, Galland lembra-nos da persistência desse anseio e da sua emergência como Ishtar, Ísis, Astarte, Asherah, Tara, Kali, Parvati, Durga, bem como Maria e os místicos cristãos que escreveram sobre a maternidade do divino. As suas representações iconográficas abundam em todo o mundo, desde os templos de Tara em toda a Ásia aos muitos santuários para a Madona Negra em toda a Europa. Não é de admirar que é neste tempo de escuridão profunda que Maria é celebrada dentro do Cristianismo - Maria não como passiva, mas como a força divina materna forte, corajosa, ferozmente protetora e terrena.

Lucia Birnbaum lembra-nos que a primeira mãe africana é a nossa herança genética, homenageada por milênios como Erishkegal, Ísis, Lilith, Kali, Oxum, Hagar. Foi somente com o surgimento do patriarcado que o divino feminino negro foi rebaixado, deslocado, apagado e relegado para o espaço subterrâneo. No entanto, ela continua a crescer na nossa psique e nos nossos anseios mais profundos. A cada ano, milhares caminham centenas de quilómetros em peregrinação para visitar esses santuários, todas e todos buscando conexão com as energias femininas sombrias, divinas e pré-patriarcais das quais tanto precisamos.

Galland escreve: “Dizer que alguém está 'ansiando pela escuridão' é dizer que anseia pela transformação, por uma escuridão que traz equilíbrio, plenitude, integração, sabedoria, discernimento.” [Ii] Certamente, se existe um tempo em que precisamos de restaurar o equilíbrio e obter discernimento e sabedoria, é agora, pois vivemos num mundo profundamente desequilibrado. Diz-nos a Física teórica que a matéria escura é aquilo que mantém as estrelas e as galáxias juntas - matéria, da mesma raiz que mãe - mater. Termos banido a matéria escura desequilibrou-nos. Eu imagino um mundo que saiu fora do seu eixo, vacilando através do universo. As energias preponderantes do ódio, violência, opressão, dominação e patriarcado desequilibraram-nos. Precisamos das qualidades do divino feminino escuro - compaixão, justiça, igualdade e a transformação do patriarcado hierárquico violento numa democracia pacífica e radicalmente igualitária. Já estivemos lá antes; podemos voltar.

Gruta Rio Maior
bell hooks [iii] escreveu sobre como, quando criança, o seu espírito encontrava nutrição nas casas de mulheres negras. As mulheres negras resistiram à opressão criando lugares para se curarem, se afirmarem e terem a sua dignidade restaurada - lugares onde novas possibilidades poderiam surgir. A matriz do feminino negro divino é um lar, fomentando tanto a nossa resistência quanto a criação de novas possibilidades. Como lugares de renovação e oásis de resistência encontrados nas casas das mulheres negras, habitando com o divino feminino escuro, ela descobriu que encontramos “. . . o chão do nosso ser, o lugar do mistério, da criatividade e da possibilidade, pois é aí que podemos construir a mente que pode resistir, que pode rever, que pode criar os mapas que quando seguidos nos libertarão. ”[iv] Podemos começar, como disse Audre Lorde, “relembrando o que é escuro, antigo e divino dentro de nós”, [v] pois é desses lugares escuros interiores “. . . que, escondido e crescente, o nosso verdadeiro espírito surge. . . . “[Vi]

Neste tempo de escuridão, que os nossos espíritos possam elevar-se a esses lugares de possibilidade – as dádivas da matéria escura.

 

Notas (não traduzidas)

[i] Longing for Darkness, 54.

[ii] Ibid., 152.

[iii] I was writing this section when I learned of bell hooks’ death.  I dedicate this piece to the legacy of wisdom and love she gave us all.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bell_hooks

[iv] “Lorde,” 243.

[v] Sister Outsider, 69

[vi] Ibid., 36.

Notes

Birnbaum, Lucia Chiavola. Dark Mother: African Origins and Godmothers.  San Jose: Authors           Choice Press, 2001.

Eisler, Riane. The Chalice and the Blade: Our History, Our Future. NY: Harper One, 1988.

Galaxies Protected by Dark Matter | Space

Galland, China. Longing for Darkness: Tara and the Black Madonna. NY: Penguin, 1990.

 

hooks, bell. “Lorde: The Imagination of Justice.” in Byrd, Rudolph et. al. eds. I Am Your Sister:

Collected and Unpublished Writings of Audre Lorde. New York: Oxford U. Press, 2009.

______. Yearning: Race, Gender and Cultural Politics. Boston: South End Press, 1990.

Lerner, Gerda. The Creation of Patriarchy. New York: Oxford University Press, 1987.

Light Pollution | National Geographic Society

Lorde, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches by Audre Lorde. Trumansburg, NY: The

Crossing Press, 1984.

 BIO: Beth Bartlett, Ph.D., é educadora, autora, ativista e companheira espiritual. Ela é Professora Emérita de Estudos sobre Mulheres, Género e Sexualidade na Universidade de Minnesota-Duluth. Beth também serviu como co-facilitadora do grupo de estudos sobre Espiritualidade da NWSA. É autora de vários livros e artigos, incluindo Journey of the Heart: Spiritual Insights on the Road to a Transplant, Rebellious Feminism: Camus’s Ethic of Rebellion and Feminist Thought, and Making Waves: Grassroots Feminism in Duluth and Superior. Tem estdo ativa em movimentos feministas, pela paz e justiça, pelos direitos da natureza e pela justiça climática, e tem sido uma defensora comprometida das e dos protetores da água.

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