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domingo, 25 de abril de 2021

BORA LÁ SALTAR NO ESCURO – Confissões duma Mulher para lá da Meia-Idade


Sou uma mulher de mais de 65 anos. Fui professora e continuo a sê-lo, embora a estrutura da instituição tenha mudado radicalmente ou já nem exista. Não trabalho com rede, como aconteceu por largos anos. Não tenho rede. Afirmo a minha visão por mim própria, dou a cara por ela, como se diz, embora por outro lado possa dizer que tenho uma vasta rede de apoio, constituída pelas mulheres que me precederam ou que são minhas contemporâneas no Movimento da Deusa, mulheres com as quais comungo da mesma perspectiva das coisas, da mesma devoção à Deusa, da mesma certeza de que sem a Sua representação no panteão divino da humanidade actual, as mulheres nunca poderão aspirar a assumir verdadeiro poder neste mundo (ver Carol Christ “Por que é que as mulheres precisam da Deusa”); mulheres que comungam do mesmo sonho dum futuro sustentável, para a concretização do qual o papel das mulheres é decisivo; mulheres que sabem que é preciso resgatar a Deusa antiga, nas Suas várias faces ou arquétipos, que reflectem a nossa humanidade, nas Suas múltiplas denominações e qualidades; mulheres conscientes de que precisamos de refazer a nossa cultura própria, de reinventar as nossas tradições, a nossa forma própria de ser e de estar no mundo, antes da domesticação patriarcal, de levantar do chão e de limpar da ignomínia o nosso poder de dar e de cuidar da vida, de redescobrir e de sacralizar o poder do sangue menstrual, de sacralizar o corpo e toda a natureza de que somos parte. 

Sou uma mulher de mais de 65 anos, activista da Deusa, e há partes de mim que por vezes se sentem cansadas, quase esgotadas… Sou uma mulher. Ser uma mulher com uma visão ou ser um homem com uma visão são realidades muitíssimo distintas. Na tradição masculina, na androcracia em que vivemos, por trás dum homem, grande ou pequeno, há sempre uma mulher – quanto mais não seja para acarretar com culpas e frustrações – que está lá quando ele chega a casa cansado, que o apoia, que diz ámen à sua visão, que torce por ele e fica orgulhosa quando as coisas correm bem. Ela faz a sopa, mantém o espaço, cuida dos aspectos práticos do quotidiano. Atrás dum homem está uma Esposa, que é uma espécie de extensão ou substituta da mãe, com funções acrescidas. Claro que isto é o quadro clássico, ou seja, já era, hoje em dia em que tudo está mais fluído, o que temos é a Companheira, que poderá ser mais intermitente, descartável, mas eventualmente bem mais talentosa e tecnologicamente funcional. Sempre existe uma ou mais para suprir as necessidades de apoiar, gerir, manter o espaço, torcer, dizer ámen, ajudar, e de forma cada vez mais prática e eficiente. Embora também existam, são raros, raríssimos, convenhamos, os casos em que estes papéis se invertem. Por norma, atrás duma mulher com uma visão não está ninguém a proteger o seu espaço nem a dar-lhe energia. O mais certo é que aconteça precisamente o contrário. Atrás dela pode estar o próprio marido a disputar a sua atenção e energia, ou o resto da família, que não acha a mínima graça à sua originalidade, que a conhece demasiado bem e por isso sabe que é um fake, que sempre foi. “Quem é que pensas que és?”. 

Óbvio que se ela fosse um homem, sim, aí teria toda a legitimidade para escrever e publicar livros, por exemplo, com toda a família a assistir orgulhosa ao seu lançamento. Já uma mulher sozinha a lançar um livro pode acontecer não ter uma única pessoa da família a assistir e a apoiá-la nesse momento. Ninguém. Não se fala nessa bizarrice, “Mas quem és tu afinal?”. Pode ser que atrás dela estejam pessoas que continuam a ver nela a mãe, cujo dever é apenas o de dar, e é bem possível até que nem ela própria saiba receber, que tacteie no escuro à procura do mais básico sentimento humano que é a sensação de que a sua existência é legítima, de que tem o direito de existir. E não se pode existir sem ter voz própria. E esta não é uma questão que amadureça saudável à medida que flui o tempo e se sucedem as estações, muito pelo contrário. Duvida sempre quando te disserem que a esperança de vida aumentou… As suas dúvidas existenciais como mulher são projectadas sobre pessoas que contestam a sua autoridade, desvalorizando tudo aquilo que com tanto esforço e trabalho, enfrentando tantos desafios, conseguiu, desmontando uma a uma todas as possíveis zonas de conforto. 

Uma mulher sozinha, recusando um enterro em vida, com a sua visão e voz própria, tem de ser capaz de conviver e de abraçar a impostora que se lhe colou à pele e à imagem, tem de poder olhar para ela no espelho e sossegá-la: “Bora lá saltar no escuro, segura-te!”. É a impostora em si que aguenta a parte das mil e uma razões para não, nunca estar à altura daquela Anciã longínqua, duma qualquer cultura exótica, idealizada pelo photoshop e enquadrada pelas frases prontas a servir do fast food verbal new-age. 

Uma mulher real sozinha, a partir de certa idade, é por norma suspeita, e se algum poder conquistou com o seu esforço, discernimento e coragem vai ser-lhe pedido que trate de o repartir, pedacinho a pedacinho, até não sobrar mais nada, ou que o use para promover outras pessoas. Afinal se já não és a mãe que se sacrifica como a vela se consome e arde para que haja luz, para que serves afinal? 

 Mas nesta escuridão criativa da alma, abençoada seja, a luz da Deusa nítida se recorta: “Pára de resmungar, de lamber as feridas, avança”… Pois… talvez, quem sabe, abrindo caminhos... 

 ©Luiza Frazão

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