As Aves, as Cobras e o corpo invisível da Deusa
"As aves e os objetos do céu formam um aspecto do corpo visível. O ar, no entanto, conduz-nos ao reino do invisível. Podemos senti-lo quando ele sopra sobre nós, e conhecemo-lo no nosso corpo quando respiramos. A respiração transmite vida e espírito, uma palavra que deriva do latim spiritus, que significa "respiração, sopro de vida". Mas na nossa extensão normal dos sentidos, não conseguimos ver nem tocar o ar.
A ideia do corpo invisível da Deusa foi-me sugerida pela primeira vez quando pensei no significado das aves nas religiões e nas mitologias do mundo. Na arte neolítica, descobrimos uma grande série de esculturas, cerâmicas e pinturas de Deusas aladas. Muitas Deusas, como Afrodite e Athena, têm aves como companheiras. Outras Deusas e Deuses transformam-se em aves, ou recebem mensagens de aves, como o Deus escandinavo Odin, cujos corvos gémeos, Hugin e Munin - o Pensamento e a Memória – lhe trazem notícias do mundo inteiro. Também os xamãs de muitas culturas se vestem como aves para viajar pelas regiões dos espíritos.
As aves representam a Deusa porque viajam no ar, o seu corpo invisível, enquanto os humanos só podem viajar no corpo visível da terra; para viajar no mar, precisamos de criar barcos, que com a sua forma semelhante a um útero, adquirem o caráter de fêmeas. E como estas aves "falam" sob a forma de canto, elas podem ser as portadoras da sabedoria codificada da Deusa, assim como a inspiração para a arte, outra maneira do seu corpo invisível se movimentar rumo ao visível.
As aves ligam-nos às cobras, mesmo que apenas através da sua oposição simbólica. Elas movem-se através do ar invisível. Já as cobras, mais que qualquer outra criatura, deslizam através do corpo invisível da imaginação. As mitologias de todo o mundo descrevem a conexão íntima - frequentemente a antipatia - existente entre as aves e as cobras. Em quase todas as culturas, ambas aparecem como as criaturas primárias da Deusa. E nem sempre são inimigas. Muitos mitos e histórias de fadas contam a versão de um herói que prova o sangue de uma cobra e aprende a "linguagem das aves", ou seja, todo o conhecimento. A ave viaja para os mundos invisíveis do alto; as cobras deslizam pelos mistérios que há debaixo da terra.
As aves e as cobras parecem representar a cisão (ou o jogo) entre o consciente e o inconsciente, a racionalidade e o instinto. É fácil compreender o fascínio pelas aves com a sua capacidade de voarem com graça rumo ao céu. Mas o que proporciona às cobras o seu mistério, a sua acalentada resistência em quase toda a mitologia?
Podemos considerar várias possibilidades. Para se desenvolver, as cobras precisam de trocar a sua pele periodicamente, o que lhes proporciona uma aura de imortalidade. As cobras têm uma qualidade andrógina: esticadas, parecem falos; enroladas, assemelham-se às dobras da vulva. (...) Com essa mistura de imagens masculina e feminina, as cobras são a sexualidade encarnada. E quando observamos as cobras enroladas em volta dos braços da Deusa, ou movendo-se através do seu cabelo, vemos a força dos nossos mais antigos primórdios unindo-se à imagem do poder divino."
Rachel Pollack
Imagem: a Deusa Serpente de Creta
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