Excertos da análise, muito interessante, do caso duma paciente, feita à luz da Psicologia Arquetípica:
O ESPECTRO DO FEMININO: DO SAGRADO AO PROFANO
Ana Carolina Silva Freire
Elisa Maria Chab Billwiller
Márcia Helena Mendonça
“(…) S. traz, em suas manifestações conscientes, clara identificação com o arquétipo de Deméter, a deusa maternal. Em contrapartida, em seus sonhos, aparece o arquétipo de Afrodite, a deusa do amor. Tal aspecto é confirmado pelo fato de S. manifestar grandes dificuldades em conciliar seus impulsos maternais e eróticos. Da análise dos sonhos e discurso da paciente, estabeleceu-se com clareza a díade Deméter-Afrodite, Lilith-Eva, reforçando a idéia da cisão do feminino em S. Segundo CORBETT (1990), o mesmo díptico aparece na mitologia cristã, entre a Virgem Maria e Maria Madalena. A Virgem Maria é a idealização da feminilidade, pessoa de absoluta pureza sobre a qual não há sombra de pecado. Sua primeira associação é com o filho, que é sacrificado; o papel de Maria como esposa e mulher é insignificante. No lado oposto, está Maria Madalena, o lado sexualizado da díade, como figura feminina com quem as mulheres podem se relacionar sem trair sua natureza essencial. Sua imagem, como o da prostituta sagrada, é capaz de encerrar todos os aspectos dinâmicos e transformadores do feminino - paixão, espiritualidade e prazer. Através dela, a Grande Deusa, vive no cristianismo. Da mesma maneira as mulheres do mundo patriarcal, as modernas Evas, frequentemente encontram sua natureza Lilith no espelho, isto é, na sua reflexão narcísica. A mulher precisa ficar atenta a seus próprios valores naturais, unir Lilith a Eva, e viver o eterno ciclo de alternância entre estes opostos. Esta divisão entre o sagrado consciente (identificado com Deméter, Eva e a Virgem Maria) e o profano inconsciente (representado por Afrodite, Lilith e Maria Madalena), tornam o feminino consciente de S. unilateral e portanto neurótico.
(…)
Pela imensa dificuldade de integrar seu feminino, o consciente da paciente tende a chamar para si o rapto e a violência pois, aquilo de que ela se defende e que constitui o oposto de sua atitude consciente, não lhe dará sossego e a perturbará até que seja aceito.
Segundo JUNG (1995), a única pessoa que escapa da lei sinistra da enantiodromia* é aquela que sabe como se afastar do inconsciente, não reprimindo-o - porque neste caso o inconsciente haverá de atacá-la pelas costas - mas, colocando-o claramente à sua frente, como aquilo que ela, a pessoa, não é. Esta atitude permitiria, por um lado, despojar o ego da falsa cobertura da persona, e por outro, do poder de sugestão das imagens primordiais, o que para Jung representa o objetivo do processo de individuação. A moralidade judaico-cristã tem, de forma direta ou indireta, influenciado poderosamente as atitudes com relação ao feminino. Esta visão convencional relega o feminino ao exílio, negando o instinto, o sentimento e dissocia a maternidade da sexualidade. Este legado milenar de cisão interna toca indiscriminadamente a todas as mulheres, destituindo-lhes de identidade como tal. Mulheres eternamente em busca de si mesmas, com a única e suprema pretensão de serem apenas o que lhes é inalienável por herança genética, por direito e por justiça: serem mulheres na mais profunda e plena acepção da palavra.”
*Enantiodromia é um conceito introduzido na psicologia pelo psiquiatra Carl Gustav Jung no qual a superabundância de qualquer 'força' inevitavelmente produz o oposto do que é expectativado. É de certo modo equivalente ao princípio de estabilidade no mundo natural, onde qualquer extremo vem a ser incompatível com a idéia de equilíbrio, tal como esse conceito é entendido.
Jung o utilizou particularmente para se referir à ação inconsciente, conflitante com os desígnios da mente consciente. ("Aspectos da Masculinidade",capítulo 7). Wikipedia
Imagem: Perséfone, Dante Gabriel Rossetti