A
DEUSA NEGRA - A SOMBRA FEMININA
In MYSTERIES OF
THE DARK MOON – The Healing Power of the Dark Goddess, Demetra George,
HarperSanFrancisco, 1992
Traduzido
por Luiza Frazão
“Não
basta dizermos que é preciso uma nova relação com o feminino. Aquilo de que
precisamos mesmo é de nos relacionar com o lado negro do feminino.” Fred
Gustafson, The Black Madonna (Boston, Sigo Press, 1990)
Nas
sociedades tradicionais, que reverenciavam a lua como Deusa, a 3.ª fase negra
era personificada pela Deusa Negra, sábia e compassiva, que governava os
mistérios da morte, transformação e renascimento. Com o tempo, sucessivas
culturas foram gradualmente esquecendo o antigo culto da lua, e o antigo conhecimento
da ciclicidade da realidade, reflectida nas suas fases perdeu-se.
Na
nossa sociedade actual a maior parte de nós desconhece o potencial de cura e de
renovação que existe como qualidade intrínseca do processo cíclico da fase
escura da lua. Em vez disso, associamos a ideia de escuridão à da morte, do
mal, da destruição, isolamento e perda. Numa sociedade governada pela clara
consciência solar, fomos ensinad@s a temer, rejeitar, desvalorizar e
desempoderar tudo quanto se relaciona com os conceitos de escuridão – pessoas
de cor, mulheres, sexualidade, menstruação, natureza, o oculto, o paganismo, a
noite, o inconsciente, o irracional e a própria morte. Do ponto de vista
mítico, associamos todos estes medos da escuridão à imagem do feminino demoníaco
conhecido como a Deusa Negra, intimamente relacionada com a lua negra.
Ao
longo da história, o poder original da Deusa Negra enquanto renovadora foi
esquecido e ela tornou-se assustadora e destruidora. Em muitas mitologias do
mundo, ela foi descrita como a Tentadora, a Mãe Terrível, a Anciã que traz a
morte. As suas biografias mais tardias descrevem-na como negra, malvada,
venenosa, demoníaca, terrível, malevolente, fogosa. À medida que a cultura
patriarcal se tornou dominante, ela foi-se transformando num símbolo da
devoradora sexualidade feminina que faz com que o homem transgrida as suas
convicções morais e religiosas, consumindo-lhe a essência vital no seu abraço
mortífero.
Na
imaginação mítica das culturas dominadas pelo homem, a sua natureza original foi
distorcida e ela tomou proporções horríficas. Enquanto Kali, ela surge nos
crematórios, adornada com uma grinalda de caveiras, empunhando a cabeça cortada
do seu companheiro, Shiva, escorrendo sangue. Enquanto Lilith, ela voa pelos
céus nocturnos como uma demoníaca criatura que seduz os homens e mata
criancinhas. Enquanto Medusa, a sua bela e abundante cabeleira tornou-se uma
coroa de serpentes sibilantes e o seu olhar feroz transforma os homens em
pedra. Enquanto Hécate, ela persegue os homens nas encruzilhadas pela noite com
os seus ferozes cães do inferno.
Podemos
perguntar-nos por que razão a Deusa Negra apresenta uma imagem tão terrífica e
de que modo ela e a sua contraparte psicológica, o feminino negro, ameaçam a
nossa sociedade e criam destruição nas nossas vidas. E ainda como é que o seu
poder destruidor se relaciona com as suas qualidades de cura que permitem a
renovação. De que formas a Deusa Negra representa o nosso medo do escuro, do
oculto, da morte, da mudança; o nosso medo do sexo, bem como o do confronto com
o nosso ser e essencialmente com a nossa essência e a nossa própria
interpretação da verdade. As respostas para estas questões podem encontrar-se
na transição de uma cultura matriarcal para uma cultura patriarcal que ocorreu
há 5 mil anos. As pesquisas actuais sobre a história antiga, nos domínios da
teologia, da arqueologia, da história da arte e da mitologia, estão a trazer à
evidência que, com início há 3 mil anos AC, ocorreu uma transformação nas
estruturas religiosas e políticas que governavam a humanidade. Sociedades
matriarcais que cultuavam as Deusas da terra e da lua, como Innana, Ishtar,
Ísis, Deméter e Artemis, deram lugar a sociedades patriarcais, seguidoras do
deus solar e dos heróis masculinos, como Gilgamesh, Amon Ra, Zeus, Yahweh e
Apolo.
Antes
disso, uma conexão entre a morte e o renascimento estava implícita na cíclica
renovação da Deusa Lua, cultuada pelos povos antigos. A Deusa ensinava que a
morte mais não é do que a precursora do renascimento e que o sexo não serve apenas
para a procriação, serve também para o êxtase, a cura, a regeneração e a
iluminação espiritual. Quando a humanidade adoptou o culto dos deuses solares,
os símbolos da Deusa começaram a desaparecer da cultura e os seus ensinamentos
foram esquecidos, distorcidos e reprimidos.
Académic@s
contemporâne@s começam a descobrir evidências de como o culto da Deusa foi
suprimido, os seus templos e artefactos destruídos, os seus e as suas seguidr@s
perseguid@s e assassinad@s e a sua realidade negada. O novo sistema de crenças
das tribos dos conquistadores solares patriarcais renegaram a renovação
cíclica, negando assim o ciclo natural do nascimento, morte e regeneração da
Deusa Lua, o terceiro aspecto da Deusa Tripla. A Deusa Tripla da Lua, na sua
fase nova, cheia e escura, era o modelo da natureza feminina enquanto Donzela,
Mãe e Anciã. No seu culto original da Deusa Negra, como o terceiro aspecto
desta trilogia lunar, ela era honrada, amada e aceite pela sua sabedoria, pelo
seu conhecimento dos mistérios da renovação.
Durante
a prevalência da cultura patriarcal, entretanto, ela e os seus ensinamentos
foram banidos e remetidos para os recantos escondidos do nosso inconsciente.
(…)
Com
a diminuição da luz da lua, ela transforma-se na Anciã Negra na lua escura
minguante que recebe @ mort@ e @ prepara para o renascimento. Na sua sabedoria
que deriva da experiência, ela relaciona-se com a estação do inverno e o mundo
subterrâneo. Enraizada na sua força interior, a Deusa da Lua Negra está repleta
de compaixão e de compreensão da fragilidade da natureza humana e o seu
conselho é sábio e justo.
Ela
governa as artes da magia, o conhecimento secreto, os oráculos. A Anciã da Lua
Negra era artisticamente representada como a terrível face da Deusa que devora
a vida, e algumas imagens representam a sua vulva como símbolo da subsequente
renovação. Rainhas da magia e do submundo, como Hécate, Kali, Eresh-Kigal, são
símbolos da fase minguante da Deusa da Lua Negra.
(…)
@s
antig@s sabiam que tal como ela morria todos os meses com a velha Lua Negra,
também renasceria na Lua Nova crescente. Era a Anciã da Lua Negra que tomava a
vida no seu útero; mas @s antig@s também sabiam que a Deusa Virgem da Lua Nova
daria à luz a nova vida. A anciã era a doadora da morte assim como a virgem era
a que trazia o renascimento. A reencarnação era representada pela
refertilização da anciã-tornada-virgem. Sabia-se que a interacção contínua
entre a destruição que se transforma em nova criação é a eterna dança que
sustém o cosmos.
A
Deusa Negra eliminava e consumia aquilo que estava velho, degradado,
desvitalizado e sem préstimo. Tudo isso era transformado no seu caldeirão e
oferecido depois como elixir. Como podemos ver nos seus antigos rituais
sagrados, as antigas religiões partilhavam o conceito dum submundo para onde a
Deusa Negra conduzia a alma através dos negros espaços do sem forma, onde ela
exercia os seus secretos poderes de regeneração.
A
palavra inglesa “hell” vem do nome da terra subterrânea da Deusa escandinava
Hel. O seu subterrâneo não era entretanto um lugar de punição, mas antes o
escuro útero, simbolizado pela cave, o caldeirão, o fosso, a cova, o poço. A
Deusa Negra não era temida e o seu espaço não era um lugar de tortura. Ela
guardava os seus e as suas iniciad@s nos cemitérios, a entrada do seu templo.
Através da morte o indivíduo entra no ciclo da fase escura da lua; aí encontra
a Deusa Negra que o conduz através da passagem intermédia de volta à vida.
Quando
este natural desfecho do tempo de vida era compreendido e aceite, a Deusa Negra
era honrada pela sua sabedoria e amada pela sua ilimitada aceitação e compaixão
para com os habitantes da terra. Ela não era temida pelos povos que cultuavam a
lua, que entendiam a morte como um hiato no tempo entre vidas.
Sem comentários:
Enviar um comentário