No filme de grande sucesso Mamma Mia (2008, baseado num original de Catherine Johnson dirigido por Phyllida Lloyd), em que se enfatiza a natureza generosa, acolhedora,
liberal da mãe; nessa casa de sonho em que entramos e saímos e andamos
à vontade, em que existe sempre lugar para quem chega à mesa, em que a pasta ferve no lume enquanto a pizza e o pão cozem no forno, em que há
sempre vozes e animação e alegria, nessa casa vive ou é ela própria, a casa, a
nossa Mãe ideal e o seu colo aconchegante. Ela é aquela que nunca fecha a
porta e aceita e perdoa e passa a mão pela cabeça com carinho e sabe ouvir e
compreender e proteger e em cujo regaço nos sentimos a salvo das agruras do
mundo.
Posso dizer que tenho um conhecimento razoável dessa mãe; que um coletivo
de mulheres desempenhou de certa forma a função dessa mãe na minha infância. Eram
mulheres com as quais sempre podíamos contar. Para além da mãe natural, nem
sempre a mais acessível, diga-se, havia as tias, as avós, as primas ou
simplesmente as amigas da casa. Esse conjunto era o mais aproximado
possível, creio, da Mãe, do habitat natural que rodeia a Mãe nas sociedades
matrifocais, aquilo que Bachofen (antropólogo suiço do século XIX famoso pelas
suas teorias sobre as antigas sociedades matriarcais) referia pelo termo alemão
Muttertum.
Fonte: Cacilda Rodrigañez Bustos, http://pulposymedusas.blogspot.pt/2010/08/por-un-feminismo-de-la-recuperacion.html
O estranho é que, apesar de em países como o nosso e de uma
forma geral nos países latinos, ainda parecer existir muito este tipo de mãe, tal não é
infelizmente garantia nenhuma de estarmos a criar pessoas mais seguras de si,
empoderadas e com sentido de responsabilidade social ou cívica, no fundo todas
as qualidades de que o termo adulto/a se reveste na sua verdadeira acepção. Diria
até que em países com “menos mãe”, ou com mães menos “latinas” essas qualidades
parecem florescer melhor. Alguma coisa então não estará a funcionar como
deveria com as nossas mães que à partida parecem corresponder tão bem a um ideal de Mãe.
Pessoalmente, sinto que um dos grandes problemas reside na ideia muito
enraizada entre nós de que a Mãe tem de se sacrificar. As mães são aquelas que
se sacrificam, um pouco como a vela que arde e se consome até ao fim para que a sua luz nos possa iluminar. As mães sacrificam-se, dizem, pela família. Para que
a paz e a harmonia reinem na família, fazem tudo, acreditam muitas delas,
esquecendo-se de que a família tem a sua alma própria que tudo regista e tudo
sente e tudo vai de alguma forma acabar por revelar e manifestar. Mas então, na sua valorização do sacrifício, a mãe acaba muito por se calar,
por fazer de conta, por fingir que não ouve, por desculpar depressa demais, por
aceitar muitas vezes o inaceitável.
Na verdade, se quisermos ser rigorosas/os,
o sacrifício da mãe aconteceu já muito antes de ela o ser, uma vez que ele é a
base da própria família patriarcal que temos. Já agora, para quem viu o filme
que cito no início, é bom lembrar um dos dados mais extraordinários da trama,
que é o facto de nessa casa de sonho da Mãe não haver pai, e mais, de a heroína não saber sequer
quem é o pai da sua filha e sair incólume desse crime de lesa autoridade
patriarcal.... E a subversão continua no filme na forma como os homens com a
possibilidade de serem o pai se comportam, prontos e encantados com a ideia de
assumirem esse papel, sem competição nem exclusivismo, como acontece nas
sociedades matriarcais, ou matrifocais, em que o papel do pai é irrelevante, sendo
os homens da família a assumir a função de protetores e de educadores, fornecendo o modelo do masculino de que a criança precisa. Não é minha pretensão
aqui incentivar as mulheres a terem filhas e filhos sozinhas sem um pai, sejamos
realistas; com o tipo de sociedade em que vivemos, isso tornar-se-ia um peso
muito grande tanto para a mulher como para a criança.
Mas voltando à ideia do sacrifício da Mãe, ele aconteceu quando
este modelo em que a mãe era central foi substituído por aquele que temos em
que ela está sob a alçada do pai. O poder da Mãe, que refletia ou
emanava do tipo de divindade cultuada, a Grande Mãe Criadora, passou para
segundo plano quando a divindade mudou de género e passou a ser o Pai. Todo o
modelo mudou, os valores que regiam a sociedade mudaram, o imperativo tornando-se
agora o domínio e a conquista em vez de a proteção da vida. Fomos expulsas/os
do paraíso, acabou-se a Idade de Ouro, pela lei da espada patriarcal, como tão bem
nos refere Riane Eisler nessa obra absolutamente ímpar que é O Cálice e a Espada (Via óptima, Porto).
Assim, já só por um acaso temos o tipo de maisonnée
(um termo popular francês que define não só a casa como o coletivo de pessoas que
nela vive ou que gravita à sua volta) do filme Mamma Mia, que nos fornece uma
visão, obviamente muito idealizada, do genuíno reino (ou seria raino?) da Mãe, ou tão genuíno quanto o
sistema que respiramos permite, e que em resumo é uma Mãe com poder e autoridade.
Porque, não nos iludamos, não é por vivermos numa família de mulheres nem por lá em casa a última palavra ser a da mãe, que podemos dizer que ela tem poder genuinamente seu. Nenhuma mãe com poder
emanado do seu próprio coração e forma de estar no mundo deixaria que um filho
seu fosse para a guerra, por exemplo, consentiria numa forma de progresso que
implique destruição da natureza, ou aceitaria na sua cama um homem a tresandar
a carnificina e a outros abusos de poder e profunda insensibilidade ao
sofrimento alheio. O poder que nos parece muitas vezes emanar da mãe no tipo de
sociedade em que vivemos é na verdade o poder patriarcal que ela assume como
seu sem o ser, tendo perdido o rasto dos verdadeiros valores que em
estado selvagem, de antes da
domesticação patriarcal, emanariam do seu coração de mulher.
Por que referi então no título que temos “excesso de mãe”? Porque a
mãe que temos, desempoderada e desautorizada, e até infantilizada, por ter
passado da alçada do pai para a do marido sem saber quem ela própria é nem ter
amadurecido como adulta, é essencialmente uma mãe permissiva, que nessa
profunda distorção patriarcal que é a ideia do sacrifício, permite tudo aquilo
que não deveria permitir, não sabendo impor, com receio de perder o amor da
sua descendência, limites nem fronteiras e sem ser senhora do seu verdadeiro sim nem do seu verdadeiro não, incapaz de fornecer qualquer modelo de força, coragem, coerência ou autenticidade, valores que criem cidadãos e cidadãs responsáveis, capazes de governar um mundo. Em vez disso, ela reproduz seres imaturos como ela, mimados pelo seu excesso de proteção sem exigência de contrapartidas de responsabilização pessoal, os egoístas, vaidosos, enfatuados e corruptos dirigentes que temos e os cidadãos impotentes e assustados que em vão procuram refúgio nas saias duma mãe arquetípica, a Nossa Senhora dos templos cristãos, cuja única capacidade que parece ter é a de comungar do seu sofrimento.
©
Luiza Frazão
Imagem: Google
Perfeito Luiza! Nada a acrescentar! Adorei, como sempre, a sua lucidez.
ResponderEliminarObrigada...e um abraço
rleonor
Vou publicar no meu Blog
ResponderEliminarGrata, Rosa, a honra é minha de me ver citada por si. Abraço.
ResponderEliminarLuiza
Esse texto reforça o quão sabia minha mãe foi na minha criação e que estou num bom caminho para com meus filhos! Fico feliz!
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