A célula “menina”, ou “rapariga”, é uma célula, ou um conjunto de células, central para a evolução da espécie humana. Essa célula existe em tod@s nós, mas entretanto os poderes em vigência compreenderam a necessidade de a suprimir, reinterpretando-a, negando o seu valor, levando-nos a tomá-la por fraqueza, reduzindo-a, erradicando-a, matando a célula “rapariga” em nós.
Imaginemos que a rapariga é um chip no macrocosmos da consciência colectiva, e que é preciso repensar e equilibrar o futuro de tod@s nós. Imaginemos que essa célula “rapariga” é compaixão, empatia, paixão, intensidade, vulnerabilidade, sinceridade, capacidade de associação, de relacionamento, intuição.
Compreendamos que da compaixão decorre grande sabedoria, a vulnerabilidade pode ser a nossa maior fortaleza e as emoções têm a sua lógica própria que nos leva a tomar as medidas mais certas, radicais e salvadoras. Os poderes instituídos, no entanto, sempre nos disseram o contrário, que a compaixão turva o raciocínio, que atrapalha, que vulnerabilidade é igual a fraqueza, que não nos devemos deixar guiar pelas nossas emoções, que não devemos tomar as coisas a peito, pessoalmente.
O mundo foi criado para evitar sermos uma rapariga.
O que significará então ser um rapaz? Ser um rapaz significa não ser uma rapariga, ser um homem significa não ser uma rapariga, ser uma mulher significa não ser uma rapariga, ser um líder significa não ser uma rapariga. Ser uma rapariga é então algo de tão poderoso que é preciso treinar as pessoas para não o serem!
A ironia é que negar, suprimir, a rapariga, recusar o sentimento, nos trouxe até onde nos encontramos agora, a um mundo onde as mais extremas formas de violência, a pobreza mais terrível, a violação, o genocídio, a destruição do planeta e dos seus recursos, tudo está fora de controlo. Por termos suprimido as nossas células “rapariga”, não sentimos mais o que está a acontecer, não conseguimos sentir o peso do que está a acontecer connosco e com o planeta…
No Congo, por exemplo, uma terrível guerra que já matou mais de 6 milhões de pessoas dura há mais de 12 anos relacionada com a exploração de minério para exportar para o Ocidente. Os sentimentos são contrários aos interesses dos impérios, interferem com a exploração desenfreada, com o esventrar da Terra e com a exploração desenfreada e destrutiva das suas riquezas.
A célula “menina” foi suprimida tanto nas mulheres como nos homens, e nos homens os estragos foram ainda maiores. A educação dos rapazes, no sentido de os tornar “fortes”, obriga-os a distanciarem-se de si próprios, dos seus sentimentos, a não chorarem. Na verdade, as balas que eles usam na guerra são as suas lágrimas endurecidas… Quando não permitimos que os homens tenham acesso à sua Menina Interior, à sua vulnerabilidade, à compaixão, eles embrutecem, tornam-se agressivos e violentos. Ensinamos-lhes que devem sentir-se seguros quando não o estão, que devem fingir que sabem tudo quando não é o caso. Sem isso não teríamos chegado aonde nos encontramos…
Se é mau aquilo que fazemos com a menina dentro de nós, é terrível aquilo que fazemos com as raparigas por esse mundo fora.
elas são espancadas
queimadas com pontas de cigarros acesas
tratadas como lixo
espancadas pela mãe, o pai, os irmãos, os tios
passam fome deliberadamente, nos países ricos, para se assemelharem à imagem idealizada que têm de si próprias
são controladas
mutiladas
vítimas de analfabetismo
levadas a sentirem-se mal por serem tão inteligentes e talentosas
silenciadas culpabilizadas
queremo-las suaves, com bons modos, menos intensas
são mortas no estado embrionários por serem raparigas
são escravizadas
violadas...
Elas estão tão habituadas a ser espoliadas de tudo aquilo que as torna humanas, que acabamos por transformá-las em objectos, em mercadorias. O comércio de raparigas é uma realidade em todo o mundo e em alguns países elas valem menos que as vacas ou as cabras…
Actualmente, uma em cada oito pessoas no mundo é uma rapariga entre os 10 e os 24 anos de idade. Elas são portanto a chave para o futuro da humanidade. Mas estão em sérios apuros porque enfrentam muitas desvantagens que as mantêm exactamente lá onde a sociedade quer que elas estejam: à míngua de cuidados médicos adequados, de educação, de comida saudável, de participação na força laboral, sobrecarregadas com toda a carga de tarefas domésticas e muitas vezes com a criação dos irmãos mais novos…
No entanto, é a condição das raparigas no mundo e da rapariga dentro de nós que vai determinar a nossa sobrevivência ou não enquanto espécie.
A palavra de ordem que é imposta às raparigas de todo o mundo é o verbo “agradar”, as raparigas são treinadas para agradarem. Torna-se urgente mudar este verbo para “educar”, “activar”, “ocupar-se”, “confrontar”, “desafiar”, “criar”. Se ensinarmos as raparigas a mudar as suas palavras de ordem, vamos fortalecer, empoderar a rapariga dentro de nós tod@s.
Alguns exemplos de raparigas que abraçaram a sua Menina Interior, apesar de todas as circunstâncias negativas à sua volta:
uma rapariga holandesa que quer dar a volta ao mundo no seu barco sozinha
uma rapariga que quis tatuar 56 estrelas no lado direito do seu rosto
Julia Butterfly Hill, que passou um ano em cima duma árvore para defender velhos carvalhos que iam ser abatidos
uma rapariga afegã de 17 anos, que com uma câmara escondida na burca, filmou cenas de violência contra as mulheres no seu país, que deram a volta ao mundo
Rachel Corrie, uma rapariga israelita que se pôs à frente dum tanque de guerra gritando pelo fim da ocupação, sabendo o risco que corria
uma rapariga congolesa que engravidou do seu violador e que me disse amar o seu bebé, porque o seu bebé estava cheio de amor…
A capacidade destas raparigas para suplantarem situações adversas e ultrapassar limites é espantosa. (…)
Eve Ensler (tradução livre)
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