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domingo, 7 de junho de 2015

MAMMA MIA - O EXCESSO DE MÃE


No filme de grande sucesso Mamma Mia (2008, baseado num original de Catherine Johnson dirigido por Phyllida Lloyd), em que se enfatiza a natureza generosa, acolhedora, liberal da mãe; nessa casa de sonho em que entramos e saímos e andamos à vontade, em que existe sempre lugar para quem chega à mesa, em que a pasta ferve no lume enquanto a pizza e o pão cozem no forno, em que há sempre vozes e animação e alegria, nessa casa vive ou é ela própria, a casa, a nossa Mãe ideal e o seu colo aconchegante. Ela é aquela que nunca fecha a porta e aceita e perdoa e passa a mão pela cabeça com carinho e sabe ouvir e compreender e proteger e em cujo regaço nos sentimos a salvo das agruras do mundo. 

Posso dizer que tenho um conhecimento razoável dessa mãe; que um coletivo de mulheres desempenhou de certa forma a função dessa mãe na minha infância. Eram mulheres com as quais sempre podíamos contar. Para além da mãe natural, nem sempre a mais acessível, diga-se, havia as tias, as avós, as primas ou simplesmente as amigas da casa. Esse conjunto era o mais aproximado possível, creio, da Mãe, do habitat natural que rodeia a Mãe nas sociedades matrifocais, aquilo que Bachofen (antropólogo suiço do século XIX famoso pelas suas teorias sobre as antigas sociedades matriarcais) referia pelo termo alemão Muttertum.
Fonte: Cacilda Rodrigañez Bustos,
http://pulposymedusas.blogspot.pt/2010/08/por-un-feminismo-de-la-recuperacion.html



O estranho é que, apesar de em países como o nosso e de uma forma geral nos países latinos, ainda parecer existir muito este tipo de mãe, tal não é infelizmente garantia nenhuma de estarmos a criar pessoas mais seguras de si, empoderadas e com sentido de responsabilidade social ou cívica, no fundo todas as qualidades de que o termo adulto/a se reveste na sua verdadeira acepção. Diria até que em países com “menos mãe”, ou com mães menos “latinas” essas qualidades parecem florescer melhor. Alguma coisa então não estará a funcionar como deveria com as nossas mães que à partida parecem corresponder tão bem a um ideal de Mãe. 

Pessoalmente, sinto que um dos grandes problemas reside na ideia muito enraizada entre nós de que a Mãe tem de se sacrificar. As mães são aquelas que se sacrificam, um pouco como a vela que arde e se consome até ao fim para que a sua luz nos possa iluminar. As mães sacrificam-se, dizem, pela família. Para que a paz e a harmonia reinem na família, fazem tudo, acreditam muitas delas, esquecendo-se de que a família tem a sua alma própria que tudo regista e tudo sente e tudo vai de alguma forma acabar por revelar e manifestar. Mas então, na sua valorização do sacrifício, a mãe acaba muito por se calar, por fazer de conta, por fingir que não ouve, por desculpar depressa demais, por aceitar muitas vezes o inaceitável. 

Na verdade, se quisermos ser rigorosas/os, o sacrifício da mãe aconteceu já muito antes de ela o ser, uma vez que ele é a base da própria família patriarcal que temos. Já agora, para quem viu o filme que cito no início, é bom lembrar um dos dados mais extraordinários da trama, que é o facto de nessa casa de sonho da Mãe não haver pai, e mais, de a heroína não saber sequer quem é o pai da sua filha e sair incólume desse crime de lesa autoridade patriarcal.... E a subversão continua no filme na forma como os homens com a possibilidade de serem o pai se comportam, prontos e encantados com a ideia de assumirem esse papel, sem competição nem exclusivismo, como acontece nas sociedades matriarcais, ou matrifocais, em que o papel do pai é irrelevante, sendo os homens da família a assumir a função de protetores e de educadores, fornecendo o modelo do masculino de que a criança precisa. Não é minha pretensão aqui incentivar as mulheres a terem filhas e filhos sozinhas sem um pai, sejamos realistas; com o tipo de sociedade em que vivemos, isso tornar-se-ia um peso muito grande tanto para a mulher como para a criança. 

Mas voltando à ideia do sacrifício da Mãe, ele aconteceu quando este modelo em que a mãe era central foi substituído por aquele que temos em que ela está sob a alçada do pai. O poder da Mãe, que refletia ou emanava do tipo de divindade cultuada, a Grande Mãe Criadora, passou para segundo plano quando a divindade mudou de género e passou a ser o Pai. Todo o modelo mudou, os valores que regiam a sociedade mudaram, o imperativo tornando-se agora o domínio e a conquista em vez de a proteção da vida. Fomos expulsas/os do paraíso, acabou-se a Idade de Ouro, pela lei da espada patriarcal, como tão bem nos refere Riane Eisler nessa obra absolutamente ímpar que é O Cálice e a Espada (Via óptima, Porto). Assim, já só por um acaso temos o tipo de maisonnée (um termo popular francês que define não só a casa como o coletivo de pessoas que nela vive ou que gravita à sua volta) do filme Mamma Mia, que nos fornece uma visão, obviamente muito idealizada, do genuíno reino (ou seria raino?) da Mãe, ou tão genuíno quanto o sistema que respiramos permite, e que em resumo é uma Mãe com poder e autoridade. 

Porque, não nos iludamos, não é por vivermos numa família de mulheres nem por lá em casa a última palavra ser a da mãe, que podemos dizer que ela tem poder genuinamente seu. Nenhuma mãe com poder emanado do seu próprio coração e forma de estar no mundo deixaria que um filho seu fosse para a guerra, por exemplo, consentiria numa forma de progresso que implique destruição da natureza, ou aceitaria na sua cama um homem a tresandar a carnificina e a outros abusos de poder e profunda insensibilidade ao sofrimento alheio. O poder que nos parece muitas vezes emanar da mãe no tipo de sociedade em que vivemos é na verdade o poder patriarcal que ela assume como seu sem o ser, tendo perdido o rasto dos verdadeiros valores que em estado selvagem, de antes da domesticação patriarcal, emanariam do seu coração de mulher. 

Por que referi então no título que temos “excesso de mãe”? Porque a mãe que temos, desempoderada e desautorizada, e até infantilizada, por ter passado da alçada do pai para a do marido sem saber quem ela própria é nem ter amadurecido como adulta, é essencialmente uma mãe permissiva, que nessa profunda distorção patriarcal que é a ideia do sacrifício, permite tudo aquilo que não deveria permitir, não sabendo impor, com receio de perder o amor da sua descendência, limites nem fronteiras e sem ser senhora do seu verdadeiro sim nem do seu verdadeiro não, incapaz de fornecer qualquer modelo de força, coragem, coerência ou autenticidade, valores que criem cidadãos e cidadãs responsáveis, capazes de governar um mundo. Em vez disso, ela reproduz seres imaturos como ela, mimados pelo seu excesso de proteção sem exigência de contrapartidas de responsabilização pessoal, os egoístas, vaidosos, enfatuados e corruptos dirigentes que temos e os cidadãos impotentes e assustados que em vão procuram refúgio nas saias duma mãe arquetípica, a Nossa Senhora dos templos cristãos, cuja única capacidade que parece ter é a de comungar do seu sofrimento.    

© Luiza Frazão

Imagem: Google




domingo, 1 de março de 2015

O EPISÓDIO MÍTICO O "JULGAMENTO DE PÁRIS" E O FIM DO MATRIARCADO



(...) De facto a grande cultura que precedeu a grega foi a cretense que subitamente desapareceu no séc. XVI antes de Cristo.

Depois deu-se a derrocada do império hitita relatada na Ilíada e assim se definiu a fronteira da mitologia greco-romana moderna que afinal os romanos nem reconheciam muito bem mantendo os seus deuses arcaicos indígenas, di indigetes.

No entanto a modernidade descobriu as mitologias nórdicas e celtas e as suas estranhas semelhanças com as orientais, factos que nem os autores das teorias do indo-europeu suspeitavam e queriam admitir.

Ora, é obvio que falta um elo perdido entre essas tradições extremas e ele só poderia ter sido a cultura cretense que depois veio a ser herdada pelos fenícios. E fica assim explicada a semelhança com a mitologia maia e a azteca.

Mas pouco ou nada se sabe da mitologia cretense e tudo o que se diga dela é muito especulativo. No entanto a intriga do Julgamento de Páris, que precedeu a guerra de Troia, foi e deve ser encarada como um momento importante na trama histórica, porque ele marca uma luta de poder entre 3 deusas que precede a primeira guerra mundial da história ocidental, que a partir daí passou a ser de guerras constantes.

Este episódio do Julgamento de Páris deve ser considerado como o marco do começo do patriarcado no mundo greco-romano, por ser a visão mítica de um fenómeno político nunca visto: o fim do domínio absoluto da tríade política das três fases da vida da mulher e que ia da Anatólia à Irlanda nos barcos da talassocracia cretense.

Assim, é no que resta dos cultos de Hera, Atena e Afrodite que deve ser reconstruida a tríade matriarcal, realçando o facto da vitória de Afrodite no julgamento de Páris fazer parte do processo de capitulação do matriarcado em relação ao patriarcado.

A TRÍADE MATRIARCAL DO JULGAMENTO DE PÁRIS CHEGOU ATÉ À IRLANDA

Confirmando a ideia de que a talassocracia cretense espalhou pelo mundo o mesmo culto da Deusa, este investigador acrescenta: 

(...)Na tríade Ériu, Banbha e Fódla...é óbvio que Vénus, sendo Afrodite, era Fódla porque:

Fódla < Folda < Forda < Afroda + Te > Afrodite

Como esta tíade é seguramente a mesma do julgamento de Páris e já sabemos quem era Afrodite, fica Eridu como só podendo ser Hera. E resta a Banbha ser Atena:

Banbha < Wan-wika < Kian-Kika < Tianita > Anat > Atena > Diana.

Porque foi a partir desta epifania que eu dei conta de como tudo o resto estava interligado!


©Artur Felisberto 

Imagem: Rubens, O Julgamento de Páris




quarta-feira, 11 de julho de 2012

OS HOMENS NO CAMINHO DA DEUSA



Nasci numa família de mulheres. A minha mãe tinha três irmãs e o meu pai duas – mulheres fortes, a maior parte delas. Na minha infância, com o meu pai ausente em África, em redor da máquina de costura da minha mãe, e do seu forte carisma, na nossa casa juntava-se um verdadeiro círculo de mulheres, cosendo, remendando, bordando, contando histórias, falando das suas (e de outras) vidas… Tenho consciência agora de que era um ambiente paradisíaco, o grande regaço da Deusa, um oceano de prazer onde me sentia completamente segura.

Para quase todas aquelas mulheres, entretanto, eram os homens o principal objeto da sua preocupação, do seu amor, mas também do seu medo. Alguns eram violentos, sarcásticos, bebiam demais… No mínimo, pareciam viver noutro mundo, segundo outras leis. Tudo lhes era permitido; já a elas tudo parecia proibido, sobretudo coisas que dessem prazer. “Toma muito cuidado com os homens” era o aviso mais repetido, de todas as formas.

Este abismo entre os homens e as mulheres, entretanto, acabava por tornar os homens objeto de grande atração e fascínio – as coisas são sempre bem mais complicadas do que parecem… De alguma forma e em algum momento das nossas vidas de mulheres – e quanto mais cedo melhor – deveríamos encontrar o tal príncipe encantado, o único e exclusivo ao qual iríamos dedicar a nossa vida; aquele que se tornaria dono e senhor dos nossos dias. De alguma forma (e a grande insanidade era esperarmos isso apesar de toda a corrente de mensagens negativas que circulava a respeito deles…), esperávamos que esse fosse perfeito, embora com frequência ele se revelasse aos nossos olhos mais como uma espécie de Barba Azul que iria manter-nos prisioneiras e tentar “matar” as nossas irmãs, os nossos apoios no exterior…

Podemos considerar que esta é uma boa imagem daquilo que aconteceu ao sistema matriarcal, ginecocêntrico, esse modo de vida aprazível, pacífico, inclusivo, igualitário, sustentável, essa Idade de Ouro, destruída quando os patriarcas impuseram o seu estilo de vida agressivo, violento, competitivo, egocentrado, hierarquizado, de espada sempre em riste e obcecados com o “crescimento” …

Claro que o tema é muito mais complexo, mas a questão é que o sistema patriarcal, baseado na lógica, que fomentou um desenvolvimento excessivo do hemisfério esquerdo do cérebro, em detrimento do direito, com o seu sentido de separação do todo, se tornou obcecado com o poder, a hierarquia, a propriedade privada, a herança, as leis e regulamentos para manter o estado das coisas… Até que a certa altura a mulher se tornou parte da propriedade do patriarca, como uma sofisticada e insubstituível tecnologia de reprodução, requerendo apertado controlo para garantir a pureza da linhagem.

O papel do pai tornou-se então cada vez mais importante, tão central na sociedade que a Deusa Mãe dos primórdios, cultuada durante milhares de anos, foi substituída pelo Deus Pai. Todo o poder passou para mãos masculinas com as desastrosas consequências que conhecemos. O Feminino foi suprimido tanto nos homens como nas mulheres para que fosse possível um mundo mais violento e competitivo, baseado na lei do mais forte que exerce o seu poder sobre tudo e tod@s percebid@s como mais frac@s: crianças, mulheres, outros homens, a própria terra. Poder que vai até impor a escravidão e tudo considerar numa perspetiva de puro lucro.

Tod@s somos vítimas deste desequilíbrio entre as energias Femininas e  Masculinas, destes papéis atribuídos a cada um-a de nós ao nascermos. O papel de Mulher contém certas expectativas que devo cumprir para poder ser aceite e amada. O mesmo acontece com o papel de Homem, e concordo que este não é nem melhor nem mais fácil do que o meu, mesmo  fazendo eles teoricamente parte do clã dominante. A verdade é que somos tod@s um-a e ninguém ganha quando um-a de nós perde.

Então,  o nosso desafio é conseguir equilibrar as energias, trazendo de novo à nossa consciência a Grande Deusa dos começos, o arquétipo, o padrão do Feminino esquecido e desvalorizado, procurando-A na terra, na natureza, nos nossos corpos, nesses lugares de onde os patriarcas judaico-cristãos A baniram para nos levarem a procurar exclusivamente nos céus um Deus severo e ciumento à semelhança do qual eles foram feitos, não nós. Fomos separad@s sistematicamente do nosso corpo, dos instintos, da natureza, percebid@s como lugares do mal, deixando livre o caminho para a sua exploração e destruição desenfreadas.

São muitos os homens que entenderam isto, que sentem em si próprios este desequilíbrio e alguns d@s autor@s mais inspirad@s que já li são homens como Jean Markale, Eric Neumann, Jung, Robert Graves, Stuart McHardy e muitos outros.

No entanto, em meu entender, homens e mulheres são muito diferentes biológica e  culturalmente. Temos histórias muito diferentes, vivências muito diferentes.


Interagir com homens neste caminho da Deusa não é simples. Quando nós, mulheres, nos juntamos há uma imediata compreensão da nossa história comum, uma cumplicidade natural que não inclui os homens. Diria até que os exclui, sentidos como o inimigo, não os homens em si mas os papéis que têm vindo a desempenhar na nossa cultura. Sinto muito, mas este é um ponto muito importante, porque se não temos esta primeira impressão, este sentimento de dor e de revolta, não conseguiremos mudar nada. Apenas a nossa indignação, a nossa raiva, a nossa dor nos podem dar a motivação e a força para mudarmos as coisas. Os homens nunca foram considerados inferiores só por serem homens, nunca foram considerados impuros, sujos, culpados da queda da humanidade, nunca lhes foi interdito o acesso direto ao sagrado…

Muitas mulheres por esse mundo fora continuam a sentir-se sujas, desvalorizadas, separadas dos seus corpos, dos seus instintos, da natureza, do sagrado, nas mãos dos patriarcas, escravizadas na sua grande parte e nós precisamos de curar essas mulheres ousando amar o nosso corpo tal como ele é e não apenas se ele corresponder aos padrões impostos pela cultura patriarcal, amar o lado feminino da humanidade, reclamar o nosso direito de lidar diretamente com o sagrado, como fizemos no passado, como fomos criadas para fazer.

Sei que não é fácil, que pode parecer um ponto de vista sexista, separatista, mas nós, mulheres, temos tantas feridas para curar, que precisamos dum campo seguro, só nosso, uma zona de pura irmandade, de perfeita compreensão, aceitação, cumplicidade para nos curarmos umas às outras, para nos sentirmos mais fortes, consideradas e respeitadas. Curarmo-nos a nós próprias significa admirarmo-nos e amarmo-nos umas às outras por aquilo que somos, fazermos as coisas por nós mesmas, sentir que somos capazes, já que durante milhares de anos fomos consideradas incapazes.


É por isso que a Conferência da Deusa, por exemplo, é um acontecimento tão fantástico. É-o não apenas por aquilo que lá acontece, que é excelente, mas sobretudo porque tudo é concebido por e para as mulheres. Nós precisamos de experienciar o nosso próprio poder, a nossa força, talento, criatividade, apresentar ao mundo a nossa própria visão, dar a cara por aquilo que acreditamos estar certo, demarcarmo-nos duma maneira masculina de fazer as coisas. Nós mulheres que fomos e ainda somos tantas vezes consideradas menos, pouco mais autónomas do que crianças, sem direito a exprimirmos a nossa maneira própria de ver as coisas, silenciadas pelo sarcasmo masculino e a sua “superioridade” a nível do raciocínio lógico, precisamos de agir neste mundo por nós próprias. Precisamos de aprender como é e a exprimir a nossa própria natureza num ambiente seguro.

Os homens que claramente entendam isto e solidariamente permaneçam ao nosso lado, colocando a sua força e os seus talentos ao serviço do Feminino, sabendo o que está em causa, sentindo-se suficientemente seguros para não nos retirarem a energia de que precisam, como habitualmente fazem das mais variadas maneiras, esses homens são bem-vindos, e há vários no caminho da Deusa. Como os antigos cavaleiros, eles precisam de se render à sua Dama, a sua Alma, a sua parte feminina; e a Alma vai à frente, está primeiro. É a Alma que mostra o caminho.

Luiza Frazão 

Imagens: Herman Smorenburg. 
Glastonbury Goddess Conference

domingo, 6 de maio de 2012

O LUGAR DA MÃE - A RECUPERAÇÃO DA MÃE É A RECUPERAÇÃO DO FEMININO COLETIVO


A MÃE COMO ELEMENTO DETERMINANTE DA SOCIEDADE

“Recuperar a mãe verdadeira pressupõe então recuperar o coletivo de mulheres e a sua função coletiva dentro dum determinado grupo social. A recuperação da mãe não é uma recuperação individual (embora tenha uma dimensão individual e corporal), mas a recuperação do feminino coletivo, de todas nós.”

“Com a frase “Dai-me outras mães e eu vos darei outro mundo”, Santo Agostinho revelava o ponto débil do seu projeto de sociedade e a necessidade que tinham de transformar duma vez por todas as mães. Transformar as mães para vencer a natureza humana e a sua predisposição para se organizar e viver como o fez durante muito tempo, sem dominação nem escravatura, em paz e em cooperação (a arqueologia já afastou qualquer dúvida a este respeito, provando que a Idade de Ouro não é um mito mas uma realidade).

Novas mães para reproduzirem os “filia” continuadores das empresas guerreiras, humanos aptos para fazerem a guerra ou para aceitarem tornar-se escravos. Não se podia criar este mundo sem mudar a mãe. A sociedade patriarcal foi erguida sobre um matricídio, acabando com as gerações de mulheres com cujo desaparecimento se sumiu também a paz sobre a Terra (Bachofen). É esta a civilização que perdura ainda hoje, continuando a destruir a vida e a corromper a condição humana, mais competitiva, mais fratricida, mais belicista e mais desapiedada que nunca. Do meu ponto de vista, não é a economia que está em crise, é o modelo de civilização.

Na encruzilhada na qual a humanidade se encontra, o que precisamos de fazer se queremos acabar com este sistema de dominação e sobreviver é recuperar a verdadeira mãe, e com ela as qualidades básicas dos seres humanos, que nos capacitam para a concórdia e nos incapacitam para o fratricídio. Recuperar a mãe verdadeira é recuperar o habitat que a rodeia. Bachofen criou um termo em alemão para o definir: é o Muttertum, sendo que o sufixo “tum” (equivalente ao “dom” em inglês) significa o sítio, o lugar da mãe.

Não se trata apenas dum espaço físico, mas antes dum conjunto de relações travadas com o seu fluxo libidinal específico, o fluido feminino-materno, o hálito materno, porque a produção do nosso sistema orgânico libidinal, desenhado para organizar as relações humanas, é a matéria-prima do tecido social humano original. O Muttertum é assim como a urdidura da tela social, como lhe chamou na sua preciosa metáfora Martha Moia: um conjunto de fios, porque um fio sozinho não consegue fazer a urdidura.

Recuperar a mãe verdadeira pressupõe então recuperar o coletivo de mulheres e a sua função coletiva dentro dum determinado grupo social. A recuperação da mãe não é uma recuperação individual (embora tenha uma dimensão individual e corporal), mas a recuperação do feminino coletivo, de todas nós. Segundo Malinowski, as mulheres trobriandesas dum clã (in The Sexual Life of Savages in the Western Melanesia) tinham um nome coletivo, “tábula”, a “tábula” é que se ocupava do parto das mulheres do clã.

Em castelhano há uma aceção do nome "mãe" que é um vestígio dessa mãe ancestral, que se encontra na expressão "salirse de madre", "sair da mãe", que seria sair do Muttertum, que nos faz amadurecer e nos torna consistentes. Há também uma aceção em que a palavra significa "fonte originária de algo" ("a mãe do vinagre", por exemplo), ou como a raiz de algo, quando dizemos que encontrámos a "mãe do cordeiro". Se um rio sai da "madre", tudo se inunda e é o desastre. Pois assim anda a humanidade, "fora da mãe", em permanente estado de esquizofrenia e cada vez com mais ataques de violência..."

Cacilda Rodrigañez Bustos

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