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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

MAIS DO QUE AS FILHAS DILETAS DOS SEUS PAIS... DEUSAS DA SOBERANIA


Nos últimos dias temos assistido àquilo que parece ser a encenação, ou a atualização, dum antigo mito grego, que se repetiu em Roma com outros nomes, e que diz respeito ao nascimento da Deusa Athena, saída da cabeça do seu pai, o grande patriarca do Olimpo (basicamente um violador em série), prontinha e armada para o combate. 

Diz-nos Jean Shinoda, na sua análise dos arquétipos femininos, que esta “filha do seu pai” é a mais acérrima defensora dos valores do patriarcado, arquétipo forte nas mulheres que apostam tudo numa carreira de sucesso, usando como modelo o pai, desvalorizando por completo a mãe, percebida como desempoderada e insignificante, comparada com o pai, a cuja missão dão energia e continuidade.


Na pesquisa de imagens surgiram-me os exemplos acabados que podemos ver aqui, mas foi ao encontrar a imagem de Le Pen com a sua neta, que fez todo o sentido para mim que esta realidade pode ter ainda outra leitura, porventura mais justa, e que é aquela que faz o autor bretão Jean Markale em A Mulher Celta. Aí ele refere uma instituição celta muitíssimo antiga, que aparece no Mabinogion(1), que implicava que o rei impotente devesse, durante a maior parte do tempo, manter os seus pés no regaço duma donzela. Na perspetiva do autor, trata-se no fundo da memória duma sociedade matrifocal, dum tempo em que era a mulher que detinha o verdadeiro poder, que encarnava a verdadeira Soberania: 

“(…) a instituição do “troediawc” é no mínimo curiosa e como todas as instituições curiosas, a sua origem parece ser muito antiga e provavelmente é mal compreendida pelos legisladores do séc. X. Se então a função é confiada a um homem, é normal, trata-se duma sociedade patriarcal. Mas a narrativa de Math ab Mathonwy representa uma tradição mais antiga. Não é um homem que ocupa a função de “troediawc” mas sim uma mulher, o que faz mudar o caso de figura, pois indica, não uma situação anterior, mas a memória duma situação anterior, que, combinada com o regime matrilinear que aparece ainda no Mabinogion, coloca Math na charneira de dois tipos de civilização.


A imagem do rei impotente com os pés no regaço duma donzela, ou seja, duma “morwyn, um ser primordial e feérico saído do mar, uma “morgan, se preferirmos, é simplesmente a imagem do rei saindo do Ventre da Mulher. Se por via de consequência o poder real, aquele que Math encarna de resto muito mal, provém em linha direta duma filiação uterina, provém da mulher que é a verdadeira Soberana, a detentora da Vida. (…) A Soberania, que nas lendas celtas é normalmente encarnada por uma mulher, é esta donzela no colo da qual o rei Math deve manter os pés, sob pena de não mais poder reinar. Logo que soube que o seu sobrinho Gilwaethwy, com a ajuda de Gwyddyon, ultrajou aquela que ocupava esta nobre função, ele foi obrigado a substituí-la, uma vez que a Soberania não pode ser ultrajada impunemente.”

O autor prossegue incluindo a Virgem Maria, sobretudo na iconografia relativa à morte e lamentação de Cristo, neste role de donzelas míticas que encarnam o poder de que o rei vai usufruir, e que no fundo é o próprio poder da Deusa de que elas são a epifania. 

Esta é uma análise que faz todo o sentido para mim, basta ver a aura mística que rodeia estas mulheres.

(1)  O Mabinogion é uma coletânea de manuscritos em prosa escritos em galês medieval. São parcialmente baseados em eventos históricos do início da Idade Média, mas que podem remontar a tradições da Idade do Ferro.