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domingo, 20 de abril de 2014

DON JUAN e a Motivação de Poder


“De particular relevância é o trabalho muito mais recente do psicólogo David Winter. Tal como outr@s académic@s modern@s de nomeada, Winter tem vindo a estudar aquilo que no livro do mesmo nome designa de “motivação de poder”. Como psicólogo social, dedicou-se à descoberta de padrões históricos através de medições objectivas. E embora uma vez mais convenha olhar para além daquilo que Winter sublinhou, a partir da perspectiva psicológica convencional centrada no masculino, as suas descobertas documentam decisivamente que atitudes mais repressivas para com as mulheres prenunciam períodos de belicismo agressivo.

Centrando-se numa das figuras românticas mais famosas da literatura e da ópera, o impetuoso sedutor Don Juan, a análise sociopsicológica de Winter baseia-se largamente no estudo da frequência de certos temas em documentos literários. Winter observa que, apesar da obrigatória condenação das acções de Don Juan como “perversas” e “malditas”, ele é de facto idealizado como “o maior sedutor de Espanha”. Assinala também que os motivos subjacentes de Don Juan são a agressão, o ódio e o desejo de humilhar e punir as mulheres – não os impulsos sexuais. Nota ainda algo de profunda importância psicológica e histórica: as atitudes extremamente hostis para com as mulheres são características de épocas em que as mulheres sofrem a máxima repressão por parte dos homens. 

O caso clássico relevante que cita é o da Espanha onde emergiu a lenda de Don Juan, quando os espanhóis das classes superiores haviam adoptado o “costume mourisco de manter as mulheres em isolamento”. A razão psicológica por detrás desta hostilidade acrescida, explica Winter, é o relacionamento mãe-filho tornar-se particularmente tenso em períodos assim – a par da generalidade das relações feminino-masculino.

Contextualmente, torna-se evidente que a “motivação de poder” de Winter é, na nossa terminologia, a pulsão androcrática para conquistar e dominar outros seres humanos. Tendo estabelecido ser o rebaixamento das mulheres por parte de Don Juan uma manifestação desta “motivação de poder”, Winter tabula então a frequência das histórias sobre Don Juan na literatura de uma nação relativamente aos períodos de expansão imperial e de guerra. O que documentam as suas descobertas é aquilo que nós prediríamos socorrendo-nos do modelo de alternância gilânico-androcrático: historicamente, as estórias do mais famoso arquétipo de dominação masculina sobre as mulheres aumentam de frequência antes e durante os períodos de militarismo e imperialismo exacerbados.”


in O Cálice e a Espada, Riane Eisler, Via Óptima
    

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PECADO ORIGINAL

“É necessário reconstruir a contradição homem-mulher a partir da negação do corpo da mulher, e portanto aquilo que na Psicanálise tradicional aparece como enfermidade, neurose, desadaptação, etc. converte-se numa contradição material. A mulher encontra-se desde o princípio sem uma forma própria de existir, como se o existir da mulher já se encontrasse numa forma de existência (mulher, mãe, filha, etc.) que a negam enquanto mulher. Ser mãe significa existir e usar o corpo em função do homem, e por isso uma vez mais carecer de sentido e de valor do próprio corpo e da própria existência a todos os níveis. 

Esta negação de si mesma esta interiorizada em níveis tão profundos que é como se as mulheres, ao longo de toda a sua história, não tivessem feito mais do que repetir esta história de autodestruição. Por consequência, o discurso sobre a violência masculina, sobre o vexame, a dominação, sobre os privilégios, etc. continuará sendo um discurso abstracto se não tivermos em conta o aspecto interiorizado desta mesma violência, a violência como autonegação, negação duma existência própria. A negação de si mesma é posta em marcha a partir do nascimento, a partir da primeira relação com a mãe, onde esta já não se encontra presente como mulher com o seu corpo de mulher, estando ali como mulher do homem e para o homem. (…)

O facto da menina viver a relação com a pessoa do seu sexo apenas através do homem, com essa espécie de filtro que existe entre ela e a mãe, é a razão mais profunda da divisão que encontramos entre uma mulher e outra mulher; nós as mulheres estamos divididas na nossa história desde sempre, não apenas porque cada uma de nós está unida socialmente ao marido, às e aos filh@s – este é apenas o aspecto visível da separação – a divisão dá-se a um nível mais profundo, ao não conseguirmos olhar-nos uma à outra, ao não sermos capazes de contemplar o nosso corpo sem termos sempre presente o olhar do homem. (…)

Num artigo em “L’Erba Voglio”… insistia na relação interrompida com a mãe, ou no mínimo deformada desde o começo precisamente porque a mãe não é a mulher, apenas “a mãe”, ou seja, a mulher do homem. Do facto de que a mulher não encontra na relação com a mãe o reconhecimento da sua própria sexualidade, do seu próprio corpo, procede depois toda a história sucessiva da relação com o homem como relação onde a negação de tudo aquilo que tu és, da tua sexualidade, da tua forma de vida, já se produziu.”

Lea Melandri, La Infamia Originaria (excertos),
citada por Cacilda Rodrigañez Bustos em El Assalto al Hades

Imagem: Arthur Hughes