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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A DEUSA DO DISCO DE PRATA




“Tu, que deambulas por muitos lugares sagrados e és reverenciada com diferentes rituais;
Tu, cuja luz suave clareia o caminho dos viajantes e nutre as sementes escondidas sob a terra; Tu, que controlas o caminho do Sol e até mesmo a intensidade dos seus raios,
Eu Te imploro, chamando todos os Teus nomes e todos os Teus aspectos,
Eu Te invoco com todas as cerimónias que Te foram dedicadas,
vem a mim e traz-me repouso e paz”


Apuleio, "O Asno Dourado"

"Para a nossa mentalidade atual, baseada em valores solares, pode parecer estranha a afirmação do escritor romano Apuleio (século I) sobre o controlo exercido pela Lua na trajetória e intensidade dos raios do Sol.
No entanto, se voltarmos para o início da história da humanidade, podemos constatar a maior relevância simbólica e mitológica da Lua, bem como a antiguidade dos cultos lunares em relação aos valores e cultos solares. Na Caldeia, os astrólogos ignoravam o Sol e fundamentaram o seu sistema nos movimentos da Lua. Até hoje, na astrologia védica, o peso da interpretação recai sobre o signo lunar natal, os meses são denominados “mansões lunares” e caracterizados pela posição da Lua cheia na respectiva mansão.


Os cultos lunares tiveram origem no paleolítico e os primeiros calendários conhecidos foram os lunares, baseados no ciclo menstrual da mulher. O mais antigo calendário astrológico conhecido foi criado pelos babilónios e chamava-se “As casas da Lua”, estabelecido a partir do ciclo de lunação, com os seus períodos mensais representados pelos signos zodiacais. A principal deusa lunar da Babilónia era Ishtar, cujo cinturão era enfeitado com representações e símbolos do zodíaco.


Inúmeros artefactos neolíticos talhados em pedra, chifre e osso, encontrados em grutas espalhadas por vários países na Europa e Ásia têm inscrições agrupadas em séries alternadas de 28 a 30 traços, demonstrando o antigo conhecimento astronómico dos ciclos lunares. Atualmente está sendo cada vez mais divulgado e utilizado o calendário lunar do povo Maia, com base no ciclo das treze lunações que formam um ciclo solar.


Desde os mais remotos tempos, a Lua foi reverenciada como a manifestação da Grande Mãe Universal, o aspecto feminino da Divindade, a fonte criadora e sustentadora da vida, cuja luz e bênção eram invocadas nos rituais de


fertilidade, no plantio das sementes e no parto das crianças. As suas fases passaram a simbolizar o próprio ciclo da gestação, nascimento, crescimento mas também o amadurecimento, decadência e morte. As suas faces clara e escura foram consideradas os aspectos doadores da vida e destruidores da natureza – a Mãe sendo tanto a Criadora como a Ceifadora.



A Lua foi venerada sob inúmeros nomes nas várias tradições e culturas antigas. Apesar desta diversidade, existe uma similitude em relação aos seus atributos de acordo com as suas fases. A Lua crescente representava a vitalidade da Deusa jovem, o frescor da Donzela, o potencial do crescimento, o início das realizações. Tornando-se cheia, a Lua personifica o ventre grávido da Mãe, o florescimento e abundância da natureza, a concretização das possibilidades. Ao minguar, a Lua assume o aspecto de Anciã, assinalando o fim da colheita, o declínio das energias, a sábia preparação para conhecer os mistérios da morte e do renascimento.
Dificilmente se encontra nas várias mitologias uma única deusa que sintetize a inteira gama do simbolismo lunar. Nos panteões grego e celta, existem inúmeras deusas lunares com características específicas relacionadas aos atributos das fases e representando os arquétipos da Donzela, da Mãe e da Anciã.


Uma Deusa celta pouco conhecida é Arianrhod, descrita na coletânea de textos galeses “Mabinogion” como “A Senhora da Roda de Prata”. Vivendo na longínqua terra encantada de Caer Sidi, ela personificava uma antiga Deusa Mãe celeste, regente da constelação estelar Corona Borealis, cujo nome em galês era “Caer Arianrhod” , ou seja, “O castelo girante de Arianrhod”.
O mito de Arianrhod é muito complexo, com elementos contraditórios e de difícil compreensão, denotando as deturpações decorrentes da interpretação das antigas lendas da tradição oral dos bardos, pelos monges e historiadores cristãos. Há, no entanto, uma passagem muito interessante que descreve de forma metafórica e pitoresca uma mescla de atributos da Deusa como Donzela e Mãe escura. Filha da deusa da terra Don, Arianrhod foi chamada pelo Deus celeste Math para ser sua acompanhante (na verdade, seu dever era segurar os pés do Deus no seu colo enquanto ele descansava). A condição essencial deste encargo era a virgindade da candidata. Mas, ao ser testada pelo bastão mágico de Math, Arianrhod de repente deu a luz à gémeos – um, bem formado, Dylan, que se foi arrastando para o mar (onde se transformou depois em um deus marinho), e outro, ainda em estado embrionário. Arianrhod desapareceu, mas antes amaldiçoou este filho para que ele não tivesse jamais um nome, não pudesse usar armas nem casar. Na cultura celta, era a mãe que dava o nome e abençoava o seu filho nestes rituais de passagem. No presente mito, a criança foi adotada pelo irmão de Arianrhod, o mago Gwydion, que, no devido tempo, conseguiu ludibriar Arianrhod e, usando de recursos mágicos, a convenceu a dar um nome ao filho e permitir-lhe usar armas. O nome Llew Llaw Gyffes, “o brilhante, luminoso e habilidoso”, era o mesmo nome dum famoso herói celta Lugh, personificação dum antigo deus solar. Comprova-se, assim, por metáforas e intrincados simbolismos celtas, a antiguidade das divindades e cultos lunares, a Lua representando as tradições matrifocais da Deusa que deram origem aos cultos e mitos solares posteriores.



Na Ásia - Ocidental e Menor - durante séculos foram reverenciadas inúmeras Deusas Mãe, algumas delas com características lunares. Na Suméria e na Babilónia, a Deusa Anath, Anunith ou Antu era conhecida como a “Senhora da Lua, do Céu e das Montanhas”, representada por um disco prateado com oito raios. Assim como Arianrhod, ela reunia as qualidades da Donzela – regendo o plantio das sementes e o crescimento dos brotos e da Mãe – quando desce para o mundo subterrâneo para resgatar o seu filho/consorte da escura morada de Mot, o deus da morte, e regenera a terra seca com a chuva fertilizadora.
Posteriormente, os atributos de Anath foram absorvidos no mito e no culto de outras deusas, como Ashtar, Astarte e Asherah."



Mirella Faur


Imagens: Google

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

DANU DO NORTE E DO INVERNO


DANU, A GRANDE MÃE IRLANDESA


“No início havia o Vazio, a vastidão do Nada, a supremacia da criatividade não-diferenciada
Do vazio nasceu o Caos,
Da união entre o vazio e o caos originou-se Ana, a Grande Sonhadora, Criadora e Tecelã dos mundos, em cujo ventre fértil resplandeciam estrelas e planetas.
Da união entre Sonho e o nosso Sol foram criados a Mãe Terra, o
Pai Céu e o oceano, os ancestrais primevos.
Do encontro entre o céu e a Terra surgiram os Seres Brilhantes, os
Dakinis e os Dakas que trouxeram a luz ao mundo.
E do ventre de Ana, tocado pela luz das Plêiades, nasceram os Tuatha de
Danann, o povo da deusa Danu.”
Kathy Jones, “The Well of Ana”

Os primeiros relatos escritos sobre as lendas e as crenças dos povos celtas foram feitos pelos romanos, que invadiram a Grã Bretanha em 55 a.C. Na medida das suas conquistas, eles incorporavam ao seu próprio sistema religioso mitos e conceitos dos povos indígenas, registando-os, porém, de forma fragmentada e adaptada, em função da localização geográfica e da similitude entre uma divindade local e uma correspondente romana.

Estes registos referem-se aos antigos mitos irlandeses, galeses e escoceses, acrescentando, também, lendas das tribos celtas que tinham chegado posteriormente à Grã Bretanha (cerca de 500 a.C.), provavelmente vindas da França central. Ocultas nas histórias encontram-se reminiscências das tradições pré-celtas, dos povos neolíticos, construtores dos círculos de menires e das câmaras subterrâneas, encontradas em inúmeros lugares nas ilhas Britânicas e na Bretanha (região do Oeste da França).


Esta herança ancestral, preservada durante milénios pela tradição oral e pelas práticas religiosas pagãs, parcialmente registada por historiadores romanos, foi aproveitada, reinterpretada, deturpada e truncada nos relatos dos monges cristãos ao longo dos séculos. Mantendo somente o que convinha à moral e aos dogmas cristãos, os monges reduziram o vasto panteão e a rica simbologia celta a relatos épicos de guerras, invasões, intrigas, traições e atos imorais, perpetrados pelas várias raças e tribos, diferenciados apenas pela localização geográfica. Mesmo preservando resquícios das verdades originais, as histórias cristãs minimizaram ou ignoraram a beleza e a sabedoria do legado celta, reduzindo ou distorcendo o seu valor mítico e espiritual. Na visão patriarcal dos monges, as Deusas foram vistas como Rainhas e princesas, os deuses como Reis e Heróis e o significado transcendental foi diluído, modificado ou perdido.


No século XI foi publicado “O Livro das Invenções”, que descreve uma sucessão de 5 povos que teriam vivido na Irlanda antes da chegada dos celtas, os ancestrais dos habitantes atuais.
Nas lendas, estas raças diferentes são descritas duma forma ambígua, tendo tanto características divinas quanto humanas e sendo apresentadas como deusas, deuses, gigantes, devas e seres elementais (seres análogos aos de tantos outros mitos de várias culturas e países).


Sem precisar de entrar em detalhes da complexa nomenclatura e das vastas descrições das batalhas, o importante é saber que cada uma dessas raças foi vencida e seguida pela seguinte, alternando-se assim os seus mitos, as suas divindades e a sua organização social e religiosa.
A quarta raça - Tuatha de Danann ou povo da deusa Danu -, apareceu de forma misteriosa: não da terra, de uma direção definida, como outros invasores, mas do céu, simultaneamente das 4 direções. Aterraram no dia do Sabbat de Beltane e depois fundaram 4 cidades que se tornaram os centros espirituais da Irlanda.


Tanto a sua natureza, quanto a sua origem permanecem envoltas em mistério, mas sabe-se que os seus atributos eram de bondade e luz. Por terem vencido a “escura” e agressiva raça anterior, foram por isso chamados “ seres brilhantes”. Trouxeram ensinamentos e objetos de magia, arte, sabedoria e cura e deixaram como marcos os círculos de menires e os monumentos megalíticos. Após um longo e pacífico reinado, eles também foram vencidos pela última raça, os precursores dos celtas; depois da sua derrota retiraram-se para o interior das colinas sagradas, tornando-se o assim chamado “Povo das Fadas”. É importantíssimo ressaltar que apesar de se traduzir fairy por “fada”, este termo não descreve uma “diáfana figura feminina sobrevoando as flores”. O sentido arcaico de Fairy People refere-se a seres sobrenaturais, com aparência etérica, sim, mas pertencendo a ambos os sexos, jovens que gostavam de música, danças, cores, flores, e abominavam o ferro (comprovação da sua origem anterior à Idade do Ferro).

O maior legado dos Tuatha de Danann foi o culto da deusa Dana (também conhecida como Danu , Anu ou Ana), considerada a Deusa Mãe, progenitora das outras divindades. Representando a força ancestral da Terra, a fertilidade, a vida e a morte, Dana foi posteriormente considerada como a representação da tríplice manifestação divina, da qual sobreviveu até hoje somente o culto à Brighid, cristianizada e fervorosamente venerada como a milagreira Santa Brígida.


Apesar de o seu culto ter sido proibido pelo cristianismo e de o seu nome aos poucos ter sido esquecido, Danu está presente em toda a parte na Irlanda, seja nos verdes campos, no perfil arredondado das montanhas, no sussurro dos riachos. O Seu lugar sagrado no Condado de Kerry, chamado Paps of Anu, reproduz, na forma de duas colinas, os Seus fartos seios, cujos mamilos são formados por cairns, os antigos amontoados de pedras que foram formados pelas oferendas de pedras levadas pelos peregrinos ao longo dos tempos, em sinal de reverência e gratidão.


Atualmente, com o ressurgimento do Sagrado Feminino, Danu, assim como as Deusas de outras tradições, estão a ser lembradas e reverenciadas como Senhora da Terra, da Água, da Abundância, da plenitude da Natureza e da Soberania.

Mirella Faur
http://sitioremanso.multiply.com/journal/item/29

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

JUST IMAGINE...


Imagine a woman who believes it is right and good she is a woman.A woman who honors her experience and tells her stories.Who refuses to carry the sins of others within her body and life.


Imagine a woman who trusts and respects herself.A woman who listens to her needs and desires.Who meets them with tenderness and grace.


Imagine a woman who acknowledges the past's influence on the present. A woman who has walked through her past. Who has healed into the present.

Imagine a woman who authors her own life.A woman who exerts, initiates, and moves on her own behalf.Who refuses to surrender except to her truest self and wisest voice.

Imagine a woman who names her own gods.A woman who imagines the divine in her image and likeness.Who designs a personal spirituality to inform her daily life.

Imagine a woman in love with her own body.A woman who believes her body is enough, just as it is.Who celebrates its rhythms and cycles as an exquisite resource.

Imagine a woman who honors the body of the Goddess in her changing body.A woman who celebrates the accumulation of her years and her wisdom. Who refuses to use her life-energy disguising the changes in her body and life.

Imagine a woman who values the women in her life.A woman who sits in circles of women.Who is reminded of the truth about herself when she forgets.


Imagine yourself as this woman.

“Imagine a Woman” © Patricia Lynn Reilly, 1995

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

CAILLEACH DO INVERNO


Cailleach fala:

"Meus ossos são frios, meu sangue é ralo.
Eu busco o que é meu.
Eu busco o que ainda não foi semeado.
Eu busco os animais para cavernas quentes e mando meus pássaros para o sul.
Eu ponho meus ursos para dormir e mudo o pelo de meus gatos e cães para algo mais quente.
Meus lobos me guiam, seu uivo anuncia minha chegada.
Os cães, lobos e raposas cantam a canção da noite, a serenata da Anciã, a minha canção.
Eu disse sim à vida e agora digo sim à Morte.
E serei a primeira a ir para o outro lado.
Eu trago o frio e a morte, sim, pois este é meu legado.
Eu trouxe a colheita e se você não colheu suas maçãs eu as cobrirei de gelo.
Após o Samhain, tudo o que fica nos campos me pertence."

Cailleach é a própria terra. Ela é as rochas cobertas de musgo e o pico das montanhas. Ela é a terra coberta de gelo e neve. Ela é a mais antiga ancestral, velada pela passagem do tempo. Ela é a Deusa da Morte, que deixa morrer tudo o que não é mais necessário. Mas é tb ela quem encontra as sementes da próxima estação. Ela é a guardiã da semente, a protetora da força vital essencial ao ressurgimento da vida após o inverno. Ela guarda a própria essência do poder da vida. Ela é o poder essencial da Terra. Nos mitos Celtas Ela representa a Soberania sobre a terra e um rei só podia reinar após realizar o casamento sagrado com Ela, que representa o Espírito da terra.

Cailleach é uma das maiores e mais antigas Deusas da humanidade. Ela é um aspecto da Deusa como a Anciã, principalmente na Escócia. Um derivativo de seu nome, Caledonia, foi dado àquele país. Seu nome, assim como seu título de Mãe Negra, é muito próximo ao nome Kalika, um dos títulos de Kali.
Alguns estudiosos acreditam que ambas sejam derivadas de uma Deusa ainda mais antiga, talvez uma das primeiras expressões da face negra da Deusa já cultuadas pela humanidade. Ela foi e é conhecida por inúmeros nomes: Cailleach Bheur or Carlin, na Escócia; Cally Berry ou Cailleach Beara, na Irlanda; Cailleah ny Groamch, na ilha de Man; Black Annis, na Bretanha e Digne, no país de Gales, todas equivalentes a Kali.

Cailleach também é considerada uma outra forma das Deusas Scathach e Skadi. Na Irlanda ela era conhecida como uma divindade que podia trazer e curar doenças, principalmente de crianças. O nome Caillech significa mulher velha, bruxa ou mulher velada. Sua imagem velada a relaciona com os mistérios de se conhecer o futuro, particularmente a hora da morte de cada um. Nas lendas Medievais ela era a Rainha Negra do Paraíso, aquela a quem os espanhóis chamavam de Califia; a palavra Califórnia vem deste nome.
Cailleach rege o céu, a terra, o Sol e a Lua, o tempo e as estações. Ela criava as montanhas com as pedras que carregava em seu avental, mas também trazia aos homens as doenças, a velhice a morte. Ela era também um espírito protetor dos rios e lagos, garantindo que eles não secariam. Ela controla os meses de inverno, trazendo o frio, as chuvas e a neve. Mas um de seus principais títulos é Rainha da Tempestade, pois com seu cajado ela trazia e controlava as tempestades, particularmente as nevascas e furacões.
Cailleach é a guardiã do portal que leva à parte escura do ano, iniciada no Samhain e é invocada nos rituais de morte e transformação. Nos mitos da troca de poder entre as faces da Deusa ela recebe o bastão branco dos meses de luz e o torna negro para os meses de trevas, devolvendo-o à Donzela no Imbolc. Em alguns mitos diz-se que Ela retorna à terra no Imbolc, tornando-se pedra para acordar somente no próximo Samhain.

Como o Seu nome não aparece nos mitos escritos da Irlanda, mas apenas em histórias antigas e nomes de lugar, presume-se que Ela era uma divindade pré-celta, trazida pelos povos colonizadores das ilhas Britânicas, vindos do leste Europeu, possivelmente da Índia. Ela era tão poderosa e amada que mesmo quando os recém-chegados trouxeram suas divindades, como Brigit, Cailleach ainda continuou sendo lembrada.
Apesar de ser considerada uma Deusa Anciã, Ela é quase sempre representada com um rosto jovem, mostra de seu poder de se rejuvenescer constantemente. Ela possui um aspecto Donzela parecido com Diana, sendo a protetora dos animais selvagens contra caçadores. Ele protege principalmente o cervo e o lobo, assegurando bandos saudáveis. Há um mito antigo que conta que os caçadores oravam a Cailleach para saber onde encontrar os cervos e quantos matar. Ela os guiava para aqueles que podiam ser mortos, desobedecê-la trazia a sua fúria, em forma de ataques de alcateias para a vila dos desobedientes.

Ela também possui um aspecto Mãe, sendo aquela a quem as mães pediam que curasse seus filhos das doenças do inverno. O Gato é um de seus animais sagrados. Em algumas lendas ela toma a forma de gato para testar o caráter das pessoas. Em sua forma humana, ela costumava ir de casa em casa no inverno pedindo abrigo e comida. Os que a acolhiam contavam com sua eterna bênção e proteção e os outros eram amaldiçoados e não atravessavam o inverno incólumes. São também sagrados para ela o corvo e a gralha.
Seu rosto é azul e seus cabelos sempre são representados soltos e brancos, escapando de seu manto e capuz. Ela carrega um caldeirão em uma das mãos e um cajado na outra. O seu cajado ou bastão conferia-lhe o poder sobre o tempo, fazendo dela uma das Deusas mais importantes para a manutenção da vida no planeta. Ela é também uma Deusa associada à crua honestidade e à verdade, doa a quem doer.
Também aparece como uma mulher velha que pede ao herói que durma com ela. Se o herói concorda em dormir com ela, ela se transforma em uma linda donzela.
O Livro de Lecam (cerca de 1400 E.C.) alega que Cailleach Beara era a Deusa da qual se originaram os povos da região de Kerry. Na Escócia ela representa a personificação do inverno, nasce velha no Samhain e fica cada vez mais jovem até se tornar uma linda Donzela em Beltane.
O contacto com esta Deusa ajuda-nos a redescobrir a soberania sobre a nossa própria vida, um tipo especial de poder e confiança. Cailleach, violenta como pode parecer, vive em todos nós. Ela traz-nos a sabedoria para deixar ir aquilo de que não mais precisamos e manter as sementes do que está para vir. Ela vive no limite entre a Vida e a Morte.

http://www.luzemhisterio.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=134%3Anovembro&catid=15&Itemid=25

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A REPRESSÃO DO FEMININO


“Pela repressão, a alegria do feminino foi rebaixada como mera frivolidade; a sua sensualidade expressa foi diminuída como coisa de prostituta, ou então ridicularizada pelo seu sentimentalismo ou reduzida exclusivamente a instinto maternal; a vitalidade da mulher foi submetida ao peso das obrigações e da obediência.


Foi essa desvalorização que gerou filhas desenraizadas e subterrâneas do patriarcado, separando a força feminina da paixão, tornando-a imagem dos seus sonhos e ideais de um céu inatingível mantidos pomposamente por um espírito que soa a falso quando comparado com os padrões instintivos simbolizados pela rainha do céu e da terra”. (AUTOR DESCONHECIDO)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

SER FIEL A SI MESM@


O NÓ VITAL DE CADA UM(A)

"Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar na mesma.(...) Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias.(...)

Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transformar num boi? Assim fiquei eu...em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante.(...) Uma amiga, um dia desses, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou essa calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos.(...). O que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver."

CLARICE LISPECTOR in carta a sua irmã Tânia, 1947

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

AS FACES MENOS CONHECIDAS DA DEUSA


O aspecto menos compreendido da Grande Mãe - e, por isso, o mais temido - é a Deusa Negra, a Face Ceifadora.
Assim como a Donzela, a Mãe e a Anciã regem etapas do eterno ciclo da vida - do nascimento (plantio), amadurecimento (florescimento e frutificação) e do inevitável declínio, a Deusa Negra encerra o ciclo e representa a decomposição e a morte.

Como Ceifadora, ela é a destruidora de tudo o que esgotou o seu tempo, de tudo o que cumpriu a sua finalidade e não serve mais. É ela quem limpa a terra após a colheita para o repouso necessário à germinação de novas sementes. O seu poder é o da Lua Negra, dos mistérios ocultos na escuridão, do vazio e do silêncio que antecedem o surgimento da luz, o raiar do dia e o começo dum novo ciclo. Ela ensina que sem morte não há renascimento, sem fim não pode haver um novo começo, sem dissolução do velho não há a renovação.

Como mestra da escuridão, ela orienta e conduz ao encontro da “sombra”, o aspecto perturbador e renegado do próprio ser. Se pedir a sua ajuda e tiver a coragem de mergulhar nas profundezas do seu mundo interior para descobrir, encarar, reconhecer e aceitar a sua sombra, encontrará a sua autêntica identidade, livre das máscaras da personalidade. Confrontar, contemplar e assimilar o poder da sombra representam a verdadeira iniciação nos mistérios da Deusa Escura e da Lua Negra, iniciação que exige, como preço, mudanças, transformações e novos rumos.

"Abraçar a sombra" significa aceitar-se assim como você realmente é - mescla de dor e alegria, medo e coragem, conquistas e perdas, sucessos e fracassos, acertos e erros, luz e sombra. Somente assim encontrará o seu verdadeiro e completo poder de mulher e a integração da sua totalidade.
São manifestações da Deusa Negra: Hécate, Kali, Baba Yaga, Lilith, Cailleach, Morrigan, Hel, Ran, Sekhmet, Ereshkigal, Coatlicue.

Outro aspecto que foge da costumeira manifestação da Deusa Tríplice, relacionada com a Lua Crescente, Cheia e Minguante, é a Rainha, conhecida como a Imperatriz e as rainhas dos naipes do Tarot.
Esta face da Deusa corresponde à fase da Lua Balsâmica, entre a Lua Minguante e a Negra. Ela rege a maturidade, entre os 40 e os 50 ou mais anos, da mulher que ultrapassou ou negou a fase da maternidade, que está no auge e plenitude da sua expressão, afirmação e realização, mas que ainda não atingiu a sabedoria da Anciã.

Nesta fase, chamada de pré-climatério, ocorrem mudanças no corpo físico, a mente torna-se inquieta, os pensamentos são voláteis e tumultuosos, a percepção é aguda, a sensibilidade exacerbada, as emoções em conflito. É um período de inquietação e aparentes contradições, de mudanças de gostos e atitudes, de busca de “algo” vago ou indefinido no campo espiritual, profissional ou afetivo. Surgem temores em relação ao futuro, o medo do desconhecido, a preocupação com o envelhecimento, ainda mais numa sociedade que enaltece o valor e o viço da juventude.

Dependerá da mulher passar por esta fase com dor ou com a alegria de quem já venceu batalhas, cumpriu deveres, plantou e colheu e está a aproximar-se dum tempo de paz e realização interior, com a segurança da experiência e as promessas de futura sabedoria. Abençoar esta fase, rever o passado e transmutar os resíduos com o auxílio da Deusa Negra, agradecer à Donzela e à Mãe pelo plantação e a colheita, são medidas recomendáveis que abrem as portas para a Grande Mudança, quando o seu sangue não mais for vertido, mas retido no seu ventre, e quando o tempo assinalar a sua coroação – agora já não como Rainha, mas como uma Sábia Mulher Coroada, herdeira das Matriarcas e das Mães de Clã do passado ancestral.

Mirella Faur
http://sitioremanso.multiply.com/journal/item/4

domingo, 28 de novembro de 2010

A AUTORIDADE ESPIRITUAL FEMININA


HAGIA SOPHIA, A SABEDORIA SAGRADA

..Há milénios fui pelo Senhor criada, no começo de tudo, como Seu primeiro ato criador, antes mesmo da Terra, quando não existia o abismo profundo, nem fontes de água, montanhas, colinas ou campos. Quando Ele estabeleceu os céus Eu estava lá, também quando traçou um círculo na superfície do abismo e firmou a abóbada celeste, quando delimitou as margens dos mares e a fundação da Terra. Eu estava sempre ao seu lado como uma Mestra criadora e parceira, sendo o seu deleite e me alegrando ao lado dele no mundo habitado... Livro dos provérbios, 8:22-31


Inúmeros textos (“livros da sabedoria”) da bíblia hebraica descrevem Hokhmah, a Sabedoria feminina, de forma complexa e desafiadora, dando origem a inúmeras interpretações e contradizendo o conhecido monoteísmo judaico. Ela – assim como Yahweh - era invisível e transcendente, a sua origem retrocedendo ao “inicio dos tempos antes da Terra existir”. Mas também era imanente, pois além de consorte de Deus e construtora do Universo, ela fazia parte da criação e caminhava no meio da humanidade. A controvérsia gira em torno da sua aparição, vista ora como primeiro ato de criação de Deus, ora como entidade pré-existente, herdeira de Zoé, arquétipo da própria existência. Filósofos modernos argumentam que a Sabedoria representa a ordem oculta do mundo, sendo uma lei cósmica, um pré-requisito da criação e portanto percebida e reconhecida por Deus, mas sem ser por ele criada. Como princípio espiritual e força transcendental, Hokhmah é a mediadora entre Deus e o mundo e proporciona à humanidade a sua redenção. O seu surgimento (do abismo profundo, sinónimo do ventre primordial, de uma Deusa mãe) confirma a sua origem e natureza feminina e co-participante no processo de criação. A natureza de Hokhmah é a própria Lei da Vida, mescla de amor e conhecimento que traz à humanidade tanto a alegria, quanto o sofrimento. Ela é o espírito invisível que guia a vida dos humanos e os convida através das mulheres a participarem da sua hospitalidade e buscarem os seus conselhos, como é descrito nestes versos:

A sabedoria construiu a Sua casa sobre sete pilares, preparou uma farta mesa e enviou as Suas mulheres para convidar aqueles que queriam ter a visão para partilhar do seu pão e do seu vinho (Provérbios 9:1-6).

....saibam que não dedico os meus esforços apenas a mim, mas a todos aqueles que buscam sabedoria. Os Meus pensamentos são mais amplos que o mar e os meus conselhos mais profundos que o grande vazio... (Livro de Ben Sirach 24:3-6)

Os livros mais antigos da Bíblia que falam sobre a sabedoria baseados em compilações de textos arcaicos da Suméria, Babilónia e Egipto, preservam as qualidades de sabedoria de deusas como Nammu, Inanna, Cibele, Isis, as Rainhas do céu e da Terra que antecederam por dois milénios a cultura hebraica e grega. Muitas destas imagens e atributos constituíram a base dos textos do Velho Testamento, em que a sabedoria aparece como uma árvore com fruto, um manto que envolve e protege, uma figura velada e misteriosa, um símbolo mítico da divindade feminina.
A sua mudança da representação metafórica da sabedoria no judaísmo, personalizada nos textos posteriores (hebraicos, gnósticos, cabalísticos e helenísticos) para Espírito Santo e Logos foi embasada em distorções de palavras e géneros na língua hebraica e grega. De Hokhmah - palavra feminina em hebraico - chegou-se ao termo grego neutro Hagion Pneuma e ao masculino Logos, depois ao conceito latino e masculino do Spiritus Sanctus, apesar de a sua imagem ser a pomba, totem da Deusa Mãe. A transição da sabedoria como atributo da Mãe Deusa até à sua transformação no Espírito Santo dos evangelhos gnósticos e cristãos aparece nos Livros dos provérbios (400 a.C), Ben Sirach (200 a.C.), O canto de Salomão, o Livro de Enoch (100 a.C.). No livro de Ben Sirach “a sabedoria é criada da boca do Altíssimo, que fez sozinho a abóbada celeste, os mares e a terra, e que lhe determinou morar somente em Israel”, privando assim o resto da humanidade da qualidade universal da Sabedoria. A real fonte da compreensão intelectual, do esforço e da realização foi transformada no Torah, que à sua vez passou a ser declarado o receptáculo da própria Sabedoria identificada pelo Logos, a palavra. A jornada da Sabedoria da Terra para o céu foi descrita desta forma:

A Sabedoria tentou fazer sua morada no meio dos filhos dos homens, mas não encontrou lugar para ficar e retornou à sua origem, entre os anjos (Livro de Enoch, 42:1).


Como punição pela perda, os pecadores seriam punidos, as pessoas comuns não mais podiam reverenciar as leis da natureza, que iriam ser interpretadas por mestres, padres homens de lei, os únicos autorizados para compreender os escritos sagrados. O Torah foi visto como escrito pelo próprio Deus e a natureza feminina e universal da Sabedoria foi abolida, considerada um compromisso com a lei de punição e recompensa.


O verdadeiro significado da sabedoria não se perdeu mas ressurgiu de outra forma, como Sophia, no Livro de Sabedoria de Salomão, escrito em grego no primeiro século a.C. em Alexandria, por autores judeus não tradicionais com orientação helenística e com comentários de mulheres de um grupo místico chamado Therapeutae. Nele a descrição de Sophia (“a qualidade elevada da alma”) é muito semelhante a Hokhmah bíblica, mas com poderes expandidos, como podemos ver nos versos a seguir:
Ele deu-me o conhecimento de tudo o que existe, para compreender a ordem do mundo e a ação dos elementos, o início, meio e final do tempo, a mudança das estações, os ciclos dos anos e a posição das estrelas, a natureza dos animais, as espécies das plantas, as virtudes das raízes, as forças dos espíritos e o raciocínio dos homens. (Livro de Sabedoria do Salomão, 7:17-20).


Sophia revela-se uma divindade feminina, atributo de sabedoria da natureza acessível às mulheres, que ficou degradada ao tornar-se possessão humana e apenas um veículo para a grandeza masculina e por isso aos poucos desaparecendo. Interpretações posteriores consideram a Sabedoria o Espírito Divino, um atributo radiante e reflexo luminoso de Deus ou o próprio espírito criador, a centelha divina presente nos humanos e em toda a natureza. Ela pode ser vista como criadora por ter feito o mundo e conhecer as suas leis, que partilha com os seres humanos. A atividade mental, a capacidade criativa portanto pertencem também às mulheres, permitindo-lhes assim confiar no seu intelecto e raciocínio lógico. Deus é considerado a fonte do conhecimento, mas cuja origem é a própria sabedoria, contida nas leis naturais e não confinada a um livro bíblico. A sabedoria é definida como: inteligente, sagrada, única, diversa na manifestação, sutil, móvel, clara, pura, singela, bondosa, invulnerável, beneficente, irresistível, perspicaz, humana, firme, segura, livre da ansiedade, poderosa, vê tudo e permeia os espíritos inteligentes, puros e bondosos. Porém, depois dos capítulos iniciais do livro em que se enumeram as vinte e uma qualidades de Sophia, ela passa a ser vista como uma mulher com que os homens desejam se casar e considerá-la uma maneira para aumentar seu próprio poder. A Sabedoria tornou-se assim um objeto a ser possuído pelos sábios, garantindo-lhes poder e vitória sobre os inimigos, sucesso nos negócios e felicidade doméstica, perdendo os seus aspectos universais e sagrados. Especula-se que os capítulos foram escritos por pessoas em épocas diferentes, mas o mistério não foi resolvido.

Reflexos da Hockhma hebraica são encontrados nos hinos órficos, 80 poemas que honravam várias divindades gregas, atribuídos a Orfeu e usados em rituais entre 300 a.C. e 500 d.C. Independentemente dos seus nomes, as deusas honradas eram manifestações da Grande Mãe, o princípio divino feminino universal, existente e manifestado nas leis da natureza, conhecido como Hockhma ou Sofia, a Sabedoria, com os mesmos atributos e qualidades citados nos livros hebraicos. Todavia, a mudança histórica do sagrado feminino para o monoteísmo patriarcal levou aos poucos ao esquecimento e diminuição de status das deusas do Oriente próximo e da Grécia, antes cultuadas e honradas. Expandindo a noção da divindade acima da compreensão humana a Sabedoria perdeu o seu aspecto telúrico, a mulher foi dissociada da imagem da Deusa e passou a ser menosprezada como manifestação do pecado e do mal. Espírito e natureza tornaram-se polaridades opostas e simbolizadas pela Sophia celeste e a Eva terrestre.

Com o advento do cristianismo o arquétipo feminino foi totalmente eliminado da ligação com o divino, a matéria decretada inferior ao espírito, o atributo de sabedoria associado com Jesus e depois transformado na terceira figura da trindade masculina, o Espírito Santo. A conexão entre Sophia, a Mãe Divina e seu filho Cristo é perdida, Jesus nasce como filho de Deus Pai e de Maria (simples mortal) e assume as qualidades de Sophia, a Sabedoria passando a ser atributo masculino. Hockhma hebraica ou Sophia gnóstica são totalmente negadas como aspectos divinos femininos e jamais é feita alguma menção à sua existência prévia nas escrituras cristãs. A Sabedoria é personificada por Jesus como o mediador entre o plano divino e material e cuja missão era salvar as almas e não mais orientá-las para se tornarem “moradas da Sabedoria”. Jesus, apesar da sua associação pelo apóstolo posterior pelo apóstolo Paulo com os atributos e títulos da sabedoria, nunca afirmou ser ele a Sabedoria divina. O enfoque passou a ser a salvação, conseguida ao pertencer ao cristianismo, que privou assim a alma da união mística do criador com a criação, separando os processos físicos, mentais e espirituais e levando ao distanciamento da natureza e à inferiorização da mulher.


As seitas gnósticas que preservaram a associação mítica entre a Deusa e a imagem de Sophia como personificação da sabedoria divina feminina, foram proibidas no ano 326 pelo imperador Constantino. Sophia ou Sapientia (que emerge do mar e de cujos seios jorram o vinho vermelho e branco da iluminação pela união das polaridades) reaparece apenas na Idade Média nas obras de vários filósofos, ordens iniciáticas (Templários, Cátaros, Graal) alquimistas e trovadores. A natureza lunar de Sapientia é representada nas suas duas faces, uma clara, outra escura e que está presente nas figuras das duas Marias, a Mãe (doadora da luz) e a consorte (Madalena que detém o conhecimento da sabedoria oculta). A igreja ortodoxa preservou por um bom tempo o título grego de Sophia como sendo a sabedoria divina (Hagia Sophia) dedicando-lhe inúmeras igrejas, inclusive a basílica bizantina. Santa Sofia foi uma adaptação da Grande Mãe gnóstica simbolizada pela pomba de Afrodite e depois transformada no Espírito Santo.


Por ser a natureza desvalorizada na comparação com a salvação e as mulheres sendo a ela associados, surgiu a doutrina do controle e autoridade masculina, a dominação do mundo material e exploração das mulheres. Esta teoria foi reforçada pela culpa atribuída à mulher pelo pecado original e a origem dos males no mundo.A demonização das mulheres e da natureza enfatizou a supremacia masculina, divina e humana, premissa que incentivou as horrendas e cruéis perseguições da Inquisição na Idade Média.

O que importa para nós mulheres é lembrar que Hagia Sophia é uma energia divina feminina, mediadora entre o céu e a Terra, que detém e compartilha o conhecimento universal do Logos e da sabedoria ancestral. Ela existe em todas nós mulheres e agora chegou a hora de prestar atenção à sua voz e agir de acordo com as leis da natureza, onde é sua morada, buscando inspiração, conhecimento intelectual e sintonia espiritual. Quanto mais conscientes agirmos na nossa vida, mais poderoso e recompensador será o conhecimento que encontraremos, fruto da árvore da sabedoria e verdade. Conscientes do nosso poder e da habilidade de criar, poderemos assumir a nossa condição inata de Filhas de Sophia, sacerdotisas da dança sagrada da vida e da Terra, artesãs dos nossos sonhos e realizações, reconhecendo e honrando a unidade e a interdependência da luz e escuridão, silêncio e palavra, razão e intuição, Espírito e matéria.

http://sitioremanso.multiply.com/journal/item/84
Imagens: Google

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

AUTOESTIMA EM PRIMEIRA MÃO


"EU AMO A MINHA VULVA

O meu sexo é meu. De mais ninguém.

Descobri o prazer quando era ainda muito pequena, creio que, como muitas garotinhas, investiguei o meu corpo até encontrar “a tecla”. Lembro-me que isso deixava os meus país nervosos e compreendo-os muito bem. A minha mãe, como muitas outras mães, cresceu num ambiente em que “tocar-se” era sujo, era mau, era o camino directo para o inferno. Sei que a história teria sido diferente se eu fosse um rapaz. Hoje em dia o facto dum garoto se masturbar pode suscitar alguma risada nervosa por parte dos pais, mas nunca se sentirão tão incomodados (até é provável que algum pai se sinta orgulhoso) como quando se trata duma menina doce e de belos caracóis dourados que passa o dia a “brincar” com o seu ursito de peluche (no meu caso era um dragão cor-de-rosa).

Creio que uma gravidez sã passa por uma sexualidades sã e esta passa sem dúvida nenhuma por uma autoexploração aberta, alegre e cheia de fantasia. Esta é a típica exploração de meninas e meninos de tenra idade. Qual de nós não descobriu o que @ diferenciava d@s irm@os ou prim@s? Quem não fez explorações nesta área com @s amiguinh@s mais próximas? A questão é que nessa altura não havia malícia nem pecado em nós, mas apenas nos olhos atemorizados dos nossos pais. E era isso que nos fazia sentir sujas, porque além do mais “uma menina não tem desejo sexual”, porque toooooooooda a gente sabe que o apetite sexual é próprio de meninos, de futuros homens (naturalmente heterossexuais!). As mulheres nada sentem nem padecem neste campo até encontarem o tal príncipe encantado, que com o seu magnum 45 entre as pernas, as leva para a Ilha do Prazer, onde apenas poderão chegar pela sua mão…

É curioso mas sempre sentí que fazer amor comigo mesma me dava muito mais satisfação que alguns encontros furtivos. O certo é até há bem pouco não podia abandonar a sensação viscosa e obscura que me invadia cada vez que acaba de elevar-me sozinha ao sétimo céu. Sentía-me sempre suja, culpada, como se estivesse a trair o meu companheiro, os meus pais e a humanidade inteira. Tudo isso apenas por ser uma mulher e ter apetite sexual, tudo por desfrutar comigo de mim mesma… porque, óbvio, as mulheres decentes não o fazem…

Agora sinto-me muito feliz por conhecer estudos que demonstram que um autoconhecimento profundo e satisfatório do nosso corpo de mulher aumenta a nossa autoestima, ao mesmo tempo que nos protege de dependências tão prejudiciais como a perpétua busca do príncipe encantado ou a entrega do nosso corpo aos médicos no dia em que tivermos de fazer algo tão natural como parir.
O meu sexo é vital para mim. É centro de poder e de sabedoria. É o epicentro do prazer. É a minha cálida cova onde apenas permito que entre quem eu quero e na qual podemos juntos desfrutar. É o meu lugar sagrado, o meu templo. A minha vulva é preciosa, tal como a minha vagina. Ambas são activas, tal como os meus seios e como as minhas sinuosas ancas. Nada no meu corpo de mulher é passivo e destinado a ser activado apenas por mãos alheias.
Sem dúvida que amar-me todas as sextas de manhã é um dos maiores presentes que posso oferecer a mim própria a custo zero.

O prazer começa primeiro com cada uma de nós e depois então é que poderemos reparti-lo (se quisermos). É preciso reconhecer o nosso potencial e sorrir à mulher corada e acalorada pelo desejo.
Feliz reencontro, irmãs!"

in: http://blog.almadedoula.com/?p=333&preview=true

(tradução livre)

sábado, 20 de novembro de 2010

A DEUSA VIVE EM NÓS



UMA FORMA DE ELECTRIZAR A MULHER

O ORGULHO DA DEUSA VIVER EM NÓS e através de nós…

“O simbolismo da deusa electriliza a mulher moderna. A redescoberta das antigas civilizações matriarcais nos dá um senso profundo de orgulho, de ver a nossa capacidade como mulheres em criar e produzir cultura. Denunciar os erros do patriarcado nos dá um modelo de força e autoridades femininas. A deusa arcaica, a divindade primordial, a senhora dos caçadores da idade da pedra e das primeiras sementeira de grão, sob cuja inspiração os animais foram domesticados e as plantas medicinais descobertas, aquela cuja imagem deu origem às primeiras obras de arte que foram criadas, para a qual foram erigidos os megalitos, aquela que inspirou a música e a poesia, é novamente reconhecida hoje.”
*
“Na Witch craft, o “Caminho da Deusa”* nós não cremos na deusa, nós nos religamos a ela através da Lua, das estrelas, do oceano, da terra, através das árvores, dos animais, dos outros seres humanos, através de nós mesmas. Ela está aqui, ela está no coração de todos e de tudo. A deusa existe antes de toda a Terra, ela é o obscuro, a mãe que nutre e que produz toda a vida. Ela é o poder fecundante da vida, o útero, mas também a tumba que nos recebe, o poder da morte. Tudo dela provem, tudo a ela retorna…Ela é o corpo, e o corpo é sagrado. Útero, seios ventre, boca, vagina, pénis, ossos, sangue; nenhuma parte do corpo é impura, nenhum aspecto do processo de vida é manchado pelo pecado. O nascimento, a morte e a dissolução são três partes sagradas do ciclo. Quer comamos, façamos amor ou eliminemos os dejectos de nosso corpo, sempre manifestamos a deusa.
*
O seu culto pode assumir qualquer forma, em qualquer lugar; ele não requer liturgia, nem catedral nem confissão.

(…)
O desejo é a cimento do universo, ele vincula o electrão e o núcleo, o planeta ao sol, ele cria as formas, ele cria o mundo. Sigam o desejo até ao seu termo, unam-se ao objecto desejado até se tornarem esse objecto, até se tornarem a deusa.”
“Para a mulher, a deusa simboliza o seu ser mais profundo, o poder libertador, nutritivo e benéfico. O cosmo é modelado como um corpo de mulher, que é sagrado. Todas as fases da vida são sagradas. A idade é uma bênção, não uma maldição. A deusa não limita a mulher a ser um mero corpo, ela desperta o espírito, a mente e as emoções. Através dela a mulher pode conhecer o poder da sua cólera, assim como a força do seu amor.”
Starhawk
*
Citações tiradas de: André Van Lysebeth

Tantra – O Culto da Feminilidade - Outra visão da vida e do sexo
(Através de Rosa Leonor Pedro)

Imagem: Goddess Ellen of the Ways

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

UMA RELIGIÃO SEM DOGMA NEM HIERARQUIA


“Las mujeres de la Diosa”

(Tradução: Luciana Onofre)
Texto de: Anália Bernardo

A meados da década de 70, dentro do movimento feminista nos Estados Unidos, Zsuzsanna Budapest e Starhawk, vincularam a Tradição das Deusas e Bruxas com as lutas pelos direitos das mulheres, criando juntamente com outras pesquisadoras o conceito do Sagrado Feminino, uma corrente espiritual cuja cosmovisão e prática ritual não provinham de nenhuma igreja ou religião judaico-cristã.
Assim surge o Movimento das Deusas, a Witchcraft, e a Espiritualidade Feminina que celebram as Deusas, imanentes à natureza, às mulheres e nas relações culturais que surgem dessa cosmovisão.
Uma Espiritualidade que devolveu às mulheres o direito à liberdade de culto do Divino Feminino, sem uma autoridade religiosa masculina ou guru iluminado, que defina as crenças das mulheres e como exercê-las.
Ou seja, foram as mulheres as que se apropriaram desse direito, recriando a antiga religião matrifocal com projeções políticas, sexuais de género, ecológicas e comunitárias, que estiveram presentes nas tradições das Bruxas, Sacerdotisas e Xamãs na Europa pré-cristã, e em outros lugares onde as Deusas expressavam as potencialidades dos corpos, almas, mentes e criações das mulheres de forma positiva, outorgando liberdade, dignidade e poder de vinculação com os demais sem o caráter de subjugação sexual.

O pecado original, a culpa de Eva, o Deus pai, o Demónio e a necessidade de redenção da natureza perdida pelo pecado, não fazem parte desta cosmovisão ancestral.
Até então as religiões que maioritariamente as mulheres conheciam e praticavam eram as espiritualidades e teologias criadas e dirigidas pelos homens, centradas em figuras masculinas como Javeh, Jesus, Alá, Khrisna, Buda, onde a discriminação e desvalorização das mulheres e do Divino Feminino se mantinham sem modificações há séculos. Entre tanto, dois milénios de cristianismo são muito pouco, por exemplo, ao serem comparados com o culto matrifocal, existente a partir do Paleolítico superior, 20 mil anos AC. E no Neolítico Agrícola, 7 mil anos AC, até às culturas clássicas da Antiguidade e aos primeiros séculos do cristianismo. E ainda quando Constantino decretava o encerramento de templos e declarava o cristianismo como religião oficial dos povos da Europa, estes continuavam a praticar os seus cultos ao Divino Feminino, empregando diversos nomes, ritos lunares, sazonais e Xamânicos.
Assim sendo, a igreja criou um sistema de perseguição, tortura, e morte, inimaginável, para erradicar esta religiosidade tão enraizada na vida de gente comum, e que colocava as mulheres em lugar de respeito e dignidade, especialmente as bruxas, como sacerdotisas de ritos lunares, e agrícolas, conhecedoras de ervas curativas e anticoncepcionais, e de técnicas xamânicas para a visão sagrada, como pessoas com poder pessoal, social e espiritual, dentro das comunidades.
O retorno das Grandes Deusas

Em 1976, Merlin Stone publicou “Quando Deus era Mulher”, abrindo o caminho para uma série de estudos sobre as influências das religiões no processo de apropriação da dignidade e de empoderamento do eu. Aquele livro foi pioneiro e inspirou outras pesquisas que reinterpretaram mitos, tradições, ritos e evidências arqueológicas e antropológicas, sobre as religiões matrifocais que antecederam às patriarcais, realizados por Bárbara Walker, Mónica Sjoô, Riane Eisler, Caitlin Mathews, Mary Daly, Vicky Noble, Charlene Spretnak, Carol Christ, e as já citadas, Budapest e Starhawk.
A Espiritualidade Feminina conta com o trabalho arqueológico de Marija Gimbutas, quem orientou escavações na Europa Central e do Este, trazendo à luz evidências sobre civilizações matrifocais – que evoluíram entre 6.500 e 3.500 AC - como sociedades pacíficas, que não construíam armas de guerra, e se dedicavam à agricultura, arte, comércio e religiosidade, e nas quais – de acordo com evidências funerárias – não havia uma hierarquização de géneros. Mulheres e homens considerar-se-iam como filhos de uma mãe em comum, a Deusa, vivenciando uma forma de igualdade de géneros.
Gimbutas interpretou inúmeras estatuetas de deusas, objetos rituais e da vida quotidiana, nos quais se expressa a cosmovisão sagrada associada aos ciclos da Lua, da mulher, da natureza, da consciência humana e de todos os seres vivos com o arquétipo da Deusa-Serpente, da Deusa-Pássaro, criadora, a Deusa sustentadora (do cereal, da agricultura, da cultura), e a Deusa da Morte e o Renascimento. Uma Tríade feminina mais antiga que a cristã e a indiana, por exemplo, celebrada com os seus filhos e filhas e consortes.

Esta pesquisadora de origem lituana fez uma leitura arqueológica e mitológica, denotando que as simbologias sagradas e arquetípicas das deusas de culturas posteriores, já estavam presentes nos assentamentos neolíticos. Gimbutas destacou a continuidade da cosmovisão matrifocal neolítica, procedente das “Vénus” paleolíticas dos sapiens coletores, e caçadores das cavernas, e a sobrevivência nas tradições das deusas posteriores ao neolítico, que conhecemos como Eurinome, Gea, Ártemis, Hékate, Atenas, Isis, Nut, Maat, Inanna, Ishtar, Alat, Aserath, Rhea, Deméter, Perséfone, Diana, Juno, Minerva, Eire, Brigid, Freya, Baba Yaga, as Musas, as Parcas, as Graças, entre outras.



Gimbutas comprovou a tese de Jean Ellen Harrison, especialista em mitologia grega de Cambridge nos anos 30, a primeira a assinalar que as deusas gregas procediam de uma época histórica pré olímpica, e que o casamento de Hera e Zeus, não existia em suas origens. Este casamento forçado refletia o trânsito, às vezes dramático e violento, das culturas matrilineares para as patriarcais, após a conquista armada, e a inversão dos mitos de origem. Inclusivamente diferenciava os deuses guerreiros dos agrícolas da idade matrilinear: Hermes, Pã, Dionísio, indicando que o culto às deusas não excluía o Sagrado Masculino, porém não adorava um deus pai guerreiro e dominador, nem deidades masculinas que violentavam e matavam deusas e mulheres, como ocorre nos mitos tardios, surgidos daquela conquista e reforma.
Para Harrison os mitos gregos consistiam em tentativas, às vezes grosseiras e desesperadas de tentar modificar as crenças na Grande Mãe, suplantando-as com conceitos político-religiosos, como o mito de Atena, nascida da cabeça de Zeus, armada como uma guerreira, substituindo a ancestral Atena, uma deidade sem pai, padroeira de sabedoria e da inteligência, e assim apresentar os deuses arquipatriarcais (como Harrison os qualificou) como sendo primevos, melhores e supremos.

Robert Graves difundiu fora do âmbito académico o trabalho de Harrison, porém foi Gimbutas quem proporcionou as provas arqueológicas sobre as ondas invasoras patriarcais, assim como a cosmovisão cultural e religiosa quanto às Deusas Mães, até então considerada por muitos como simples “cultos de fertilidade”.
Por sua parte, a antropóloga Margaret Murray apresentou provas da Tradição das Bruxas como um Xamanismo europeu cujas origens se remetem aos Xamãs paleolíticos e siberianos.
As neojunguianas Silvia Brinton Perera, Marion Woodman, Jean Shinoda Bolen e Clarissa Pinkola Estés, realizaram uma tarefa similar à arqueológica, com o intuito de desenterrar o arquétipo da Grande Deusa, das profundezas do inconsciente pessoal e coletivo, de mulheres aonde a cultura e o ego patriarcal o mantinham recluso, reprimindo-o, para que as deusas não outorgassem poder espiritual, emocional e cultural ao corpo, à sexualidade, à liberdade e à consciência das mulheres.
Para as junguianas, os mitos tardios, como o de Atena nascendo da cabeça de Zeus, foram apreendidos profundamente pelas mulheres que cresceram sendo educadas segundo o ideário feminino da mentalidade patriarcal, tendo que adotar nos últimos períodos modos patriarcais, a fim de serem reconhecidas como “Filhas do Pai” e obter êxito profissional e intelectual.

Thealogia da Espiritualidade Feminina

Assim, as práticas do Movimento da Deusa, contam com uma thealogia (de Thea, a Deusa) rica e diversa, procedentes de muitas fontes – não apenas académica - já que não é este um discurso unificado, e nem ditado por uma autoridade centralizada. Para a thealogia, as Deusas são vivenciadas por mulheres de muitas formas, mediante uma das cosmovisões básicas com a nítida intenção de que não reproduzam estereótipos femininos e masculinos. A deidade criadora é celebrada na natureza como uma deidade que permanece imanente no mundo, e no universo que ela criou. Ela é vida, natureza, a criação, o espírito, as plantas, as montanhas, os lagos, os animais, e as pessoas. Reina nos céus, na terra e no outro mundo, abarcando os três mundos como acontece com deidades tríplices.
A Thealogia das deusas partilha muitos pontos de vista com tradições de povos autóctones e indígenas, que celebram o Sagrado Feminino com deidades como Andra Mari, Cerridwen, Ixchel, Pachamama, Mulher Aranha, Mulher Urso, Sedna, Amaterazu, Iemanjá, Umai, Kali...

A Criadora apresenta-se ciclicamente como tríplice: a Virgem da Lua Crescente e da Primavera ( virgem por que ainda pertence a si mesma), a Mãe ou Adulta Plena da Lua Cheia e do Verão, e a Anciã Sábia da Lua Minguante e do Outono, para depois se transformar na Deusa Escura da Lua Nova e do Inverno, no aspecto que se manifesta além da triplicidade, já citada. Ela é celebrada por mulheres deste movimento a cada mudança do ciclo lunar e estação.
A tríplice deusa celebra as idades da mulher e as três gerações de mulheres, que convivem num mesmo tempo e cultura. E vincula-as aos antepassados, tanto a mulheres como a homens do presente e as gerações futuras.
Esta tríade feminina é também um arquétipo na consciência profunda da mulher, em qualquer das suas idades biológicas, porque expressa diferentes processos internos e capacidades para ser e agir.
Este movimento não é um monoteísmo de saias, por isso também celebra o Sagrado Masculino partindo do ancestral deus agrícola e silvícola, oriundo das crenças paleolíticas e neolíticas, entendido como filho, amante consorte e iniciado em diversas manifestações sazonais e cíclicas.
Círculos e Grupos

Budapest e Starhawk, em companhia de outras mulheres Bruxas e Sacerdotisas têm-se dedicado à formação espiritual de mulheres em círculos e grupos com consciência de género, publicando livros contendo rituais sazonais e lunares, e propõem ritos menstruais, de passagem nas idades, de maternidade e de menopausa. Outros rituais para confrontarem problemáticas como o abuso sexual, deter a ação dum violentador, decidir a interrupção duma gravidez não desejada, melhorar a auto-estima, o ódio pelo próprio corpo, e a depressão.
Incluem nas suas práticas a magia feminina como meio de orientar a consciência perante as necessidades básicas no trabalho, no lar, na cura, nos estudos, na vida a dois. É uma espiritualidade onde a magia é somada ao trabalho político e psicológico em busca dos direitos da mulher, nos quais as serpentes, a vulva, e o sangue menstrual, são alguns dos símbolos da sacralidade feminina que voltam a ser utilizados pelas mulheres.




Neste movimento não existem estruturas eclesiásticas nem dogmas, nem papas, e toda a mulher pode celebrar as deusas, juntando-se a outras ou a sós. Nos Estados Unidos, há grupos de mulheres heterossexuais e/ou lésbicas, e outros grupos integrados por homens e mulheres; neles é promovido um compromisso com a vida, com o planeta, e a justiça, mediante ações individuais ou coletivas.
Na América Latina

Nesta região, as mulheres obtêm notícias quanto à Espiritualidade Feminina Pagã, a partir de livros, de oficinas e celebrações do Movimento das Deusas. Talvez, o aspecto que mais desafia, seja invocar uma deidade feminina nesta parte do continente onde a religião masculina continua a ter influência na auto-estima das mulheres, negando direitos e apresentando Maria como uma mulher subordinada ao deus masculino.
Quando as latino-americanas ouvem falar de deusas em relação às suas problemáticas, percebem-nas como uma fonte de água fresca no meio do deserto. Pois, há apenas cinco séculos que as mulheres adoravam deusas pré-colombinas e ainda o fazem em muitas comunidades. Assim, as mulheres da espiritualidade feminina pagã na América Latina, estão resgatando as deusas indígenas, a fim de reencontrar nelas a dimensão sagrada dos seus direitos.
Feministas académicas e políticas costumam temer que esta espiritualidade seja um meio de escapar, que afaste as mulheres da luta pelos seus direitos, já que todas as religiões que conhecem são opressivas, e não imaginam que possa existir algo diferente disso. Porém as três décadas do Movimento das Deusas são suficientes para comprovar a íntima relação que teceram as feministas espiritualistas entre direitos e religiosidade. Para as que celebram as deusas, os fios são entrelaçados sempre.

IN: http://deamatter.blogspot.com/2008/04/espiritualidade-feminina.html
http://sagrado-feminino.blogspot.com/search?q=deusa+brigid

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

DEUSAS PRÉ-ISLÂMICAS


Al-Lat


Trata-se duma deusa pré-islâmica da Arábia central e do norte, uma divindade complexa com associações variadas. Representava a Terra e foi considerada como uma Deusa-Mãe. A tradução do seu nome é “deusa”, e acredita-se que tenha sido associada ao Sol.
Al-Lat forma uma tríade com a Al-Uzza e Manat. Alguns dizem que é a versão feminina de Deus, e até é mencionada no Alcorão como sendo uma das três filhas de Deus. Esta deusa mítica de grande antiguidade representava a terra e os seus frutos; Al-Uzza era a Deusa da estrela da manhã, e Manat, a deusa do destino e do tempo.

Ela é a Mãe última da Terra, proporcionando aos Seus filhos do deserto a alimentação necessária. Os seus símbolos são o disco solar embalado pela lua crescente e pedras e cristais em forma de quadrado. O seu número sagrado é o sete.

Juramentos em Meca foram selados com votos pelo sal, pelo fogo, e por Al-Lat, que é a maior de todos. Os Seus seguidores foram mais proeminentes no Ta’if, que fica perto de Meca. Aqui Ela era adorada na forma dum bloco de granito branco, e as mulheres, em particular, faziam um círculo à volta desta pedra em honra da Deusa. Para além do Seu papel de uma Deusa-Mãe, acredita-se que Al-Lat tenha também sido associada ao Sol, à Lua ou ao planeta Vénus.

http://reclaimingthedarkgoddess.blogspot.com/

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

AFRODITE HETERA

Li há dias numa revista cor-de-rosa as declarações da mulher do escritor e apresentador de televisão José Rodrigues dos Santos sobre as condições em que decorre o seu trabalho e o apoio que lhe dá, que tem tudo a ver com o que diz Jean Shinoda Bolen sobre o papel da mulher no trabalho criativo dum homem, a tal "grande mulher" por trás do "grande homem"... Infelizmente, o contrário raramente se verifica...


"PORTADORAS DE VISÕES"

AFRODITE ENQUANTO A HETERA

“Para que um sonho se realize, temos de o ter, de acreditar nele e de trabalhar por ele. Muitas vezes é essencial que outra pessoa significativa acredite que o sonho é possível: essa pessoa é uma portadora de visões, cuja fé é frequentemente crucial. Daniel levinson, em Seasons of a Man’s Life, descreve a função duma “mulher especial” na fase de transição que representa a entrada dum jovem no mundo adulto. Segundo Levinson, uma mulher desse tipo possui uma relação especial com a realização do sonho do jovem. Ajuda-o a moldá-lo e a vivê-lo. Partilha-o, acredita no jovem como o herói do sonho, dá-lhe a sua bênção, junta-se a ele na jornada e proporciona um santuário onde as aspirações dele podem ser imaginadas e as suas esperanças alimentadas.


Essa mulher especial é semelhante à descrição que Toni Wolf faz da “mulher hetera” (do grego antigo hetaira, que quer dizer cortesã, mulher educada, culta e invulgarmente livre para a sua época; em alguns aspectos, assemelhava-se à gueixa japonesa), um tipo de mulher cujas relações com os homens possuem qualidades tanto eróticas como de companheirismo. Pode ser a sua femme inspiratrice ou musa. Segundo Wolf, uma analista jungiana que foi doente de Jung, era sua colega e, segundo alguns, a sua amante também. Pode ter sido a “mulher especial” de Jung, a mulher hetera que inspirou a teoria jungiana.

Por vezes, uma mulher possui o dom de atrair alguns ou muitos homens, que a consideram a mulher especial; é capaz de descobrir o seu potencial, de acreditar nos seus sonhos e de os inspirar. Lou Salomé Andreas, por exemplo, foi a mulher especial, a musa, a colega e a companheira de muitos homens famosos e criativos como Rilke, Nietzsche e Freud.

Tanto as mulheres como os homens precisam de ser capazes de imaginar que o seu sonho é possível e de ter outra pessoa que olhe para elas/es e para o seu sonho com a consciência de Afrodite, estimuladora do desenvolvimento. Especula-se acerca das razões que levam à existência dum número tão reduzido de mulheres artistas, líderes, maestras ou filósofas: talvez as mulheres não tenham portadores do sonho. As mulheres têm alimentado o sonho dos homens, ao passo que os homens, em geral, não têm alimentado muito bem o sonho das mulheres da sua vida.”
Jean Shinoda Bolen, AS DEUSAS EM CADA MULHER
Imagem: Laurie Blank

terça-feira, 9 de novembro de 2010

ATHENA E MEDUSA

Mirella Faur

Na arte clássica grega existem duas diferentes apresentações de Athena. A imagem mais familiar é a da deusa severa, paramentada com armadura, elmo e escudo, a virgem invicta e guardiã de Atenas, que protege as batalhas e os heróis. Já a mais antiga mostra-a como uma deusa majestosa, com o manto e os cabelos decorados com serpentes e um fuso na mão esquerda. No entanto, mesmo a figura guerreira guarda as memórias arcaicas da sua verdadeira origem, que aparecem na cabeça da Górgone com cabelos de serpentes, existente no seu escudo chamado Gorgoneion. Esta é a revelação da ascendência de Athena, herdeira da deusa minóica das serpentes, cultuada um milénio antes do mito patriarcal a ter transformado na filha nascida da cabeça do seu pai Zeus, surgindo totalmente armada e pronta para a batalha
Os mitos mais recentes descrevem a Górgone como um monstro atemorizador, vencido e morto pelo herói Perseu, que depois de a ter decapitado, entregou à deusa Athena a sua cabeça como gratidão pela ajuda recebida.

Analisando os detalhes do seu nascimento, descobrimos que a mãe de Athena era a deusa Métis, uma das esposas de Zeus, que a engoliu, temendo que o filho que ela carregava no ventre pudesse destroná-lo, assim como ele tinha feito com o seu progenitor Chronos. Sofrendo de atrozes dores de cabeça, Zeus pediu ajuda ao deus ferreiro Hefesto, que lhe abriu a cabeça com seu machado e dela emergiu Athena, defensora da ordem patriarcal e não sua opositora. É evidente a metáfora que descreve o predomínio do direito paterno e patriarcal sobre a antiga ordem da sociedade matrilinear e matrifocal. Vemos nisso uma semelhança com o nascimento de Eva da costela de Adão, o primogénito; tanto Eva quanto Athena sendo associadas a serpentes.
Em grego, Athena pode ser compreendida como A Thea, a Deusa, que também deu origem ao nome da cidade por Ela patrocinada. Seu segundo nome, Pallas, significa “virgem”, pois em nenhum mito é feita qualquer referência à sua condição de mãe, sendo sempre conselheira, protetora e amiga de heróis e reis.
Uma antiga imagem minóica do período neolítico retrata-a como uma deusa alada e com cabeça de pássaro. A transformação de Athena, de uma deusa pássaro e serpente numa deusa guerreira que negou a sua filiação materna, ocorreu ao longo dos dois milénios de influências indo-europeias e orientais na Grécia. O
nome da sua mãe – Métis – permaneceu no seu atributo “sabedoria” ou “aconselhamento prático”. A origem serpentínea de Athena aparece ocultada na lenda da Medusa que foi transformada pelo patriarcado na terrível Górgona cujo olhar petrificava os homens.

Na realidade, Medusa era neta de Gaia, o seu nome significava Senhora ou Rainha, sendo a deusa serpente das Amazonas da Líbia, uma das três irmãs Górgonas cujo cabelo encaracolado era semelhante a uma coroa de serpentes. Elas protegiam os mistérios matrifocais antigos e os limites dos lugares sagrados. Numa inscrição antiga, Medusa era chamada “Mãe dos Deuses, passado, presente, futuro, tudo o que foi, é e será” (frase posteriormente copiada pelos cristãos para definir Deus). A sua sabedoria era resumida nesta frase: “nenhum mortal foi capaz de levantar o véu que Me oculta”, por Ela ser a própria morte, sendo o aspecto destruidor da deusa tríplice. Outro significado da sua face oculta e perigosa era o tabu menstrual, pois os povos antigos temiam o poder mágico do sangue menstrual, que podia criar e destruir a vida. A serpente é um antigo símbolo da sabedoria feminina e também representa o poder da energia Kundalini, a capacidade de transmutação e regeneração.

A Górgona – sabedoria, força e protecção

Originariamente a cabeça da Górgona era encontrada na entrada dos templos como um escudo de proteção, a Górgona arcaica representando uma trindade lunar formada por sabedoria, força e proteção. A lenda conta que o sangue de Medusa - que tanto servia para curar como para matar - foi colhido dos seus dois lados (esquerdo e direito) colocado em duas ânforas e dado a Asclépio e à sua filha Hygeia, deuses da cura. A imagem das duas serpentes entrelaçadas existente no caduceu (o bastão das divindades de cura) simboliza o conceito de vida e morte, a polaridade masculino/ feminino, esquerda/ direita, a representação da hélice dupla do DNA. Os antigos símbolos da deusa serpente minóica sobreviveram na ordem patriarcal apenas no seu aspecto escuro e ameaçador (principalmente para os homens, que ficavam paralisados pelo poder do olhar da Medusa).

Um mito antigo atribui à Medusa o nascimento de Pégaso, o cavalo alado, como fruto da sua união com Poseidon, ambos metamorfoseados em equinos (cavalo e égua). Outro mito mais recente descreve a sua criação do sangue jorrando do pescoço de Medusa quando a sua cabeça foi cortada pela espada brilhante de Perseu. A vitória de Perseu é vista como uma ode à vitória da luz sobre os terrores da escuridão e das serpentes, reforçando assim a dicotomia entre luz e sombra, masculino e feminino, Sol e Lua.


Compete às atuais sacerdotisas e seguidoras da Deusa compreender a complexa polaridade deste mito não como um conflito entre o arquétipo patriarcal de Athena e a sua antiga origem lunar e gorgónica, mas uma complementação de opostos personificados por Athena - o aspecto solar, guerreiro, criativo, heróico - e Medusa, sua contraparte lunar, passiva, obscura e misteriosa, mas igualmente poderosa.

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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FIAR E TECER, AS ARTES MÁGICAS FEMININAS




Mirella Faur


Fiar e tecer são antigas artes mágicas femininas e aparecem nos mitos de várias deusas como expressão dos Seus poderes proféticos, criativos e sustentadores dos ciclos lunares, das estações e da vida humana. Tendo o fuso como símbolo de poder, a Deusa como Fonte Criadora controlava e mantinha a ordem cósmica, os ciclos naturais e a continuidade do mundo. Fiar é um processo cíclico assim como também é a alternância das fases lunares, das estações, da vida e da morte, do início e do fim. Inúmeros mitos descrevem deusas tecendo com fios subtis o céu, o mar, as nuvens, o tempo, os elementos da natureza, os ciclos e os destinos dos seres humanos.


As Senhoras do Destino de várias tradições - conhecidas como as Parcas gregas, as Moiras romanas, as Nornes nórdicas ou as Rodjenice eslavas - tinham como símbolo mágico o fuso, a roda de fiar, os fios e a tessitura. Elas fiavam, mediam e cortavam o fio da vida, entoando canções que prediziam os destinos dos recém- nascidos e apareciam como deusas tríplices ou tríades de deusas idosas, envoltas por mantos com capuz ou vestidas de branco, preto ou com idades diferenciadas pelas cores das suas roupas (branco, vermelho, preto).


A confecção de roupas de algum tipo de material tecido fazia parte das atividades femininas desde a descoberta paleolítica de preparação de fios, torcendo pequenos filamentos de fibras naturais. Com este método eram preparadas cordas para amarrar, redes, armadilhas, roupas e cobertas. A descoberta do ato de fiar pode ser comparada em importância nas artes domésticas com a introdução da roda nas atividades agrícolas.


A mais antiga tessitura foi encontrada na estatueta neolítica de Lespugue, datada de 20.000 anos a.C. cuja figura feminina chamada de Vénus usa um “avental” de fios torcidos amarrados com uma tira na cintura. Os fios com as extremidades desfiadas indicam a sua origem vegetal ou animal, modelo semelhante à saia de uma jovem, cuja múmia da Idade de Bronze (14000 a.C.) foi encontrada num tronco de madeira nos pântanos de Dinamarca e que está exposta atualmente no Museu Real de Copenhaga. *



Os seus ossos desapareceram, mas os seus cabelos, roupas e objetos de madeira foram preservados pela acidez do solo. A saia era do tipo envelope, com tiras entrançadas e presas na cintura e terminando com uma fileira de nós amarrando conchas e pedrinhas, que tilintavam com o balanço dos quadris ao andar. Acredita-se que esse tipo de saia - encontrada também noutros túmulos - não era para o uso comum, possivelmente tinha um significado místico e seria usada em ritos de passagem (menarca, casamento, gravidez). Resquícios desse tipo de avental e enfeites encontram-se nos trajes folclóricos dos Balcãs e nas saias com franjas das camponesas de Macedónia, cujos bordados têm formas de losangos, reconhecidos símbolos de fertilidade.


Cintos decorados e usados com objetivos mágicos são citados na Ilíade (coletânea de poemas de Homero), como no mito de Hera, que pegou emprestado o cinto mágico de Afrodite (cujos bordados enfeitiçados despertavam desejo e amor) para seduzir Zeus. Cintos longos tecidos de lã vermelha e com franjas nas extremidades - chamados zostra - eram heranças preciosas das mulheres europeias, que passavam de mãe para filha e eram usados nos partos difíceis, sendo colocados nos ventres das parturientes, assim como era feito com a reprodução do cinto mágico da deusa celta Brigid (chamado brat) que facilitava a concepção e o parto.


Temos, portanto, exemplos de roupas tecidas com fins mágicos de proteção e fertilidade desde tempos muito remotos, usadas pelas próprias deusas e que podiam ser “emprestadas” em ocasiões especiais. Na Grécia as deusas teciam e encorajavam as mulheres nessa arte mágica, como comprovam as lendas de mulheres sobrenaturais Circe e Calipso, os mitos da deusa Ártemis, Afrodite e principalmente Athena, exímia tecelã, que ensinou a tecelagem a Penélope e a Helena e teceu as roupas de Pandora, após ela ter sido criada pelos deuses.



A lã era o principal material usado na Grécia e no Norte europeu, enquanto no Egipto as roupas eram feitas de linho e cânhamo, tendo o linho sido usado na Anatólia desde 7000 anos a.C. e destinado a roupas, toalhas e faixas para embalsamar múmias.
No Norte europeu a tecelagem era praticada desde a Idade de Bronze, usando lã, cânhamo, linho ou outras fibras, resultando em tecidos de boa qualidade como comprovam os achados dos túmulos e sítios arqueológicos. Durante pelo menos 9000 anos as mulheres passaram os meses de inverno fiando e tecendo e os seus tecidos serviam como moeda de troca no intercâmbio com outros países. Somente no século XII o tear horizontal substituiu o fuso e a roda de fiar e confrarias masculinas foram aos poucos assumindo a tecelagem em grande escala. Porém, as mulheres continuaram a fiar e tecer nas suas casas, mantendo assim vivas as lendas e tradições da tecelagem como uma arte mágica feminina.



Um antigo método de tecer, usando pequenas tábuas furadas no meio e giradas com as mãos, era usado pelas videntes da Irlanda para prever o resultado das batalhas e os cataclismos naturais. O fuso era usado também como arma feminina nas disputas domésticas para se defenderem da violência masculina, além de ser o principal meio para ganhar o seu sustento. Além de roupas e lençóis, as mulheres teciam também tapeçarias para as paredes, com cenas míticas ou de guerra e que adornavam palácios e templos. Essas cenas tecidas pelas mulheres de várias épocas históricas e diversos lugares, não apenas divulgavam os mitos quando expostas em datas festivas, mas influenciaram a sua interpretação histórica posterior.


Na Escandinávia, Alemanha e nos países bálticos permaneceram várias superstições e proibições ligadas ao ato de fiar, bem como certos dias dedicados às deusas, quando era proibido fiar, tecer ou costurar, talvez para proporcionar um merecido descanso após a labuta diária. As lendas das deusas Holda, Perchta, Holle, Latvia, Habetrot - que puniam as preguiçosas com os seus fusos - na verdade, serviam como incentivo para que o trabalho fosse bem feito e prometiam recompensas para aquelas que se esmeravam na sua arte. A deusa padroeira das fiandeiras existiu em várias tradições como a egípcia (Ísis), alemã (Holle, Perchta), basca (Mari), lituana (Laima), italiana (Befana), eslava (Baba Yaga, Mokosh), japonesa (Amaterassu), grega (Ártemis, Athena), nórdica (Frigga), báltica (Saule, Sunna, Rana Neida), além da Rainha das Fadas de França, Espanha, Irlanda, Inglaterra.


As figuras sobrenaturais - que persistiram nas tradições femininas até o século XX - guardam certas características das antigas deusas da fertilidade, cujas bênçãos eram procuradas por moças e mulheres adultas e cuja ira se direcionava contra aqueles que as exploravam ou maltratavam. As histórias contadas nas longas e escuras noites de inverno preservaram o legado ancestral, que permanece nos contos de fadas e nas imagens das fadas benévolas ou vingativas.
Em diversas bracteate de ouro do século VI encontradas na Alemanha e usadas como amuletos, aparecem figuras femininas segurando objetos ligados ao fiar e tecer, reminiscências das deusas pré-cristãs. No tempo dos Vikings o predomínio das permanentes batalhas nas lendas associou as atividades de fiar e tecer com os presságios dos desfechos dos combates e dos sinais do destino. Num poema norueguês do século XI, descreve-se uma cena dramática em que doze Valquírias tecem entranhas humanas sobre um tear feito de espadas e caveiras e cuja canção pressagia o fim funesto de uma batalha e a morte de muitos guerreiros. O poema talvez mesclasse as figuras das Nornes com as Valquírias, que também aparecem noutros mitos com a missão de prever ou determinar o resultado das batalhas e a escolha daqueles que iriam morrer. Ecos das deusas tecelãs existem no cristianismo, como são vistas nas cenas da Anunciação de vários afrescos, onde Maria aparece segurando um fuso e o fio passa iluminado acima da cabeça de Jesus, enfatizando a ligação entre o ato de fiar como símbolo do destino, da vida e do nascimento da criança divina.


O papel importante desempenhado pela tecelagem na vida das mulheres ao longo dos milénios e o processo pelo qual o fio é criado pelo giro do fuso e da roda, seguido do ato de tecer vários padrões em diversas cores, tornaram-no um símbolo mítico efetivo na criação da ordem cósmica e na determinação dos destinos humanos. Tecer é um ato criativo e expansivo, fios, cordas, redes e tecidos foram usados como símbolos da criação do mundo e da vida humana.
As mulheres antigas associavam-no ao nascimento da criança para um futuro desconhecido, um elo evidente entre tecer e parir, o cordão umbilical sendo o elo que ligava a mãe ao filho e que devia ser cortado para que uma nova vida começasse, cujo fio também iria ser cortado pela tesoura das Senhoras do Destino no momento da morte. As esperanças e os medos atávicos das mulheres perante os mistérios da gravidez e do parto fizeram-nas apelar, honrar e reverenciar a Deusa como a Grande Tecelã da vida e da morte.



A herança folclórica da tecelagem foi ignorada e mal compreendida por muito tempo pelos historiadores homens, apesar de ser a mais valiosa arte feminina até ao começo da revolução industrial no século XVIII, que levou ao seu esquecimento no mundo moderno. Nos contos de fadas, o fuso é mais do que uma ferramenta, ele é o elo mágico entre o mundo sobrenatural e o humano; em várias lendas as moças pediam a ajuda das fadas madrinhas untando o fuso com o seu sangue menstrual e depois “pulavam num poço ou entravam numa gruta”. Esses misteriosos atos são lembranças dos antigos rituais xamânicos em que se ofertava algo à Deusa e depois se buscava a conexão com um transe, que dava a sensação de cair no vazio ou penetrar no mundo das sombras.



As tecelãs atraiam criaturas sobrenaturais (fadas, elfos, goblins, anões) que as ajudavam a obter prosperidade; por isso aquelas que sabiam tecer eram mais cobiçadas como parceiras pelos homens do que as bonitas, pois a sua arte iria garantir a sobrevivência nas épocas difíceis. Por ser o fuso um símbolo feminino e atribuído a várias deusas, criou-se a associação entre fiar, seres sobrenaturais e magia. Os teutões atribuíram às mulheres atributos mágicos devido ao uso dos feitiços e encantamentos tecidos com habilidade nas noites de Lua Cheia ou Nova, enquanto os saxões chamavam às suas mulheres “tecelãs da paz”.


Fontes muito antigas descreviam a Deusa Anciã como Tecelã e Senhora do Destino, enquanto as Senhoras Brancas se deslocavam nas noites de Lua Cheia, carregando fusos, predizendo a sorte ou dando mensagens às mulheres reunidas nos círculos de menires ou próximo dos locais de poder da terra. As camponesas europeias deixavam meadas de lã ou linho nestes lugares juntamente com oferendas de pão e manteiga; na manhã seguinte, o pão tinha desaparecido e os fios tinham sido tecidos. As mulheres da tribo nativa dos Sami da Lapónia untavam as suas rodas de fiar com sangue menstrual, pedindo as bênçãos da deusa Rana Neida para a produtividade do seu trabalho.


Vários monumentos megalíticos de Bretanha, Inglaterra, Portugal, Bretanha, Espanha, Irlanda, Malta são consideradas obras das Fadas Gigantes, que carregavam as pedras nas suas cabeças enquanto fiavam e cantavam. Muitos destes lugares têm nomes associados às fadas tecelãs ou ao fuso e roda de fiar. Na Irlanda conta-se que várias colinas e ilhas foram cridas pela anciã Cailleach, que levava pedras no seu avental e as espalhava a seu gosto pela terra. Essa ligação entre seres sobrenaturais, menires e locais de poder telúrico levou à sua “demonização” pela igreja cristã, que as denominou de “pedras do diabo”, onde as bruxas teciam as suas maldições e feitiços malignos.



A aranha é vista como uma intermediária entre o céu e a terra, no seu trabalho infinito de fiar, capturar, desfazer e renovar a sua teia, por isso ela simboliza a alternância das forças que sustentam a estabilidade cósmica. Jung considerou-a um símbolo do Self, a parte da personalidade que inclui e integra o subconsciente e o consciente, o claro e o escuro, a luz e a sombra. Em vários mitos a deusa criadora aparece como aranha: A Mulher Aranha dos índios Hopis e Navajos, as deusas lunares da Indonésia, as guardiãs do tempo e do destino da Índia e a deusa da morte dos Mares do Sul.



Os círculos sagrados femininos – como a Teia de Thea – têm como objetivo principal a formação e sustentação de uma teia feminina de conexão e de reverência à sacralidade feminina, cujos fios estão sendo tecidos, fortalecidos e renovados permanentemente por todas aquelas mulheres que se dispõem a celebrar, honrar e servir à Deusa sob Suas inúmeras faces e manifestações. Esse serviço deve ser feito sem qualquer apego aos resultados e frutos dos seus esforços, assim como também as antigas tecelãs cumpriam apenas a sua tarefa ancestral visando o bem-estar das suas comunidades.


Para servir precisa de abrir o coração com a vontade de contribuir com a beleza, a plenitude e a alegria do trabalho bem feito, em benefício de outras irmãs e da Terra, oferecendo à Deusa a sua gratidão e o seu amor, sem esperar em troca reconhecimento, recompensas ou sucesso, com a certeza de ter cumprido a sua missão espiritual e evolutiva nesta encarnação.

http://www.teiadethea.org/?q=node/23


* Existe aqui um lapso da autora quanto à Vénus de Lespugue. Ela foi encontrada em França, na Haute Garonne, e encontra-se actualmente, segundo a Wikipedia, no Museu do Homem, em Paris.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

“AS MULHERES FALAM DEMAIS”


Fazendo uma retrospectiva histórica e mitológica do papel da mulher ao longo dos tempos, constatamos o seu papel milenar como mediadora entre os planos divino e humano. Desde os primórdios da humanidade, coube às mulheres a responsabilidade de perceber os avisos, os sinais e as manifestações sobrenaturais e transmiti-los à comunidade. Durante os 35 mil anos em que Deus foi mulher, as mulheres – as representantes da Deusa na Terra - foram respeitadas pelo seu poder de conceber e nutrir a vida e pela sua profunda conexão com os planos subtis.
As mulheres eram regidas pela Lua e a ela estavam conectadas por meio dos seus ciclos menstruais.


Considerada uma representação da Deusa, a Lua era honrada pelas mulheres por meio de reuniões, na sua fase menstrual, nas quais se dedicavam à introspecção, ao silêncio, à cura e à conexão com o divino. Esse retiro visava não somente a renovação e o fortalecimento pessoal, mas era também uma oportunidade de trabalhar em benefício da comunidade.
A percepção subtil intrínseca à natureza feminina tornava-se muito mais ampla e aguçada durante a menstruação, permitindo às mulheres atravessarem mais facilmente os véus que separam os mundos. Ao retornarem do seu isolamento, as mulheres traziam mensagens e orientações dos ancestrais, dos seres da natureza e da Deusa, sendo assim reconhecidas e honradas como porta-vozes do além.

Nas culturas matriarcais do período neolítico, a mulher continuava a desempenhar a sua função de intermediária entre o sagrado e o profano, fosse como sacerdotisa, profetisa ou visionária. Ao visitar lugares sagrados em Malta, Sicília, Creta e Grécia, pude comprovar in loco a existência de inúmeras câmaras oraculares, de nichos para sonhos incubatórios e de janelas especiais nas paredes dos inúmeros templos, onde a comunidade ia para ouvir a voz da Deusa manifestada nas suas sacerdotisas.

Localizado na Grécia, em Delphi, o mais famoso oráculo do mundo antigo era dedicado a Python, a grande serpente sagrada, filha partenogénica da Terra que personificava o espírito profético de Gaia. Lá, após rigorosas purificações e preparações, as sacerdotisas oraculares – chamadas pitonisas – entravam em transe e transmitiam as mensagens para tod@s aquelas e aqueles que as procuravam. Mesmo após a usurpação do templo pelos sacerdotes de Apollo, o oráculo continuou sendo atributo das sacerdotisas, pois Python transmitia os seus segredos apenas às mulheres.


Com o advento das sociedades patriarcais, as mulheres perderam os seus direitos, sendo dominadas, subjugadas e silenciadas. No Império Romano, as mulheres ainda desempenhavam funções sacerdotais, mas foram excluídas da vida social, não tendo permissão para estudar ou para falar em público. A educação era reservada apenas às cortesãs, para que pudessem entreter os homens com a sua erudição. O cristianismo, por meio dos seus dogmas, proscrições e proibições, marginalizou e aniquilou definitivamente os valores femininos, excluindo as mulheres do sacerdócio, relegando-as às funções procriadoras e ao serviço do lar, da família e da comunidade.

Por não ter sido criada à imagem e semelhança de Deus (mas da costela do homem), por ter tentado comer da Árvore do Conhecimento e por ter sido castigada com a expulsão do Paraíso, a mulher tornou-se a origem de todos os males infligidos à humanidade, a fonte do pecado, do mal e da luxúria. A consequência foi a sua total desconsideração, passando a ser julgada incapaz de pensar e proibida de falar. A repressão religiosa, familiar e social colocou vendas nos olhos e mordaças na boca das mulheres, que, outrora, representavam a origem da vida e a fonte da sabedoria.

Após os horrores da Inquisição, as mulheres levaram ainda alguns séculos para emergir da escuridão, até que, no início do século passado, conseguiram recuperar o direito de falar, trabalhar e votar. O século XX pode ser considerado a retificação dos dezanove séculos de opressão e silêncio forçado, facilitando a compreensão do movimento feminista como um pêndulo oscilando entre dois extremos.

Ávidas por expressão, as mulheres foram à luta na tentativa de recuperar o tempo perdido. Hoje ninguém mais duvida da sua capacidade, seja na área social, política, económica ou científica, seja na área literária, artística, terapêutica ou mística. Pagando o alto preço da jornada dupla ou tripla de trabalho, a mulher saiu do anonimato e está conquistando um lugar ao sol, competindo de igual para igual com os homens. E é neste ponto que o pêndulo perde o seu equilíbrio: as mulheres, ao assumir características que não são intrínsecas à sua natureza - imitando o comportamento e apropriando-se dos valores ou do linguajar masculino – exageram a sua auto-afirmação e querem ser ouvidas a qualquer custo.


Talvez por isso a mulher fale demais, esquecendo-se que somente no silêncio pode ser ouvida a sua voz interior; que a sua força não vem da agressividade ou da combatividade, mas sim da compreensão, da sensibilidade, da criatividade, da ponderação e da sabedoria. Por mais que o mundo exterior a solicite, pressione ou agrida, a mulher moderna precisa relembrar como se proteger e como se fortalecer, buscando dentro de si o seu verdadeiro eu, ouvindo a sua sabedoria inata e expressando, com convicção e competência, o seu potencial de maga: saber, querer, ousar... e calar.

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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A VERDADEIRA FACE DE HERA


Mirella Faur

Hera e Juno, as padroeiras dos relacionamentos

“O meu canto louva Hera, filha de Rhea, Rainha imortal, irmã e esposa de Zeus. Sentada no seu trono
dourado Ela recebe as homenagens dos deuses do Olimpo, que A glorificam e honram tanto quanto ao
Zeus, pois a ambos pertencem o cetro e o céu.”

Hino a Hera, de Homero (adaptado)

Hera, a Rainha Celeste, uma das mais antigas e poderosas deusas do mundo mediterrâneo, nos primórdios reinava sozinha e sem consorte, verdadeira herdeira da tradição da Grande Mãe. No entanto, poetas e historiadores no período helenístico e clássico Lhe atribuíram um papel de menor importância , descrevendo-A como a esposa ciumenta e vingativa de Zeus, uma deusa insegura, cruel e injusta, padroeira do casamento e da fidelidade, que ela respeitava e cumpria apesar do alto preço a pagar. Zeus era um deus todo-poderoso, com comportamento tipicamente patriarcal , adúltero e dominador, que violentava gabava das suas conquistas e dos filhos ilegítimos. Hera aparece nos mitos clássicos e poemas homéricos como a consorte dependente e fiel, que u s a s e u s p o d e r e s sobrenaturais e sua astúcia para se vingar das traições conjug a i s , matando a s amantes e os filhos bastardos sem, no entanto, confrontar ou abandonar seu marido infiel. Apesar desta descrição negativa, o culto de Hera floresceu em vários lugares, seus templos imponentes e faustosos sendo encontrados da Babilónia até à Síria, Grécia, Creta e Roma, os mais famosos sendo os de Hierápolis, Sparta, Olímpia, Micenas, Argos, Cós, Samos, Corinto, Attica, Beotia, Epidaurus, Euboea, Platea e Creta.

Como se explicam os séculos de devoção a uma deusa“vulnerável” e misógina, com os inúmeros festivais e celebrações - chamados Heraea - em Hierápolis (com procissões, oferendas nos altares, banquetes e competições desportivas) ou Olímpia (com jogos e
competições de corridas entre mulheres de várias faixas etárias) e as procissões anuais das sacerdotisas levando as estátuas de Hera para serem lavadas no mar?

Para compreendermos estas incongruências históricas devemos perscrutar os mitos arcaicos e a origem do mito clássico. Na era de Touro Hera era honrada como a deusa celeste com “olhos de vaca” (símbolo de beleza e riqueza), que presidia sobre todas as passagens da existência feminina.

O nome grego Hera significava A Senhora e A Escolhida, atribuído à uma deusa minóica do céu, da tempestade e do vento, sua essência sendo a soberania da terra e seus títulos definindo a regência das fases da vida da mulher e da natureza. Assim Parthenia era a donzela, a lua nova, a primavera, Teleia – a mulher adulta, a lua cheia, o verão e Khêra, a viúva ou mulher solitária, a lua minguante e o inverno . A l é m d e s t a apresentação tríplice, Hera ainda tinha como atributos: Ataurote - a virgem, Nymphomene - a noiva, Zygia- a casada, Gamelia - padroeira do casamento, Antheia - deusa das flores, Acrea – a senhora das alturas, Hippia – padroeira das corridas de cavalos. Suas imagens mais antigas a representam nos altares dos templos como um pilar de madeira sagrada envolto em panos ou uma mulher majestosa e bonita, os cabelos presos por um diadema, sentada sobre um trono e segurando um cetro com um cuco no topo (seu animal sagrado além do falcão, do pavão e da vaca) e uma romã (indicando a sua regência também sobre a morte, além davida). Hera aparecia como uma deusa lunar e celeste, que controlava o céu, a terra, o ar e a água, protegia as mulheres, seus ritos de passagem e relacionamentos, regente da arte, da ciência, do tempo e das profecias. Seu culto antecede em muito o de Zeus, até mesmo em Olímpia, onde seu templo foi depois dedicado a Zeus.

Quando as tribos invasoras vindo do Norte europeu invadiram a Grécia, o culto de Hera tornou-se um empecilho e assim ela foi transformada na consorte de Zeus, deus celeste e senhor dos raios. O casamento mítico de Hera e Zeus representa a derrota do culto matrifocal na Grécia e Creta prémicênica pelos cultos patriarcais e a amalgamação forçada das duas tradições e seus panteões. Os eternos conflitos do casal divino simbolizam as batalhas entre os seguidores de Zeus e os adoradores de Hera. A permanente tensão conjugal e a esterilidade matrimonial descreviam o contraste entre a antiga descendência matrilinear e as novas imposições da hierarquia patrilinear. Zeus negou a Hera realização sexual e emocional e nascimento de um filho legítimo, com medo de que ele poderia usurpar a sua soberania (assim como ele fez com o seu pai Chronos). Hera – por sua vez – recusou-se a gerar um herdeiro que perpetuasse o direito e a hegemonia patriarcal. Os inúmeros estupros de deusas e mortais atribuídos a Zeus representavam a violação dos direitos matrifocais e o ostracismo imposto às sacerdotisas de Hera pelos adeptos de Zeus.

A perseguição e punição das amantes de Zeus por Hera, era uma metáfora que simbolizava o compromisso sagrado que impedisse a submissão das sacerdotisas à nova ordem patriarcal. A matança dos filhos destes estupros era uma medida extrema para evitar a existência de descendentes leais à nova ordem patriarcal. A severidade do comportamento de Hera com seus inimigos reflete o desespero das seguidoras do seu culto, que lutaram até a morte para preservar a linhagem matriarcal e os direitos sagrados das mulheres. Como consequência da instauração da nova ordem patriarcal, as mulheres foram proibidas de exercer práticas curativas, terem acesso aos estudos, cultos e calendários lunares, sendo punidas pelas transgressões das regras. Até nos dias de hoje, a violência contra as mulheres é atribuída ao comportamento errado, omisso, devasso, rebelde, fútil ou carente das mulheres.

No panteão Olímpico Hera aparece como filha de Chronos e Rhea, irmã de Zeus que se apaixonou por ela, mas Rhea não lhe deu seu consentimento por conhecer a sexualidade voraz e desprovida de ética do seu filho. Para conseguir vencer a resistência de Hera refratária aos seus avanços, Zeus lançou mão de um estratagema, se transformando em cuco, que parecendo enregelado de frio foi acolhido nos braços compassivos de Hera. Depois que Zeus reassumiu suas feições ele a violentou, forçando-a aceitar o casamento, festejado por todas as divindades. O mito conta que a celebração do casamento durou 300 anos e em seguida o casal divino foi morar no monte Olimpo, onde Hera passou a dividir o trono com Zeus e ser a única deusa casada. No início a relação foi amorosa e pacifica, mas depois começaram as brigas perpétuas, com traições de Zeus, fidelidade e vinganças de Hera, humilhações e disputas recíprocas. Apesar desta união tumultuada, Hera passou a ser reverenciada como a esposa modelo, que permanecia fiel e monógama, apesar da infidelidade do marido e das investidas de outros deuses.

Enquanto Zeus gerou vários filhos fora do casamento, da sua união com Hera nasceram apenas as deusas Hebe e Eileithya que, segundo algumas fontes, não eram filhas, mas personificações da própria Hera (sua face jovem e a protetora dos partos). Para se vingar de Zeus pelo nascimento de Athena, Hera gerou de forma partenogenética (sem parceiro) os deuses Ares (odiado por Zeus), Hefaisto (rejeitado pela própria Hera por ter nascido aleijado) e uma criatura monstruosa, Tifon, a serpente de cem cabeças, inimiga mortal de Zeus.

A relação conjugal de Zeus e Hera tornou-se o protótipo do casamento humano, com brigas, separações e repetidas voltas, Hera se retirando na solidão durante algum tempo, mas voltando após a renovação da sua “virgindade” ao se banhar na fonte sagrada de Kanathos. Em troca da sua fidelidade Hera esperava a mesma conduta do seu cônjuge e sua decepção se manifestou na amargura, ciúme obsessivo, raiva e vingança, bem como na projeção da sua libido reprimida e manifestada pela licenciosidade de Zeus. Sua atuação feminina era mais como esposa do que como mãe, podendo ser definida como uma “matriarca contida e reprimida em um mundo patriarcal”, sem ter tido o direito e as condições mútuas para que fosse celebrado o verdadeiro hieros gamos, o casamento sagrado e consagrado.

Os mitos clássicos enaltecem apenas a virtude da fidelidade de Hera, sem mencionar seus antigos atributos de proteção, força e nutrição. A ênfase está no ciúme mórbido, na maldade cruel das vinganças, na imagem maldosa de Hera, fato atribuído à vida conjugal de Homero, perseguido e atormentado por uma esposa vil e ciumenta.A equivalente romana de Hera, a deusa Juno tinha um mito semelhante, mas uma maior autoridade e relevância, por terem sido agregados ao seu culto os atributos lunares e de fertilidade da terra de uma antiga deusa mãe. Para os gregos, a união perene de Hera e Zeus simbolizava a importância da manutenção do casamento.

Para os romanos o casamento, lar e família tinham uma importância conjunta maior, louvando-se também a fertilidade e a maternidade como atributos divinos. Juno Natalis era a guardiã dos partos e da maternidade, Juno Lucina conduzia a alma para a luz e Juno Pronuba protegia as mulheres casadas, o mês de junho sendo a ela como favorável aos casamentos. Acreditava-se que cada mulher possuía uma individualidade feminina sempre renovada e jovem nomeada juno,
equivalente ao genius dos homens. O asteróide Juno simboliza o princípio de relacionamento e da parceria equilibrada e harmoniosa, sendo associado com os signos de Libra e de Escorpião, definindo a aspiração para a união perfeita e os sofrimentos e complexos psicológicos oriundos da não realização. Ele descreve os jogos de poder, as manipulações, repressões, projeções, decepções, medos e conflitos encontrados nos relacionamentos desiguais e desajustados e indica as soluções para a sua transmutação e cura..

Para as mulheres que buscam resgatar os verdadeiros valores e conceitos da tradição da Deusa é imprescindível descartar a visão patriarcal de Hera como uma deusa vulnerável e dependente e A honrar como protetora e defensora, que cuida dos seus direitos, favorecendo e atraindo relacionamentos justos, leais e de honesta parceria. Precisamos transformar o arquétipo distorcido da Hera como esposa infeliz e dependente enraizado no nosso inconsciente, na cultura, literatura e ordem social vigente. Resgatar a Hera arcaica que vive em nós - simultaneamente com a sua imagem negativa mais recente – significa ver Hera como um incentivo para que amemos mais a nós mesmas, buscando nosso aprimoramento individual, cuidando dos nossos corpos, mentes, corações e limites.

Devemos ter a coragem para exigir um relacionamento equitativo, harmonioso, honesto e equilibrado , vivendo com integridade, lealdade e respeito, sem nos deixar limitar ou prender por medos , co-dependências e concessões. Pede-se a Hera a benção para um casamento sagrado, uma união alquímica que una as almas e não somente corpos, corações ou interesses, em busca da fusão com o divino amor, que tudo permeia e que existe em todos e no todo.

http://www.teiadethea.org/files/jornais/jornaljulho09.pdf