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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Como seria viver numa sociedade matriarcal pacífica?


... Podemos imaginar?...
Por Carol P. Christ

Existem muitas razões para as mulheres, os escravos e os pobres se revoltarem contra autoridades injustas em sociedades de tipo patriarcal. Mas entretanto não devemos assumir que haja razões para a revolta contra a dominação quando ela não existe, nem para nos revoltarmos contra autoridades injustas em sociedades onde elas não existem.

Em resposta à minha série recente de textos sobre o patriarcado enquanto sistema de dominação criado pela intersecção do controlo da sexualidade feminina, com o sistema da propriedade privada e a guerra (Parte 1, Parte 2, Parte 3), várias pessoas me perguntaram se existe alguma forma de injustiça inerente a uma sociedade de tipo matriarcal que possa ter dado origem à criação do patriarcado pelos homens como expressão da sua revolta.

A ideia por detrás desta questão é que se as mulheres são dominadas pelos homens nas sociedades patriarcais, então os homens também foram dominados pelas mulheres nas sociedades pré-patriarcais. Implícita nesta questão está a ideia de que deve ter havido uma “boa razão” para o desenvolvimento do patriarcado. A ideia de que na origem não houve qualquer “boa razão” para a existência do patriarcado – caso “boa” signifique justa – é simplesmente demasiado dolorosa para poder ser considerada por muit@s de nós.

O elo perdido nesta questão é a nossa incapacidade de imaginarmos sociedades sem dominação.

Segundo Heidi Goettner-Abendroth, “sociedades matriarcais” são “sociedades pacíficas” nas quais nenhum dos géneros domina o outro.

As sociedades matriarcais têm 4 características em comum:

1  1. Praticam agricultura em pequena escala e conseguem a igualdade através da dádiva transformada em hábito social.

2  2. São igualitárias, matrilocais e matrilineares. Mulheres e homens são definid@s pela sua conexão com o clã materno que possui a terra em comum.

3  3. Têm sistemas bem desenvolvidos de obtenção de consenso nas tomadas de decisão, que garantem que todas as opiniões sejam tidas em consideração.

     4. Respeitam princípios como o amor, o cuidado com as outras pessoas, a generosidade, os quais associam à ideia de maternidade e que ambos os géneros são ensinados a manifestar. Veem frequentemente a Terra como a Grande Mãe.

Como seria viver numa sociedade pacífica “matriarcal”?

Enquanto crianças, não teríamos de lutar com as nossas irmãs e os nossos irmãos pela atenção da nossa mãe ou do nosso pai. Tanto as raparigas como os rapazes receberiam o mesmo amor e atenção da parte das mães, avós e ti@s. tanto as raparigas como os rapazes teriam a certeza de sempre terem lugar no clã materno. Tanto enquanto rapaz como enquanto rapariga nunca teríamos de nos “separar de” nem de rejeitar a nossa mãe para “fazermos a experiência de nós enquanto indivíduos” nem para “crescermos”. Poderíamos crescer sem necessidade de romper os laços com as pessoas que primeiro nos amaram e cuidaram de nós. 

Seríamos criad@s numa família alargada com irmãs, irmãos e prim@s, tod@s considerad@s noss@s irmãs e irmãos. Nunca nos sentiríamos sós. Nunca nos ensinariam a competir com as nossas irmãs e irmãos. Nunca nos atacaríamos entre nós porque comportamentos violentos não seriam apropriados dentro da família.
Quando chegássemos à idade de ter sexo, poderíamos ter todo o sexo que nos apetecesse. Ser-nos-ia ensinado que sexo é algo alegre e prazenteiro. Quando os casais já não sentissem atracção mútua, facilmente se separariam e encontrariam outras pessoas.

Não haveria razão para as famílias se preocuparem com o interesse das crianças pelo sexo. Como todas as crianças têm uma mãe e todas as mães têm casa no clã materno, não haveria crianças “ilegítimas”, “bastardas”, “mulheres perdidas”, “vadias” ou prostitutas. Como o sexo seria livre, a prostituição não faria qualquer sentido.
As crianças nascidas dessas relações teriam sempre um lar no clã da sua família materna. As mães seriam ajudadas na educação das crianças pelas suas irmãs e irmãos, pelas mães e avós, tias e tios. Uma jovem grávida ou com uma criança pequena nunca seria rejeitada nem “entregue à sua sorte”.

Com tanta ajuda, as mulheres poderiam trabalhar “fora de casa” nos campos comunitários juntamente com as suas e os seus parentes. Uma mãe nunca ficaria “confinada” ou “fechada” com as crianças. “O problema d@s sem nome” descrito por Betty Friedan não se poria. Mães que não se sentiriam sozinhas, nem oprimidas, não sentiriam qualquer necessidade de “fazerem as suas filhas e filhos pagarem” pela sua infelicidade.

Um jovem não teria a obrigação de “prover” ao sustento das crianças, uma vez que isso seria da responsabilidade do clã materno. Um jovem contribuiria para o seu próprio clã e ajudaria as suas irmãs e primas a cuidar das suas crianças. Estas crianças vê-lo-iam como o seu “modelo de masculinidade”. Os homens trabalhariam com as mães e as irmãs nos campos, em projetos de construção ou comércio com outros clãs.

Quer fossemos rapazes ou raparigas, homens ou mulheres, teríamos sempre a certeza de sermos amad@s, pois seríamos ensinad@s a amar e a cuidar das outras pessoas. Não seriamos ensinad@s a competir, enganar ou cumular para nós propri@s. Caso tivéssemos uma habilidade especial, seríamos encorajad@s a desenvolvê-la, mas nunca a pensarmos que isso nos tornaria superiores a qualquer outra pessoa.
Tanto enquanto rapazes como enquanto raparigas, seríamos ensinad@s a respeitar as pessoas de idade, em particular as avós e os avôs. Isto não significa que estas pessoas tomariam o poder sobre nós, porque os clãs teriam sistemas democráticos bem desenvolvidos de forma a obter consensos que permitiriam a qualquer voz ser ouvida antes da tomada de decisões importantes.

Seguramente que haveria conflitos, ciúmes e desentendimentos em sociedades pacíficas, mas quando os conflitos ocorressem, não seriam resolvidos pela força porque a todas as pessoas teria sido ensinado que a partilha e a generosidade de espírito são as melhores formas de resolver conflitos.

Sociedades pacíficas estão tão longe daquela em que vivemos e são estranhamente tão atraentes, que muitas pessoas julgam que elas nunca existiram. No entanto, sociedades pacíficas existiram em todos os continentes do planeta e existem ainda hoje em dia em vários níveis entre os povos Iroquois, os Zapotecas, os Kuna, os Shipibo, os Samoans, os Asante, os Khoisan, os Tuaregs, os Berberes, os Kasai, os Minangkabau, os Mosuo e outros.

Não sei o que acham, mas quanto a mim, eu adoraria viver numa sociedade assim. Se procuramos “razões para” a existência do patriarcado, não creio que a infelicidade dos homens em tais sistemas fosse uma delas. Tanto os rapazes como os homens são amados, honrados e altamente considerados. Eles não têm de lutar, de ir à guerra, para se afirmarem e têm todo o sexo que querem, portanto assumo que são extremamente felizes.

Adoro imaginar todas as pessoas da terra a viverem em sociedades pacíficas onde os valores do amor, da partilha e da generosidade são considerados os mais importantes. A “idade de ouro” não tem de ser uma ideia do passado. Sonho com a possibilidade dela ser o nosso futuro.

Carol Christ
Traduzido por Luiza Frazão

http://feminismandreligion.com/2013/03/25/what-might-it-be-like-to-live-in-a-society-of-peace-can-you-imagine-by-carol-p-christ/#comment-15510

 Imagem: Ian Macharia, Kargi, Quénia

domingo, 12 de julho de 2020

O Patriarcado é um sistema de dominação masculina criado pela intercessão da necessidade de controlo das mulheres, da propriedade privada e da guerra – primeira parte, Carol P. Christ


O patriarcado é frequentemente definido como um sistema de dominação masculina. Esta definição não esclarece, apenas obscurece, o complexo conjunto de factores que contribuem para o funcionamento do sistema patriarcal. Precisamos duma definição mais complexa se queremos compreender e desafiar o sistema patriarcal em todos os seus aspectos.

O patriarcado é o sistema de dominação masculina ancorado num etos de Guerra que legitima a violência, santificada pelos símbolos religiosos, no qual os homens dominam as mulheres através do controlo da sexualidade feminina, com a intenção de legarem a propriedade aos herdeiros masculinos, e no qual os homens, heróis de guerra, são instruídos para matar homens, autorizados a violar mulheres, a apoderarem-se da terra e das suas riquezas, a explorarem recursos e a apropriarem-se ou dominarem por qualquer meio os povos conquistados.

Marx e Engels disseram que a família patriarcal, a propriedade privada e o estado surgiram ao mesmo tempo. Embora a sua compreensão das sociedades que precederam o patriarcado tenha falhas, a intuição que tiveram de que o patriarcado está ligado à propriedade privada e à dominação em nome do Estado está correta. Desde há muito que é óbvio para mim que o patriarcado não pode ser separado da Guerra e dos reis que tomam o poder na sequência da guerra. Fiquei surpreendida há anos com a alegação de Merlin Stone de que na sociedade matrilinear não existem crianças ilegítimas porque todas as crianças têm mãe. Mais tarde, tentei perceber por que razão a Igreja de Roma e outras igrejas e o Partido Republicano na América se opõem tão fortemente ao direito das mulheres controlarem o seu próprio corpo e tentam a todo o custo impedir o seu direito ao aborto.

Na definição do patriarcado que dou acima, junto todas estas questões numa síntese que descreve além das suas origens a forma como está relacionado com o controlo da sexualidade feminina, com a questão da propriedade privada, da guerra, da conquista, da violação usada como arma de guerra e do recurso à escravidão.

O sistema que defino como patriarcal é um sistema de dominação reforçado pela violência ou pela ameaça da violência. É um sistema desenvolvido e controlado por homens poderosos, no qual as mulheres, crianças, outros homens e a própria natureza são dominadas. Devo entretanto acrescentar que não acredito que esteja na “natureza” do homem dominar pela violência. O sistema patriarcal tem uma origem histórica, o que significa que não é eterno nem inevitável. Houve mulheres e homens que ofereceram resistência ao patriarcado ao longo da sua história. Podemos juntar-nos também hoje em dia para lhe oferecermos resistência.

A minha definição de patriarcado foi influenciada por novos dados da pesquisa feita por Heidi  Goettner-Abendroth em Sociedades de Paz, que faz avançar o nosso entendimento das sociedades pré-patriarcais que ela designa por “matriarcais” “sociedades de paz”.

Goettner-Abendroth identifica a estrutura profunda dos matriarcados usando quarto marcadores: 

1) económico: estas sociedades usualmente praticam agricultura em pequena escala e conseguem relativa igualdade económica através da dádiva enquanto hábito social; 

2) social: estas sociedades são igualitárias, matrilineares, matrilocais, sendo a terra propriedade do clã materno e com ambos os géneros, mulheres e homens, permanecendo no respetivo clã materno; 

3) político: estas sociedades são igualitárias e possuem sistemas democráticos de consenso bem desenvolvidos; 

4) cultura, espiritualidade: estas sociedades tendem a considerar a Terra como a Grande Mãe Doadora. Mais importante e permeando tudo o resto, estas sociedades honram princípios de cuidado, amor e generosidade que associam à ideia de  maternidade, acreditando que tais princípios devem ser praticados tanto pelas mulheres como pelos homens.

A cultura Mosuo dos Himalaias, objeto de estudo recente, mesmo encontrando-se em vias de desaparecimento, é um exemplo clássico. Fiquei a saber da sua existência ao ouvir a discussão de Michael Palin sobre os hábitos sexuais das mulheres de Mosuo no seu documentário sobre os Himalaias. Estas mulheres explicaram a Palin que na sua cultura as mulheres e os homens se definem a si próprias e a si próprios através da sua conexão com a clã materno. Quando uma rapariga atinge a idade da maturidade sexual, a mãe prepara-lhe um quarto onde ela poderá convidar um rapaz para jantar. Caso este lhe agrade, ele é convidado a passar a noite com ela. As crianças nascidas destas relações tornam-se parte do clã materno. O papel do pai é assumido pelos tios e irmãos da mãe, sendo o papel desta partilhado com as irmãs. Quando algum membro dum casal se cansa da relação, esta acaba e cada pessoa encontra um novo parceiro ou uma nova parceira. Obviamente que o Michael Palin teve alguma dificuldade para acreditar no que as mulheres lhe contavam.

 Esta história ilustra uma importante diferença entre os costumes matrilineares e matrifocais dos Mosuo e os das culturas patriarcais com os quais estamos familiarizadas. Entre as mulheres desta etnia é de norma a livre escolha dos parceiros sexuais. Não existem crianças ilegítimas nesta cultura porque todas têm uma mãe. Não existem mulheres “perdidas” (bom reflectir sobre o sentido deste termo) nem prostitutas porque as mulheres são livres para terem relações com quem decidirem. A dicotomia entre a santa e a pecadora tão bem conhecida nas culturas patriarcais pura e simplesmente não existe aqui.

Com o contraste fornecido por Mosuo, é possível entender a um nível mais profundo que o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sexualidade feminina. O controlo da sexualidade feminina através da instituição do casamento não é acidental no patriarcado, sendo pelo contrário algo central. Os costumes que rodeiam o casamento patriarcal, incluindo a exigência de que a noiva esteja intocada ou “virgem”, a protecção da virgindade das raparigas pelo pai e pelos irmãos, o isolamento das raparigas e das mulheres, a exigência de estrita fidelidade da parte das esposas em relação aos maridos, e a imposição destes hábitos com o recurso à vergonha pública, à violência, ou ameaça de violência, tem um propósito: assegurar que os descendentes do homem sejam legítimos, sejam dele. Enquanto saber quem é a mãe biológica é fácil, ter a certeza de quem é  o verdadeiro pai é bem mais difícil. Se uma mulher tem mais do que um amante, então, sem teste de DNA que apenas foi descoberto recentemente, é quase impossível ter a certeza sobre quem é o pai. Uma primeira solução para esse dilema consiste em definir a paternidade de outra forma e uma segunda solução é o absoluto controlo sobre a sexualidade das mulheres.

Entretanto podemos perguntar-nos por que razão é tão crucial para um homem saber quem são os seus filhos biológicos que um complicado sistema de isolamento, vergonha e controlo da sexualidade feminina teve de ser posto em prática? A resposta encontra-se na próximo segmento da minha definição: o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sua sexualidade com a intenção de transmitir a propriedade aos herdeiros masculinos. Marx e Engels tinham razão ao afirmarem haver uma relação entre patriarcado e propriedade privada.  Não haveria necessidade do homem ter tanta certeza sobre a paternidade das suas crianças se a instituição da propriedade privada não existisse e se o valor dos indivíduos não fosse definido em função da propriedade que detêm e transmitem aos seus herdeiros, habitualmente do género masculino.

Apercebi-me recentemente de que a palavra “herança” ou “propriedade herdada” em grego moderno, “periousia”, derivada do grego antigo, ilustra a conexão entre propriedade e identidade de forma mais óbvia do que a palavra “herança”. “Ousia” no grego antigo refere-se ao ser ou à essência do indivíduo. “Peri-ousia” é aquilo que rodeia o ser essencial e portanto define “quem” se “é”. O seu sentido óbvio é que “quem se é” é definido pela “propriedade” que se herda e se transmite. Sem a clara identificação da “essência” dum homem com a sua propriedade, não seria necessária uma preocupação tão grande com a certeza de que o herdeiro da propriedade do pai é de facto o seu filho biológico.  

Fevereiro 18, 2013

Imagens:
1. Yves Yves, Unsplash 
2. Estandartes das Deusas do mundo, de Lydia Ruyle, cenário da Conferência da Deusa Portugal 2019, Sintra
3.Cariátides, museu de arqueologia da Acrópole, Atenas