Conteúdos

domingo, 12 de julho de 2020

O Patriarcado é um sistema de dominação masculina criado pela intercessão da necessidade de controlo das mulheres, da propriedade privada e da guerra – primeira parte, Carol P. Christ


O patriarcado é frequentemente definido como um sistema de dominação masculina. Esta definição não esclarece, apenas obscurece, o complexo conjunto de factores que contribuem para o funcionamento do sistema patriarcal. Precisamos duma definição mais complexa se queremos compreender e desafiar o sistema patriarcal em todos os seus aspectos.

O patriarcado é o sistema de dominação masculina ancorado num etos de Guerra que legitima a violência, santificada pelos símbolos religiosos, no qual os homens dominam as mulheres através do controlo da sexualidade feminina, com a intenção de legarem a propriedade aos herdeiros masculinos, e no qual os homens, heróis de guerra, são instruídos para matar homens, autorizados a violar mulheres, a apoderarem-se da terra e das suas riquezas, a explorarem recursos e a apropriarem-se ou dominarem por qualquer meio os povos conquistados.

Marx e Engels disseram que a família patriarcal, a propriedade privada e o estado surgiram ao mesmo tempo. Embora a sua compreensão das sociedades que precederam o patriarcado tenha falhas, a intuição que tiveram de que o patriarcado está ligado à propriedade privada e à dominação em nome do Estado está correta. Desde há muito que é óbvio para mim que o patriarcado não pode ser separado da Guerra e dos reis que tomam o poder na sequência da guerra. Fiquei surpreendida há anos com a alegação de Merlin Stone de que na sociedade matrilinear não existem crianças ilegítimas porque todas as crianças têm mãe. Mais tarde, tentei perceber por que razão a Igreja de Roma e outras igrejas e o Partido Republicano na América se opõem tão fortemente ao direito das mulheres controlarem o seu próprio corpo e tentam a todo o custo impedir o seu direito ao aborto.

Na definição do patriarcado que dou acima, junto todas estas questões numa síntese que descreve além das suas origens a forma como está relacionado com o controlo da sexualidade feminina, com a questão da propriedade privada, da guerra, da conquista, da violação usada como arma de guerra e do recurso à escravidão.

O sistema que defino como patriarcal é um sistema de dominação reforçado pela violência ou pela ameaça da violência. É um sistema desenvolvido e controlado por homens poderosos, no qual as mulheres, crianças, outros homens e a própria natureza são dominadas. Devo entretanto acrescentar que não acredito que esteja na “natureza” do homem dominar pela violência. O sistema patriarcal tem uma origem histórica, o que significa que não é eterno nem inevitável. Houve mulheres e homens que ofereceram resistência ao patriarcado ao longo da sua história. Podemos juntar-nos também hoje em dia para lhe oferecermos resistência.

A minha definição de patriarcado foi influenciada por novos dados da pesquisa feita por Heidi  Goettner-Abendroth em Sociedades de Paz, que faz avançar o nosso entendimento das sociedades pré-patriarcais que ela designa por “matriarcais” “sociedades de paz”.

Goettner-Abendroth identifica a estrutura profunda dos matriarcados usando quarto marcadores: 

1) económico: estas sociedades usualmente praticam agricultura em pequena escala e conseguem relativa igualdade económica através da dádiva enquanto hábito social; 

2) social: estas sociedades são igualitárias, matrilineares, matrilocais, sendo a terra propriedade do clã materno e com ambos os géneros, mulheres e homens, permanecendo no respetivo clã materno; 

3) político: estas sociedades são igualitárias e possuem sistemas democráticos de consenso bem desenvolvidos; 

4) cultura, espiritualidade: estas sociedades tendem a considerar a Terra como a Grande Mãe Doadora. Mais importante e permeando tudo o resto, estas sociedades honram princípios de cuidado, amor e generosidade que associam à ideia de  maternidade, acreditando que tais princípios devem ser praticados tanto pelas mulheres como pelos homens.

A cultura Mosuo dos Himalaias, objeto de estudo recente, mesmo encontrando-se em vias de desaparecimento, é um exemplo clássico. Fiquei a saber da sua existência ao ouvir a discussão de Michael Palin sobre os hábitos sexuais das mulheres de Mosuo no seu documentário sobre os Himalaias. Estas mulheres explicaram a Palin que na sua cultura as mulheres e os homens se definem a si próprias e a si próprios através da sua conexão com a clã materno. Quando uma rapariga atinge a idade da maturidade sexual, a mãe prepara-lhe um quarto onde ela poderá convidar um rapaz para jantar. Caso este lhe agrade, ele é convidado a passar a noite com ela. As crianças nascidas destas relações tornam-se parte do clã materno. O papel do pai é assumido pelos tios e irmãos da mãe, sendo o papel desta partilhado com as irmãs. Quando algum membro dum casal se cansa da relação, esta acaba e cada pessoa encontra um novo parceiro ou uma nova parceira. Obviamente que o Michael Palin teve alguma dificuldade para acreditar no que as mulheres lhe contavam.

 Esta história ilustra uma importante diferença entre os costumes matrilineares e matrifocais dos Mosuo e os das culturas patriarcais com os quais estamos familiarizadas. Entre as mulheres desta etnia é de norma a livre escolha dos parceiros sexuais. Não existem crianças ilegítimas nesta cultura porque todas têm uma mãe. Não existem mulheres “perdidas” (bom reflectir sobre o sentido deste termo) nem prostitutas porque as mulheres são livres para terem relações com quem decidirem. A dicotomia entre a santa e a pecadora tão bem conhecida nas culturas patriarcais pura e simplesmente não existe aqui.

Com o contraste fornecido por Mosuo, é possível entender a um nível mais profundo que o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sexualidade feminina. O controlo da sexualidade feminina através da instituição do casamento não é acidental no patriarcado, sendo pelo contrário algo central. Os costumes que rodeiam o casamento patriarcal, incluindo a exigência de que a noiva esteja intocada ou “virgem”, a protecção da virgindade das raparigas pelo pai e pelos irmãos, o isolamento das raparigas e das mulheres, a exigência de estrita fidelidade da parte das esposas em relação aos maridos, e a imposição destes hábitos com o recurso à vergonha pública, à violência, ou ameaça de violência, tem um propósito: assegurar que os descendentes do homem sejam legítimos, sejam dele. Enquanto saber quem é a mãe biológica é fácil, ter a certeza de quem é  o verdadeiro pai é bem mais difícil. Se uma mulher tem mais do que um amante, então, sem teste de DNA que apenas foi descoberto recentemente, é quase impossível ter a certeza sobre quem é o pai. Uma primeira solução para esse dilema consiste em definir a paternidade de outra forma e uma segunda solução é o absoluto controlo sobre a sexualidade das mulheres.

Entretanto podemos perguntar-nos por que razão é tão crucial para um homem saber quem são os seus filhos biológicos que um complicado sistema de isolamento, vergonha e controlo da sexualidade feminina teve de ser posto em prática? A resposta encontra-se na próximo segmento da minha definição: o patriarcado é um sistema de dominação masculina no qual o homem domina a mulher através do controlo da sua sexualidade com a intenção de transmitir a propriedade aos herdeiros masculinos. Marx e Engels tinham razão ao afirmarem haver uma relação entre patriarcado e propriedade privada.  Não haveria necessidade do homem ter tanta certeza sobre a paternidade das suas crianças se a instituição da propriedade privada não existisse e se o valor dos indivíduos não fosse definido em função da propriedade que detêm e transmitem aos seus herdeiros, habitualmente do género masculino.

Apercebi-me recentemente de que a palavra “herança” ou “propriedade herdada” em grego moderno, “periousia”, derivada do grego antigo, ilustra a conexão entre propriedade e identidade de forma mais óbvia do que a palavra “herança”. “Ousia” no grego antigo refere-se ao ser ou à essência do indivíduo. “Peri-ousia” é aquilo que rodeia o ser essencial e portanto define “quem” se “é”. O seu sentido óbvio é que “quem se é” é definido pela “propriedade” que se herda e se transmite. Sem a clara identificação da “essência” dum homem com a sua propriedade, não seria necessária uma preocupação tão grande com a certeza de que o herdeiro da propriedade do pai é de facto o seu filho biológico.  

Fevereiro 18, 2013

Imagens:
1. Yves Yves, Unsplash 
2. Estandartes das Deusas do mundo, de Lydia Ruyle, cenário da Conferência da Deusa Portugal 2019, Sintra
3.Cariátides, museu de arqueologia da Acrópole, Atenas

Sem comentários:

Enviar um comentário