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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

TEMPO DE HONRAR A DEUSA ANCIÃ



A DEUSA NEGRA - A SOMBRA FEMININA
In MYSTERIES OF THE DARK MOON – The Healing Power of the Dark Goddess, Demetra George, HarperSanFrancisco, 1992
Traduzido por Luiza Frazão

“Não basta dizermos que é preciso uma nova relação com o feminino. Aquilo de que precisamos mesmo é de nos relacionar com o lado negro do feminino.” Fred Gustafson, The Black Madonna (Boston, Sigo Press, 1990)

Nas sociedades tradicionais, que reverenciavam a lua como Deusa, a 3.ª fase negra era personificada pela Deusa Negra, sábia e compassiva, que governava os mistérios da morte, transformação e renascimento. Com o tempo, sucessivas culturas foram gradualmente esquecendo o antigo culto da lua, e o antigo conhecimento da ciclicidade da realidade, reflectida nas suas fases perdeu-se.
Na nossa sociedade actual a maior parte de nós desconhece o potencial de cura e de renovação que existe como qualidade intrínseca do processo cíclico da fase escura da lua. Em vez disso, associamos a ideia de escuridão à da morte, do mal, da destruição, isolamento e perda. Numa sociedade governada pela clara consciência solar, fomos ensinad@s a temer, rejeitar, desvalorizar e desempoderar tudo quanto se relaciona com os conceitos de escuridão – pessoas de cor, mulheres, sexualidade, menstruação, natureza, o oculto, o paganismo, a noite, o inconsciente, o irracional e a própria morte. Do ponto de vista mítico, associamos todos estes medos da escuridão à imagem do feminino demoníaco conhecido como a Deusa Negra, intimamente relacionada com a lua negra.

Ao longo da história, o poder original da Deusa Negra enquanto renovadora foi esquecido e ela tornou-se assustadora e destruidora. Em muitas mitologias do mundo, ela foi descrita como a Tentadora, a Mãe Terrível, a Anciã que traz a morte. As suas biografias mais tardias descrevem-na como negra, malvada, venenosa, demoníaca, terrível, malevolente, fogosa. À medida que a cultura patriarcal se tornou dominante, ela foi-se transformando num símbolo da devoradora sexualidade feminina que faz com que o homem transgrida as suas convicções morais e religiosas, consumindo-lhe a essência vital no seu abraço mortífero.

Na imaginação mítica das culturas dominadas pelo homem, a sua natureza original foi distorcida e ela tomou proporções horríficas. Enquanto Kali, ela surge nos crematórios, adornada com uma grinalda de caveiras, empunhando a cabeça cortada do seu companheiro, Shiva, escorrendo sangue. Enquanto Lilith, ela voa pelos céus nocturnos como uma demoníaca criatura que seduz os homens e mata criancinhas. Enquanto Medusa, a sua bela e abundante cabeleira tornou-se uma coroa de serpentes sibilantes e o seu olhar feroz transforma os homens em pedra. Enquanto Hécate, ela persegue os homens nas encruzilhadas pela noite com os seus ferozes cães do inferno.

Podemos perguntar-nos por que razão a Deusa Negra apresenta uma imagem tão terrífica e de que modo ela e a sua contraparte psicológica, o feminino negro, ameaçam a nossa sociedade e criam destruição nas nossas vidas. E ainda como é que o seu poder destruidor se relaciona com as suas qualidades de cura que permitem a renovação. De que formas a Deusa Negra representa o nosso medo do escuro, do oculto, da morte, da mudança; o nosso medo do sexo, bem como o do confronto com o nosso ser e essencialmente com a nossa essência e a nossa própria interpretação da verdade. As respostas para estas questões podem encontrar-se na transição de uma cultura matriarcal para uma cultura patriarcal que ocorreu há 5 mil anos. As pesquisas actuais sobre a história antiga, nos domínios da teologia, da arqueologia, da história da arte e da mitologia, estão a trazer à evidência que, com início há 3 mil anos AC, ocorreu uma transformação nas estruturas religiosas e políticas que governavam a humanidade. Sociedades matriarcais que cultuavam as Deusas da terra e da lua, como Innana, Ishtar, Ísis, Deméter e Artemis, deram lugar a sociedades patriarcais, seguidoras do deus solar e dos heróis masculinos, como Gilgamesh, Amon Ra, Zeus, Yahweh e Apolo.

Antes disso, uma conexão entre a morte e o renascimento estava implícita na cíclica renovação da Deusa Lua, cultuada pelos povos antigos. A Deusa ensinava que a morte mais não é do que a precursora do renascimento e que o sexo não serve apenas para a procriação, serve também para o êxtase, a cura, a regeneração e a iluminação espiritual. Quando a humanidade adoptou o culto dos deuses solares, os símbolos da Deusa começaram a desaparecer da cultura e os seus ensinamentos foram esquecidos, distorcidos e reprimidos.

Académic@s contemporâne@s começam a descobrir evidências de como o culto da Deusa foi suprimido, os seus templos e artefactos destruídos, os seus e as suas seguidr@s perseguid@s e assassinad@s e a sua realidade negada. O novo sistema de crenças das tribos dos conquistadores solares patriarcais renegaram a renovação cíclica, negando assim o ciclo natural do nascimento, morte e regeneração da Deusa Lua, o terceiro aspecto da Deusa Tripla. A Deusa Tripla da Lua, na sua fase nova, cheia e escura, era o modelo da natureza feminina enquanto Donzela, Mãe e Anciã. No seu culto original da Deusa Negra, como o terceiro aspecto desta trilogia lunar, ela era honrada, amada e aceite pela sua sabedoria, pelo seu conhecimento dos mistérios da renovação.
Durante a prevalência da cultura patriarcal, entretanto, ela e os seus ensinamentos foram banidos e remetidos para os recantos escondidos do nosso inconsciente.
(…)
Com a diminuição da luz da lua, ela transforma-se na Anciã Negra na lua escura minguante que recebe @ mort@ e @ prepara para o renascimento. Na sua sabedoria que deriva da experiência, ela relaciona-se com a estação do inverno e o mundo subterrâneo. Enraizada na sua força interior, a Deusa da Lua Negra está repleta de compaixão e de compreensão da fragilidade da natureza humana e o seu conselho é sábio e justo.
Ela governa as artes da magia, o conhecimento secreto, os oráculos. A Anciã da Lua Negra era artisticamente representada como a terrível face da Deusa que devora a vida, e algumas imagens representam a sua vulva como símbolo da subsequente renovação. Rainhas da magia e do submundo, como Hécate, Kali, Eresh-Kigal, são símbolos da fase minguante da Deusa da Lua Negra.
(…)
@s antig@s sabiam que tal como ela morria todos os meses com a velha Lua Negra, também renasceria na Lua Nova crescente. Era a Anciã da Lua Negra que tomava a vida no seu útero; mas @s antig@s também sabiam que a Deusa Virgem da Lua Nova daria à luz a nova vida. A anciã era a doadora da morte assim como a virgem era a que trazia o renascimento. A reencarnação era representada pela refertilização da anciã-tornada-virgem. Sabia-se que a interacção contínua entre a destruição que se transforma em nova criação é a eterna dança que sustém o cosmos.

A Deusa Negra eliminava e consumia aquilo que estava velho, degradado, desvitalizado e sem préstimo. Tudo isso era transformado no seu caldeirão e oferecido depois como elixir. Como podemos ver nos seus antigos rituais sagrados, as antigas religiões partilhavam o conceito dum submundo para onde a Deusa Negra conduzia a alma através dos negros espaços do sem forma, onde ela exercia os seus secretos poderes de regeneração.
A palavra inglesa “hell” vem do nome da terra subterrânea da Deusa escandinava Hel. O seu subterrâneo não era entretanto um lugar de punição, mas antes o escuro útero, simbolizado pela cave, o caldeirão, o fosso, a cova, o poço. A Deusa Negra não era temida e o seu espaço não era um lugar de tortura. Ela guardava os seus e as suas iniciad@s nos cemitérios, a entrada do seu templo. Através da morte o indivíduo entra no ciclo da fase escura da lua; aí encontra a Deusa Negra que o conduz através da passagem intermédia de volta à vida.

Quando este natural desfecho do tempo de vida era compreendido e aceite, a Deusa Negra era honrada pela sua sabedoria e amada pela sua ilimitada aceitação e compaixão para com os habitantes da terra. Ela não era temida pelos povos que cultuavam a lua, que entendiam a morte como um hiato no tempo entre vidas.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

TENDA VERMELHA NO TEMPLO DA DEUSA




“Afirma Borneman que o surgimento do patriarcado foi uma contrarrevolução sexual, na qual se perderam os hábitos sexuais das mulheres (désaccoutumance sexuelle, na versão francesa da obra); que as mulheres só puderam ser subjugadas despojando-as da sua sexualidade, o que é consistente com os mitos originais dos heróis solares e santos, que matam o dragão, a serpente e o touro. O rasto destes hábitos sexuais, que nos chegam através da arte e da literatura, é muito importante porque nos dá uma ideia daquilo que se destruiu com a contrarrevolução sexual.  Um lugar-comum dos hábitos perdidos são os círculos femininos e danças do ventre universalmente encontradas por todo o lado, desde os tempos mais remotos (pinturas paleolíticas como as de Cogull (Lérida) e Cieza (Múrcia), cerâmica Cucuteni do 5.º milénio a C., arte minoica, etc.), que nos falam duma sexualidade autoerótica e partilhada entre mulheres, de todas as idades, desde a infância (...)” 
 
A Tenda Vermelha, também conhecida sob a designação em inglês Moon Lodge, é um conceito que se torna cada dia mais popular. Trata-se dum espaço feminino por excelência, reservado aos mistérios do sangue das mulheres, do sangue da vida das mulheres. Ela começa por ser um espaço bonito, o mais possível, decorado com tecidos em tons de vermelho e rosa, como saris indianos, por exemplo, ou outros, e também almofadas, fragrâncias, velas, flores, incensos, óleos de massagem, chocolate ou outras iguarias. Estes são alguns dos itens que contribuem para o ambiente íntimo, sensual e mágico da Tenda Vermelha. Música suave, sobretudo para a meditação inicial, também é importante para que todos os nossos sentidos se deleitem, e que se apaga durante a partilha. Uma partilha em que a mulher que fala sabe que é ouvida com respeito, e compaixão e sem ser interrompida, e por isso costuma haver um bastão de palavra que a oradora segura nas mãos como sinal de que apenas ela detém naquele momento o direito de falar. Sabe também que a sua experiência ecoa a de praticamente todas as presentes, que a ouvem muitas vezes como se a si mesmas se ouvissem. Sabe ainda que quanto mais longe se permitir ir, mais incentivará as outras mulheres a irem também e por isso o bastão de palavra pode passar mais do que uma vez. E de que se fala numa Tenda Vermelha? Pois, óbvio, daquilo de que normalmente não se fala, de todos aqueles temas que a nossa educação se esforçou por nos ensinar a calar, coisas como: “Como foi a tua primeira menstruação?”, “Como foi fazer um aborto?”, “Como foi a tua primeira experiência sexual?”… Coisas que aprendemos a silenciar e que por norma estão carregadas de toxinas emocionais numa sociedade onde os mistérios do sangue e a sexualidade em geral têm sido tabu por tempo demasiado longo. Coisas que aqui poderão ser ditas porque aquela que facilita, que mantém a sacralidade daquela espaço, teve o cuidado de logo no início lembrar a todas as participantes o dever da confidencialidade, o que se diz e se ouve numa Tenda Vermelha pertence a esse espaço sagrado e nele ficará.


Uma Tenda Vermelha recria aquilo que, como disse Casilda Rodrigañez Bustos na citação acima, o patriarcado nos tirou com a sua contrarrevolução sexual. Ela incentiva a intimidade, emocional e física, o toque entre as mulheres, e por isso a massagem é bem-vinda numa Tenda Vermelha. Outros exercícios que reativem o corpo erótico são também apropriados, e muito importantes são também as cerimónias de cura das feridas emocionais que foram entretanto ativadas ou cerimónias de empoderamento. E tudo o que for alegre e expressivo e incentivar a criatividade cabe num espaço assim.

Tendas Vermelhas são necessárias em cada bairro, corroborando o que disse Kay Leigh Hagen, em Fugitive Information: “Alívio para a constante exposição ao homem e às necessidades do sexo masculino é necessário para uma mulher poder perceber a profundidade do seu próprio poder feminino inato, que ela foi condicionada a ignorar, negar, destruir ou sacrificar. Tempo gasto sozinha ou em espaços conscientemente construídos exclusivamente para mulheres permitem-lhe explorar aspectos de si mesma que não podem vir à tona na companhia dos homens.” e Ruth Barret, Women’s Mysteries, Women’s Truth: “Ao darmos prioridade a espaço só para mulheres, seja em espaço ritualístico ou na vida diária, muitas mulheres conseguem encontrar o seu próprio centro e explorar a sua própria verdade.” 

in, A Deusa do Jardim das Hespérides, Luiza Frazão (a sair em outubro de 2017 pela Zéfiro Editores, Sintra, 3.ª edição) 



PROTEÇÃO E AFILIAÇÃO: O MUNDO GOVERNADO PELAS MULHERES SERIA UM LUGAR MAIS SEGURO

Oxitocina vs testosterona... Em situações de ameaça, as mulheres juntam as crianças, defendem @s mais débeis, procuram formas de cooperação com outras mulheres... uma reação tipicamente feminina muito diferente da masculina...


"Apesar da desconstrução do género, iniciada pelas feministas em meados do século XX, ter tomado proporções absurdas na era pós-moderna, quando se defende não existirem diferenças essenciais entre homens e mulheres, um estudo recente sobre a resposta de cada um dos sexos a situações de stresse acrescentou um dado novo que reforça a prova de que existe mesmo uma base biológica significativa para essa diferença.

Os resultados deste importante estudo, conduzido na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) pelas doutoras Laura Cousin Klein e Sherlley Taylor 1, produziu evidências de que o mecanismo de luta-fuga descreve apenas a forma como os homens respondem às situações de ameaça. Em tais situações, os seus organismos produzem testosterona, enquanto nas mulheres essa reação é mitigada pela libertação de oxitocina, que em última análise produz um efeito calmante. Apesar das investigadoras descreverem a resposta feminina ao stresse de forma ligeiramente simplista, “tend and befriend”  (oferta de proteção e procura de afiliação 2), que se traduz na prática por juntar as crianças e colaborar com as outras mulheres, a sua pesquisa documenta mesmo uma diferença significativa na resposta das mulheres ao stresse em relação à do sexo oposto, que é basicamente de luta-fuga. O curioso é que até aqui esta era a resposta considerada ser a norma para qualquer ser humano na mesma situação de ameaça, porque 90 por cento da pesquisa científica das últimas 4 décadas foi feita em indivíduos do sexo masculino. Esse facto levou a que ninguém até à realização desta investigação tivesse reparado no facto das mulheres responderem ao stresse de forma completamente diferente da dos homens.

As investigadoras, entretanto, aprofundaram o seu trabalho e provaram que ter amigas/os mantém as pessoas saudáveis, apontando para, no caso das mulheres, haver mesmo uma necessidade biológica de disporem duma rede de amigas.

As conclusões e interpretações destes estudos que foram publicadas até agora ficaram-se por aqui, mas não precisamos de muito mais para reconhecermos que esta capacidade biológica especial das mulheres - ficarem calmas em situações de stresse e agirem com sabedoria e preocupação em relação às outras pessoas - vai muito para além da simples necessidade de terem amigas: na verdade o que fortemente se infere disto é que o mundo seria um lugar muito melhor se fossem as mulheres a  governá-lo."

1. S. E. Taylor, L. C. Klein, B. P. Lewis, T. L. Gruenewald, R. Gurung, and J. A. Updegraff, “Female Responses to Stress: Tend and Befriend, Not Fight or Flight”, Psychological Review, 107 (3), 41-42 

in The Double Goddess, Vicki Noble

2. Este estudo realizado em Portugal, no âmbito duma tese de mestrado, chega às mesmas conclusões: http://docplayer.com.br/43817558-Seminario-de-investigacao-em-psicologia-clinica-e-do-aconselhamento-julho-2007-resumo.html