Por Kelle ban Dea
Ou será que é? Este conto sempre me deixou um sabor estranho
na boca, e quando li recentemente The Broken Cauldron (O Caldeirão Quebrado) de
Lorna Smithers, percebi porquê. Na versão mais antiga que temos deste conto,
Gwion Bach não prova acidentalmente o awen. Ele rouba-o.
E depois o caldeirão parte-se, e o resto da poção derrama-se
pelo chão e envenena a terra.
Esta versão faz lembrar outros contos do mundo “celta”, em
que os caldeirões ou cálices das mulheres mágicas são roubados ou partidos, o
poder das mulheres é afetado por roubo ou violação e a terra fica a sofrer com
isso, geralmente por inundação ou, pelo contrário, por seca. É um tema
recorrente, que as ecofeministas consideram simbólico tanto da opressão do
patriarcado sobre as mulheres como da exploração da Terra. Estas mulheres são
representantes da Deusa da Soberania, que personifica a terra e determina quem
está apto a governá-la. Um rei tem de fazer um pacto com a deusa para proteger
a terra e o seu povo.
Só que, contam os mitos, a dada altura os reis e os “heróis”
aperceberam-se de que podiam simplesmente violar e roubar, e assim as mulheres
retiram-se para o Outro Mundo e a terra fica desolada.
Estes motivos parecem tão óbvios que não consigo compreender
por que razão, durante tanto tempo, foram lidos como contos de heróis e não
exatamente o oposto - contos que nos dizem que os heróis são muitas vezes, de
facto, homens violentos e que a glória é normalmente sinónimo de conquista.
Alguém sai sempre magoado, ou magoada, mas são os vencedores que contam e,
durante demasiado tempo, interpretam as histórias.
Prefiro a interpretação de Smithers. Ela refere-se a
Cerridwen como “uma deusa que passei a conhecer como a Velha Mãe Universo”.
Tradicionalmente, o caldeirão simboliza inspiração, sabedoria e renascimento.
Mas a maioria das interpretações deste conto centra-se nas façanhas de Taliesin
e ignora as consequências do caldeirão partido e da magia roubada.
O caldeirão roubado ou partido volta a aparecer num poema
mítico galês - alegadamente da autoria do próprio Taliesin - chamado “Os
Despojos de Annwfn”. Annwfn é o Outro/ Submundo celta, onde se encontra um
caldeirão mágico de inspiração e renascimento, cuidado por nove sacerdotisas.
Taliesin acompanha o famoso herói, o Rei Artur, e os seus guerreiros numa
incursão a Annwfn para roubar o caldeirão. Segue-se uma matança e um
derramamento de sangue. Apenas sete homens regressam a casa. Mas tudo vale a
pena, porque os heróis lendários têm o seu prémio.
Mais tarde, no conto, o brutal meio-irmão de Branwen,
Efnisien, mata o seu filho bebé atirando-o para o fogo e depois,
presumivelmente num acesso de remorsos, atira-se ao caldeirão, partindo-o para
que deixe de poder ser utilizado. Este é talvez o mais brutal de todos os
contos, um que me faz sempre estremecer quando o leio.
As nove donzelas que cuidam do caldeirão são também um
motivo recorrente, embora nos contos arturianos posteriores se tenham
transformado em nove bruxas, e são (naturalmente) abatidas pelo herói, como no
conto de Peredur.
Se o caldeirão do renascimento e da inspiração representa o
ventre da Deusa, como a maioria parece interpretá-lo, ou o próprio Feminino,
então o que significa o facto de os nossos supostos heróis o terem roubado e
quebrado? Que os nossos contos heroicos pareçam completamente despreocupados
com as consequências, mas que celebrem os seus protagonistas másculos? Apenas o
conto de Branwen parece apresentar o verdadeiro horror sem restrições, e talvez
não seja surpreendente que os estudiosos tenham teorizado que este foi, de
facto, escrito pela primeira vez por uma mulher.
Voltando à própria Cerridwen, creio que precisamos de novas
interpretações, como a de Smithers, que, de facto, nos devolvam ao que é
certamente o núcleo e a verdade deste conto. Cerridwen não é simplesmente uma
bruxa-musa, cujo papel é inspirar e dar à luz o herói e depois desaparecer da
narrativa; ela é a narrativa, a deusa que produz o awen e que é responsável
pela morte e pelo renascimento. A própria Velha Mãe Universo.
Na verdade, o roubo da nossa humanidade não diminui a Velha
Mãe Universo. Como é que isso pode acontecer? Ela continua a destruir estrelas,
a dar à luz mundos e a criar vida. As galáxias continuarão a girar sem o nosso
contributo. Os que prejudicamos somos nós próprios e o próprio ecossistema de
que dependemos para sobreviver.
Aquilo que roubamos aos nossos descendentes.
E por isso temos de fazer o que pudermos para reparar o
caldeirão, antes que sejamos deixados numa Terra Desolada mais uma vez.
[1] Smithers, Lorna The Broken Cauldron (2021) Ritona Press
Fonte:
Imagem 1 - Cerridwen, arte de Wendy Andrew
Imagem 2 - O Caldeirão de Gundestrup, Wikipedia
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