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sábado, 7 de outubro de 2023

Reconsiderando o Essencialismo - Carol P. Christ

 

Na minha aula de Ecofeminismo temos estado a discutir o essencialismo porque algumas feministas alegam que outras feministas, particularmente as ecofeministas e as feministas da Deusa, são "essencialistas". Argumentam que as visões essencialistas reforçam os estereótipos tradicionais, incluindo aqueles que designam os homens como racionais e as mulheres como emocionais. Também eu considero o essencialismo problemático, mas não concordo que o feminismo da Deusa e o ecofeminismo sejam intrinsecamente essencialistas.

As feministas da Deusa e as ecofeministas criticam o dualismo clássico: as tradições de pensamento que valorizam a razão em detrimento da emoção e do sentimento, o homem em detrimento da mulher, o homem em detrimento da natureza. Defendemos que a tradição racional ocidental lançou as sementes da crise ambiental quando separou o "homem" da "natureza".

As feministas da Deusa e as ecofeministas afirmam as ligações entre as mulheres e a natureza numa visão do mundo ambiental que reconhece a interligação de todos os seres na teia da vida.

Esta visão tem sido criticada como essencialista. Será que é?

O essencialismo é o ponto de vista segundo o qual "a essência precede a existência". As e os essencialistas (que são platonistas ou cripto-platonistas) dizem que a "ideia" ou "qualidades essenciais" de uma coisa (uma mesa, um cavalo, uma mulher ou um homem) precede a "existência" de qualquer indivíduo no grupo a que pertence; estas qualidades são universalmente - sempre e em todo o lado - expressas pelos membros do grupo.

As feministas da Deusa e as ecofeministas têm sido lidas como dizendo que é da natureza dos homens estarem separados da natureza e que é da natureza das mulheres estarem ligadas à natureza. O que estávamos realmente a dizer era algo mais subtil: que os homens, especialmente os dominantes e poderosos, imaginam que estão separados da natureza; e que as mulheres, que foram identificadas com a natureza, têm mais probabilidades do que os homens de reconhecer a ligação humana à natureza.

As feministas da Deusa e as ecofeministas também disseram que as emoções e as relações são valiosas. Defendemos que a racionalidade foi incorretamente definida para excluir os sentimentos. Sugerimos que os sentimentos em relação aos seres humanos, aos animais e a toda a natureza deveriam inspirar as nossas visões do mundo e a nossa ética. Por vezes, temos falado de uma forma de pensar que inclui os sentimentos como sendo mais suscetível de ser praticada pelas mulheres.

As feministas da Deusa e algumas ecofeministas argumentaram que as mulheres precisam da Deusa como uma imagem positiva do poder feminino e sugeriram que a imagem da Mãe Terra fosse incluída juntamente com outras imagens.

Ainda operando dentro de dualismos binários, os críticos leem as feministas da Deusa e as ecofeministas como repetindo a "velha história" de que os homens são racionais e as mulheres não. Não conseguem ver que as feministas da Deusa e as ecofeministas estão a apelar a uma reintegração da razão e da emoção, da mente e do corpo, da humanidade e da natureza - e que encontramos "inteligência" na natureza. Embora muitas de nós queiramos celebrar os poderes do corpo feminino e os valores positivos associados à maternidade, poucas de nós argumentaram que as mulheres são apenas corpos ou que devem ser restringidas a papéis de cuidadoras.

A maioria das feministas da Deusa e das ecofeministas rejeita os dualismos binários que caracterizam o pensamento essencialista - mesmo quando a situação se inverte para beneficiar as mulheres. Por isso, ficamos perplexas ao sermos classificadas como essencialistas. Tal como outras, tive de recorrer ao dicionário para perceber a acusação que estava a ser feita.

Não creio que existam "diferenças essenciais" entre mulheres e homens ou entre machos e fêmeas. Pode haver algumas pequenas diferenças entre os que têm ADN masculino e os que têm ADN feminino. A testosterona tem sido associada a comportamentos ligeiramente mais agressivos do que os produzidos pelo estrogénio. Estas diferenças são estatísticas, mas não são verdadeiras para todos os indivíduos. Os corpos masculinos e femininos são diferentes, mas também o são os corpos pequenos e os corpos altos.

No entanto, não considero que estas diferenças criem uma "diferença essencial" entre mulheres e homens. Uma "diferença essencial" é aquela que determina inevitavelmente a forma como vivemos e reagimos ao mundo. Estudos sobre culturas tradicionais e matriarcais sugerem que as culturas podem sobrepor-se a quaisquer tendências que se encontrem na nossa constituição genética. Os homens não têm de ser agressivos ou violentos - podem ser tão carinhosos e generosos como as suas próprias mães. Na natureza não-humana também há machos carinhosos: alguns pássaros machos sentam-se em cima dos ovos; os machos bonobos não são tão agressivos como os machos chimpanzés.

Embora pense que a crítica anti-essencialista (geral) do ecofeminismo e do feminismo da Deusa está errada, desconfio de termos como "o feminino", "o divino feminino" e o "sagrado feminino" que são amplamente utilizados no pensamento da nova era e em algumas partes do movimento de espiritualidade das mulheres. Suspeito que estes termos são escolhidos para evitar o "afrontamento" aos sistemas de dominação masculina provocado pela palavra "f" (feminista) e pela palavra "G" (Deusa).

O "feminino" está associado a um conjunto de qualidades, muitas vezes não claramente definido, que inclui "mais emocional e intuitivo, mais amoroso e carinhoso". "O masculino", também muitas vezes sem uma definição clara, é entendido como "mais racional, assertivo e, por vezes, agressivo". A maioria dos que usam estes termos reconhecem uma dívida para com Carl Jung.

Jung definiu "o masculino" como racional e consciente e "o feminino" como inconsciente. Jung tinha um grande respeito pelo inconsciente e acreditava que a cultura ocidental tinha desvalorizado o "feminino". No entanto, isso não faz com que o seu pensamento seja feminista. Jung sentia-se pessoalmente desconfortável com as mulheres que entravam em discussões racionais com ele ou com outros homens. Ele e os seus seguidores chamavam a essas mulheres "animus ridden" (dominadas pelo animus), um termo de código para "não femininas".

A noção de que "todas e todos nós temos os nossos lados masculino e feminino" não resolve os problemas inerentes a estes termos. O facto de Jung e os seus seguidores poderem falar de mulheres fortes como estando cheias de animus sugere que as suas teorias eram inerentemente patriarcais. Quando identificou o feminino com o inconsciente, Jung estava a reafirmar (embora talvez de uma forma mais palatável) a visão tradicional de que as mulheres são menos racionais do que os homens.

Sou uma mulher altamente racional e altamente emocional. (Tenho o meu Sol em Sagitário e a minha Lua em Caranguejo.) Não vejo a minha mente racional como o meu "lado masculino". Fazê-lo seria reconhecer que é "pouco feminino" ser racional. A minha mente é tão minha como as minhas emoções. E ambas fazem parte do meu ser feminino. Da mesma forma, não gostaria de dizer a um homem carinhoso que ele é "feminino"; isso sugeriria que cuidar não é "masculino".

Há outros problemas. Jung via as Deusas como reflectindo o inconsciente e os Deuses a consciência racional. O seu seguidor Erich Neumann afirmou que era necessário que as culturas da Deusa fossem derrubadas para que o indivíduo racional pudesse emergir.

Penso que toda esta forma de pensar sobre qualidades e comportamentos "masculinos" e "femininos" é essencialista; e concordo que o pensamento essencialista deve ser rejeitado pelas feministas.

Ao mesmo tempo, penso que é importante elevar as qualidades que têm sido associadas ao feminino, de modo a provocar um repensar dos dualismos que moldaram as culturas ocidentais (e outras) - em detrimento das mulheres e das pessoas consideradas "outras" pelo "homem racional". Os símbolos da Deusa e da Mãe Terra podem ter um "poder metafórico" para alterar estereótipos familiares, transformando a forma como pensamos o mundo.

Também precisamos de afirmar que todos os indivíduos são inteligentes (sendo a racionalidade apenas uma parte disso) e que os indivíduos têm a capacidade de captar os sentimentos das outras pessoas e de se preocuparem com elas. Isto aplica-se aos seres humanos do sexo feminino e masculino, bem como a todos os outros indivíduos na teia da vida neste planeta e no universo como um todo.

A filosofia do processo afirma que "sentir e sentir os sentimentos dos outros" é fundamental em toda a vida: humana, animal, celular, atómica e divina. Nesta perspetiva, podemos ver que, quando divorciou a racionalidade do sentimento e designou as mulheres e toda uma série de outras pessoas como deficientes em termos de racionalidade, a filosofia ocidental deu uma volta enorme e errada. Esta viragem errada tem sido usada para justificar grandes injustiças e ameaça o futuro da vida nesta terra. As feministas da Deusa e as ecofeministas estão entre aqueles que veem isto claramente.

 Publicação original

 Imagens: Creta, Junho 2023

 

 

 

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