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Esta querela entre natureza e
razão, que de resto sempre foi uma falsa questão, é responsável pela cegueira
desta sociedade que, ao querer corrigir o instinto, cortou o ser humano daquilo
que era a sua natureza.
A verdade é que o instinto não se
corrige. Sublima-se, transcende-se, e isso graças a uma razão que o dirige, mas
que em caso algum o deve encerrar em limites estreitos e negá-lo. E o instinto
assusta, porque é forte e porque é inelutável. Este estudo sistemático do
princípio feminino na cultura celta tem pelo menos o mérito de trazer à luz da
consciência a ideia de que o instinto é primordial, no sentido etimológico do
termo, que ele é necessário, que é um fator de progresso e de evolução.
Mas o instinto tem algo de
selvagem, de “bárbaro”, mesmo. E é por aí que ele atinge a “grandiosidade”. Ele
é o único motor dos nossos sentimentos, da nossa ação. E, tendo em conta os
nossos hábitos morais, é por vezes difícil formulá-lo e olhá-lo de frente: a
verdade choca-nos. Quando ousamos afirmar que todas as relações entre homens e
mulheres, quaisquer que elas sejam (conjugais, filiais ou outras) são
necessariamente relações incestuosas entre mãe e filho, atraímos as mais
ásperas críticas e somos tidos por obcecados. E no entanto…
O homem é, com efeito, um ser incompleto e tem
consciência disso. O seu medo e a sua atracção pelo abismo negro (o nada de
onde provém), o seu medo e a sua vertigem diante da morte (o nada que o espera)
tornam-no um ser frágil que procura a segurança a todo o custo. Essa segurança
é a mãe, tanto para o homem como para a mulher. Mas o homem, física e afetivamente,
possui um meio de reentrar, pelo menos provisoriamente, na mãe. Não é preciso
insistir: qualquer tendência da psicanálise já esclareceu suficientemente bem
que o pénis, pequena parte do homem, mas uma parte exterior e suscetível de
aumentar, constitui o substituto do próprio homem. Ele pode, portanto, em certas
ocasiões, reatualizar de modo fantasmagórico o regresso ao paraíso que a mãe
representa.
E toda a mulher é uma mãe, real
ou potencial. O homem está portanto biologicamente sujeito à mulher, quer ele
queira, quer não. Ele é o conteúdo, enquanto a mulher é o continente: isso
constitui um estado de inferioridade muito óbvio para o homem e ele passará
depois todo o seu tempo a negar tal realidade para provar a si próprio que é
superior. É assim que se explica a ação masculina, o facto dos homens serem
dotados para a ação, para a violência e o combate. Esta ação é o único meio que
lhes resta para tentarem afirmar-se.
E se o homem é o conteúdo,
portanto um ser inferior, ele arroga-se o direito dum ser superior, mostrando
que a sua força ativa é a única capaz de proteger a espécie. Até conseguiu
persuadir a própria mulher dessa superioridade, simbolizada pelo reconhecimento
do pénis do rapazinho no momento do nascimento, feito pela mãe ou por qualquer
outra mulher que ajude no parto. O famoso grito: “É um rapaz!”, repetido
geração após geração, é bastante eloquente a esse respeito. Quando nasce uma
rapariga, aceita-se; mas quando nasce um rapaz, rejubila-se.
No entanto, o continente, a mãe, que é o mesmo que
dizer a mulher, é a própria
realização do Paraíso. Ela realiza-o sob dois aspectos duma mesma realidade:
ela contém o filho e o amante. De resto, como alguns psicanalistas já referiram,
a vagina da rapariga não é reconhecida pela mãe, nem pelo pai, no momento do
nascimento. Tal reconhecimento far-se-á, no entanto, um dia, e será o homem a
efetuá-lo. Assim, para se afirmar, para tomar consciência de quem é e sobretudo
do seu poder, a mulher precisa do homem. Traduzido em linguagem mitológica dá: o homem precisa duma deusa, mas a deusa
precisa do homem. É esta a razão pela qual se perpetuaram, sob formas
diversas, os antigos cultos da divindade feminina.
Na cultura celta, vimo-la sob os
seus diferentes aspectos, ou melhor, sob as diferentes máscaras que os homens
lhe atribuíram. Todos os nomes que lhe foram dados, entretanto, não nos devem
fazer esquecer que se trata dum ser único, da mãe primordial, da primitiva
deusa, da grande rainha dos começos.
Jean Markale, “La Femme Celte”