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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

NOITE DE NATAL - A ANTIGA NOITE DAS MÃES

 Será por esta a razão profunda que o Dia da Mãe em Portugal se celebrou a 8 de Dezembro até tempos relativamente recentes?

"Noite das mães: as antigas origens pagãs do Pai Natal?

Essa tradição de uma mulher viajar pelo mundo trazendo presentes também está incorporada na tradição irlandesa. Isso poderia ser um remanescente das deusas antigas trazendo boa fortuna?

Um antigo festival de inverno que remonta pelo menos à Idade do Ferro é a Noite das Mães ou Modraniht.

Esta celebração ocorreu na actual véspera de Natal e foi associada a uma homenagem às ancestrais e espíritos femininos, daí a associação com as mães.

O que pode ser surpreendente para algumas pessoas é que essa celebração também ecoa no folclore irlandês da véspera de Natal.

Ao contrário de outras festas menos atestadas que ocorreram nesta época, temos documentação escrita definitiva desta festa que remonta ao século VIII, e relíquias dessas mesmas divindades na forma de Dísir e Matres do primeiro século.

A tradição oral remonta muito mais longe, possivelmente às primeiras deusas da fertilidade europeias.

Deusas triplas semelhantes da Idade do Bronze também são encontradas na Anatólia, talvez indicando uma raiz proto-indo-europeia. As sete deusas Matrika, por exemplo, remontam a pelo menos 3.000 aC.

O Dísablót do Norte da Europa foi realizado durante as noites de inverno, bem como o Equinócio Vernal.

Agora, esta é uma ocorrência interessante porque as fadas e espíritos associados com as Plêiades (incluindo a mencionada Matrika) também eram reconhecidos nessas ocasiões. Mas isso provavelmente é um post para depois, excepto para dizer que não devemos esquecer-nos de que as estrelas eram tanto um motivo para esta celebração sazonal quanto o renascimento do sol!

Neste contexto, as noites mais longas do ano teriam acontecido numa época em que as estrelas estavam mais presentes na vida das pessoas e, portanto, teriam sido vistas como mais influentes.

Como já escrevi algumas vezes aqui, vamos cada vez encontrando mais e mais monumentos alinhados com constelações e posições de estrelas polares em dias auspiciosos, o que confirma o que dissemos antes.


Espero que seja este o caso também aqui na Irlanda.

Mas voltando à Noite das Mães, era uma noite em que oferendas e sacrifícios eram feitos às deusas, antepassadas e ancestrais femininas. Oferecer uma porção de uma refeição, sem manteiga, mel ou bebida eram meios populares de apaziguar e expressar respeito e agradecimento.

Acender fogueiras, queimar incenso e fazer profecias para o ano seguinte eram outras actividades associadas a esta noite. Isso não deveria ser surpresa, considerando os vínculos entre as Dísir, as Norns e as Moirai, todos grupos triplos de mulheres / deusas sobrenaturais controlando o destino.


É interessante olhar para esta tradição à luz de uma deusa anterior mencionada aqui, La Befana, que entrava pela casa voando, trazendo presentes para as crianças que haviam sido boas e pedaços de carvão para aquelas que se tinham portado mal.

Befana é similar a Perchta e à rainha das fadas, Nicnevin, que muitas vezes era considerada a líder da Caçada Selvagem no Yule. Esta era uma procissão de elfos, espíritos de fadas, mortos e mortas e outras entidades sobrenaturais.

Embora seja frequentemente considerado de mau agouro encontrar o desfile desta caçada, é interessante notar os aspectos mais lúdicos e provocadores dos encontros folclóricos irlandeses. (Para não ignorar as mortes reais de outros que são arrastados por esta perseguição fantasmagórica!)

Essa tradição de uma mulher viajar pelo mundo trazendo presentes também está incorporada na tradição irlandesa. Isso poderia ser um remanescente das deusas antigas trazendo boa fortuna?

Aqui está um exemplo de uma história sobrevivente que foi gravada em Carlow em 1937.

“Diz-se que na noite de Natal uma velha vai de trenó de um lado ao outro do mundo. O trenó é puxado por cães e caminha pelas nuvens. Numa certa véspera de Natal, porém, o eixo do trenó quebrou-se e ela caiu ao chão, pousando ao lado de uma carpintaria. O carpinteiro fez um eixo para o seu trenó.

Ele mirou e remirou até que ela estar fora de vista, e quando então olhou para o chão, por algum poder mágico, todas as sobras de madeira se tinham transformado em ouro. ”

Fonte original aqui: https://www.duchas.ie/en/cbes/5044666/5030337/5142569

Com o folclore irlandês posterior da véspera de Natal, muito parecido com Brigid no Imbolc, por exemplo, vemos Maria substituída pela antiga figura da Deusa.

Como podemos ver, então, há também alguns paralelos surpreendentes com La Befana, que era uma deusa que voava de casa em casa nos contos antigos na Europa continental no meio do inverno. E, como já foi mencionado, a própria La Befana está conectada com as deusas Perchta e Holda.

A velha, neste caso, também pode ser outra forma da Cailleach, é claro. Há fortes ligações com a Cailleach como inicialmente associado a figuras de deusas da Europa continental antes das associações com a Irlanda e a Escócia

Existem também antigas tradições relacionadas com a figura da Mãe do Veado dos povos xamânicos asiáticos, bem como das tribos da Escandinávia, Escócia e dos povos indígenas norte-americanos.

Veja a postagem anterior para mais informações sobre isso. Já mencionamos como as várias figuras da Deusa voaram pelo ar em um trenó, carregaram o sol nos chifres de um cervo e entregaram presentes ao povo.

Então, talvez a véspera de Natal deva ser lembrada por sua associação muito mais antiga com ancestrais e espíritos femininos, bem como sua associação com o início de um novo ciclo solar anual.

A Noite das Mães foi um momento de proximidade e reflexão pessoal para famílias, filhas e filhos.

Foi um momento de recordar as mães que faleceram e, à medida que as noites escuras chegavam ao fim e a nova luz estava para nascer, era o momento de contacto entre fins e novos começos.

(C.) David Halpin.

Fotos.

1. A reconstrução da Shamaness of Bad Dürrenberg por James Dilley

2. Círculo de pedras de Boleycarrigeen

3. Uma foto em preto e branco de Haroldstown Dolmen

4. La Befana, a Bruxa do Natal Italiana, em https://italiancenter.net/events/festa-della-befana.html


Versão original:

https://www.facebook.com/CircleStoriesDavidHalpin/posts/1349492972066042

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

SENHORA DAS FLORES - uma das faces da Deusa de Beltane

 

Sabias que uma das invocações da face da Deusa de Beltane é Senhora das Flores?

As flores são, como sabes, os órgãos sexuais das plantas, puras manifestações da beleza e sabedoria divinas e têm um grande poder, magia e capacidade de cura para nos oferecerem. Como nos diz a autora do livro A Magia das Flores, Tess Whitehurst, elas situam-se na fronteira entre o visível e o invisível, mais perto do reino etérico da energia pura e por isso permitem-nos ver o coração da verdade. Se nos sintonizarmos com as suas vibrações únicas, podemos melhorar muito a nossa saúde e vitalidade, poder e sucesso pessoal. Temos a aromaterapia e os florais de Bach, por exemplo, para o atestarem.

Na verdade elas tanto podem servir como terapeutas como como perfeitas e maravilhosas emissárias do poder da Deusa, por isso a Senhora das Flores é tão importante e será honrada na nossa Conferência da Deusa, entre 10 e 12 de Maio de 2024.

Sem dúvida que quanto mais reconhecemos este poder inefável das flores mais paz e harmonia e alma trazemos ao mundo.

Na nossa cultura existe uma rainha que realizou o célebre Milagre das Rosas. Foi Isabel de Aragão, mais conhecida como a Rainha Santa Isabel (1270-1336), mas parece que outras santas e rainhas realizaram o mesmo, inclusive uma sua tia na Hungria.

Seja como for, desta história existe uma parte que não parece ser vista nem interessar: a proibição do Rei, em relação à Rainha, de esta exercer a caridade. Esta foi a real causa do milagre: esconder do Rei, no caso Dinis, as suas acções em prol das pessoas pobres e esfomeadas, já que o que ela transformou em rosas foi o próprio pão que lhes mataria a fome naquele dia… Esta é a parte do milagre que não se conta, mas que deveria causar-nos indignação, é que, mesmo sendo Isabel de Aragão rainha, e por isso mesmo possuidora de riqueza própria, ela não podia fazer o que queria com o seu dinheiro…

As flores têm destas coisas, um lado sombra… Muitas vezes também são conectadas com futilidade, superficialidade, vaidade, ou desempoderamento… Invocando aspectos sombra do feminino que podem levar-nos até à própria história da Deusa celta Blodeuwedd, a Deusa feita de flores… um pouco como Eva foi feita para Adão… Só que Blodeuwedd se libertou ao apaixonar-se pelo eleito do seu coração… Foi entretanto amaldiçoada até as mulheres da Deusa se terem identificado com o seu destino e reconhecido o seu antigo poder quando se transformou numa coruja, ou mocho, qualquer uma delas muito sagrada da Deusa…

Em Portugal, existem templos cristãos à Senhora das Flores em, pelo menos, Travanca e em Oliveira de Azeméis.

 

 Imagens: Milagre das Rosas, pintor André Gonçalves, 1735

Deusa Blodeuwedd

 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Max Dashu - O Conselho Pontifício para a Cultura tem uma agenda para as mulheres: a mesma gaiola de sempre

 Publicado em 2 de fevereiro de 2015 por Veleda (Max Dashu)

 O Conselho Pontifício para a Cultura reúne-se em Roma, de 4 a 7 de fevereiro de 2015, para refletir sobre "Culturas femininas: Igualdade e diferença". O documento preliminar que publicaram dá uma dica, caso tenha ficado com dúvidas de que as suas ideias sobre as mulheres mudaram um pouco. O documento intitula-se "Culturas Femininas: Igualdade e Diferença", e tenta - mais uma vez - convencer as mulheres do que a hierarquia masculina insiste ser o seu lugar de direito:

"No início da história da humanidade, as sociedades dividiam rigorosamente os papéis e as funções entre homens e mulheres. Aos homens cabia a responsabilidade, a autoridade e a presença na esfera pública: a lei, a política, a guerra, o poder. Às mulheres cabia a reprodução, a educação e o cuidado da família na esfera doméstica."

Esperem aí. O que é que aconteceu à responsabilidade e autoridade femininas - mulheres chefes, curandeiras e chefes de clã? Durante muito tempo, foi possível afirmar que as líderes femininas públicas nunca existiram, mas há demasiada documentação acumulada para que isso continue a ser verdade.



Mulher xamã Manchu: uma importante líder espiritual e social na sua cultura do nordeste asiático




"Na Europa antiga, nas comunidades de África, nas civilizações mais antigas da Ásia, as mulheres exerciam os seus talentos no ambiente familiar e nas relações pessoais, evitando a esfera pública ou sendo positivamente excluídas. As rainhas e imperatrizes recordadas nos livros de história eram notáveis excepções à norma."

Figura feminina invocatória de Netafim, cerca de 5000 a.C.


Estes prelados estão a avançar uma reivindicação de dominação universal masculina - uma doutrina à qual a hierarquia da Igreja está profundamente ligada. Não sentem qualquer necessidade de fundamentar esta afirmação com provas. O seu decreto foi suficiente durante tanto tempo que não conseguem reconhecer que o mundo mudou. Tomando como norma as sociedades baseadas no Estado, passam ao lado de longas épocas da história humana, incluindo as sociedades neolíticas, com as suas muitas representações de liderança feminina, e um vasto leque de sociedades indígenas que não se enquadram na política sexual apertada que aqui se apregoa.

A liderança cerimonial das mulheres é um tema central da arte egípcia pré-dinástica


As mulheres das sociedades antigas não "evitavam a esfera pública": nem as guerreiras africanas, nem as sacerdotisas cretenses e ibéricas, nem mesmo as sacerdotisas sumérias, babilónicas e fenícias. Estamos a falar de história registada, que não deixa margem para ambiguidades. Mesmo em períodos muito posteriores, conhecemos as cantoras épicas turcas, as juízas e escribas do Camboja, as poderosas associações de mulheres do mercado da África Ocidental. Mas porquê falar apenas destes continentes, deixando de fora as Américas, a Austrália e as ilhas do Pacífico? Também eles contam como sociedades antigas e têm as suas próprias histórias de mulheres proeminentes, de legisladoras, diplomatas e chefes, de líderes cerimoniais e guerreiras.

A Senhora de Cao, sacerdotisa-chefe no Peru do século IV (encenação moderna baseada em achados arqueológicos)

Os iroqueses e os cherokees recordam que as " fabricantes de mocassins" (mocassins-makers) tinham o direito de atuar como "travão de guerra", recusando-se a abastecer homens que quisessem ir para a guerra sem o consentimento do conselho das mulheres. Em Yunnan, o povo Lisu conta que os homens tinham de parar de lutar se uma mulher de qualquer dos lados abanasse a saia para pedir um armistício. Do mesmo modo, na ilha Vanatinai, no Pacífico, uma mulher podia dar o sinal de guerra ou de paz tirando a saia exterior. Isto é autoridade feminina. Não se trata de uma fantasia. É a realidade histórica.

Os Huastecas esculpiram um grande número de monumentos femininos em pedra, no leste do México

A declaração do Conselho Pontifício passa ao lado da grande maioria das sociedades indígenas, incluindo aquelas em que a responsabilidade feminina, a autoridade e a presença pública eram e continuam a ser parte integrante. Entre as Seis Nações dos Iroqueses, os Gantowisas têm autoridade estrutural para selecionar os chefes e para lhes "tirar os chifres" se falharem nas suas responsabilidades. Estes chefes actuam como delegados do povo e não como senhores sobre ele, um facto que continuou a surpreender os observadores europeus, que faziam suposições muito diferentes sobre a liderança, bem como sobre o poder feminino.

Mas há mais: o conselho feminino de Gantowisas ("matronas" nos relatos europeus) discutia questões e, como escreve a historiadora Séneca Barbara Mann, o conselho masculino não podia debater qualquer questão até que o conselho feminino lha transmitisse. Havia um equilíbrio estrutural entre a soberania masculina e a feminina. Mann também chama às mulheres anciãs o "conselho federal de reserva" das Seis Nações, referindo-se ao seu controlo dos recursos económicos.

As mulheres Hopi realizam a cerimónia Lakon; os homens não têm autoridade sobre elas nesta cultura matrilinear / matrilocal

E onde estão, na visão cega dos padres, as mulheres fundadoras, como Ti-n-Hinan, a mãe ancestral do povo Imushagh / Tuareg do Hoggar, cujo túmulo do século IV é o monumento mais proeminente da região? E as mulheres chefes dos edomitas, cujos nomes figuram no Génesis, ou ainda a profetisa Miriam, Débora e Hulda? Onde estão as profetisas montanistas que foram denunciadas como heréticas na Ásia Menor do século III? As mulheres que lideraram rebeliões contra a conquista e a colonização, movimentos de trabalhadores, cujas acções deram origem às revoluções francesa e russa?

Ti-n-Hinan, fundador ancestral do povo Imushagh/Tuareg

A negação da liderança espiritual feminina é especialmente preocupante para uma instituição que luta com todas as suas forças para conter a maré de ordenações femininas. Admitir as provas maciças do sacerdócio feminino - o wu na China antiga, o mikogami no Japão, o mudang na Coreia, para citar algumas das sociedades da Ásia Oriental onde predominavam (e ainda predominam na Coreia) xamãs do sexo feminino - seria arrancar os últimos esteios que sustentavam o edifício em ruínas de uma estrutura de poder exclusivamente masculina. Esta hierarquia foi gravemente abalada pelos escândalos relacionados com a pandemia de violações de crianças e com o encobrimento dos bispos, bem como com a corrupção financeira na Cúria. Muitas pessoas declaram prontamente que as mulheres fariam um trabalho muito melhor na direção da Igreja.

As Wu (mulheres xamãs) actuavam como curandeiras, profetas e fazedoras de chuva na China antiga. Bronze hu cerca do século IV a.C.

Depois de pretenderem que a liderança masculina é um dado histórico universal, uma qualidade inata e essencial, os Conselheiros Pontifícios passam ao tema dos movimentos de mulheres que desafiaram e subverteram velhos constrangimentos habituais:

 A partir da segunda metade do século XIX, sobretudo no Ocidente, a divisão dos "espaços" masculinos e femininos foi posta em causa. As mulheres exigiram direitos, como o direito de voto, o acesso ao ensino superior e às profissões liberais. E assim se abriu o caminho para a paridade dos sexos".

Isso soa muito bem, certo? Que as mulheres conquistaram os seus direitos e as coisas abriram-se. Oh... espera. Uh-oh: "Este passo não foi, e não é, isento de problemas."

Quais eram esses problemas? Dizem-nos que as mulheres estavam a assumir papéis "que pareciam ser exclusivamente destinados ao mundo masculino" [destinados, por quem?] e que as suas reflexões sobre a sua situação estavam "por vezes a envolver-se em movimentos políticos e fortemente ideológicos". Estas constatações, devemos compreender, são muito mais problemáticas do que as doutrinas "fortemente ideológicas" de subordinação feminina que a igreja institucional impôs através de meios "políticos", desde as cruzadas aos julgamentos inquisitoriais e à caça às bruxas, até às leis e políticas modernas que a igreja defende e que continuam a fazer das mulheres cidadãs de segunda classe, cujas vidas e corpos são dispensáveis.

O Conselho Pontifício não considera que as estruturas patriarcais sejam problemáticas; continua a defender que estão de acordo com as qualidades essenciais dadas por Deus. É a reação feminina contra elas que ele não aprecia e deplora. Mulheres! Fiquem no vosso lugar.

"Que anúncio querigmático ["pregação", em linguagem simples] deve haver para as mulheres, que não se feche numa visão moralista? De que indicações precisamos para uma nova praxis pastoral, para um caminho vocacional para o matrimónio e a família, para a consagração religiosa, tendo em conta a nova consciência de si que as mulheres têm?"

O que há de "novo" em empurrar as mulheres "para o matrimónio e a família"? Uma coisa é certa: por "consagração religiosa" não se entende a ordenação sacerdotal feminina. O mais provável é que estejam a sonhar com novos adereços religiosos para o papel de esposa e mãe, como forma de dar resposta ao anseio das mulheres por uma maior inclusão na Igreja.

O pior que poderia acontecer, na mente dos escritores, é a mulher rejeitar o papel feminino tal como eles o definem: "Trata-se de proteger a dignidade da mulher, de respeitar o que é genuinamente feminino (e esta é a verdadeira igualdade) e de evitar que a mulher, ao tentar inserir-se responsavelmente numa sociedade marcadamente masculina, perca a sua feminilidade [sic]."

Isto é nada mais nada menos do que a reafirmação do velho princípio patriarcal: o lugar da mulher é na esfera privada, sob a autoridade do homem. Não só isso, mas "sociedade" significa "homens". Se as mulheres estão incluídas na forma como se pensa a "sociedade", não há necessidade de nos "inserirmos" nela. Nós já fazemos parte dela. Mas a declaração não mostra qualquer consciência deste simples facto. Estes prelados de alto nível não acreditam que as mulheres pertençam de todo à esfera pública - e muito menos ao sacerdócio.

De facto, eles não querem que as mulheres participem nesta iniciativa sobre a "Cultura das Mulheres". Como me informa Soline Humbert, "o Conselho Pontifício para a Cultura tem 32 membros permanentes, todos homens, nomeados por 5 anos. Quase todos são cardeais, bispos e padres, e um par de leigos ("homens de cultura"... Não há "mulheres de cultura"...) Há também consultores que são nomeados pelo papa... Há 27 consultores homens, e 7 mulheres, ( se bem me lembro), nomeados no verão passado pelo Papa Francisco."

 Por outras palavras: são zero mulheres entre os 32 membros permanentes do Conselho Pontifício, enquanto no círculo exterior de Consultores o rácio de homens para mulheres é de 4:1, num total de 59 homens e 7 mulheres. É esta a pessoa que vai emitir uma declaração definitiva sobre a "Cultura da Mulher" - e esperam que isso passe por uma mudança, na sua iniciativa de envolver as mulheres católicas.

Este é um padrão familiar da alta hierarquia sacerdotal: excluir totalmente as mulheres do núcleo do poder e admitir algumas mulheres cuidadosamente seleccionadas para um círculo exterior, onde são muito mais numerosas (e superiores) do que os homens. Soline acrescenta que "houve uma menção a um grupo de mulheres que trabalhou no documento de discussão agora publicado, mas não vi os nomes dos membros desse grupo (mulheres anónimas?) nem como foram seleccionadas. Além disso, apesar de terem mencionado que haveria um 'Dia Aberto', parece que, mais uma vez, é apenas por convite para alguns seleccionados...."

Vénus em cativeiro: a visão da hierarquia
sobre a cultura feminina
A imagem selecionada para esta iniciativa é altamente simbólica: uma mulher nua, sem cabeça, sem braços, sem pernas e em estado de escravidão. É a fotografia de Man Ray de 1936 "Vénus Restaurada". É esta a sua ideia de Cultura Feminina?!? Já indignou inúmeras mulheres. Soline Humbert resume o contexto desta peça no blogue We Are Church Ireland:

"Man Ray tinha um forte interesse por Sade e pelo sadismo e há um traço sádico recorrente na sua obra de arte, bem como nas suas relações com as mulheres, caracterizadas pela dominação e pela agressão. Man Ray fotografou mulheres usando instrumentos de bondage e encenando cenas de tortura. Também ajudou outros, como William B Seabrook, a concretizar na vida real as suas fantasias de bondage com mulheres.

"O que é que está por detrás desta escolha da imagem da escravidão feminina pelo (todo masculino) Conselho Pontifício para a Cultura? Será a escolha do grupo de mulheres (quem são elas?) que está por detrás deste documento? Que mensagem se pretende transmitir?"

Podemos perguntar-nos.

O mesmo se aplica às recentes repreensões do Papa Francisco às mulheres das Filipinas pelas suas elevadas taxas de natalidade, depois de décadas em que os eclesiásticos defenderam firmemente o método do ritmo! Como se a abstinência fosse uma opção real para a maioria das mulheres casadas deste mundo. Ele não faz a mínima ideia da realidade que estas mulheres vivem.  No que respeita às mulheres, nada mudou.

Nem a atitude fria para com os povos indígenas, cuja escravatura, fome, flagelações e outros abusos no sistema missionário estão a ser postos em causa pela planeada canonização de Junípero Serra. (Ver 8:50 >> no vídeo com link, onde os descendentes falam sobre raptos, sobre os seus antepassados que passavam fome com 700 calorias por dia, enquanto eram forçados a trabalhar, e obrigados a ajoelhar-se em azulejos durante toda a missa, mantidos em fila por guardas com chicotes e baionetas). Nestas duas importantes questões de justiça social, as mulheres e os povos indígenas, o pontífice surdo nem sequer finge querer mudar.


A reação contra as mulheres chegou mesmo à liberal São Francisco. Foram precisos 16 séculos para que a proibição de mulheres no altar fosse revogada, durante algumas décadas, em alguns locais, e agora alguns padres estão a tentar voltar atrás. "O reverendo Joseph Illo, pároco da Igreja da Estrela do Mar desde agosto, disse acreditar que existe uma "ligação intrínseca" entre o sacerdócio e o serviço no altar - e como as mulheres não podem ser padres, faz sentido ter apenas acólitos. "Talvez o mais importante seja o facto de preparar os rapazes para considerarem o sacerdócio".

"A paróquia do distrito de Richmond é agora a única na Arquidiocese de São Francisco que excluirá as raparigas do serviço do altar. Tal decisão é "uma decisão do pároco", disse o porta-voz da arquidiocese Chris Lyford. "Um programa de acólitos seria uma experiência de ligação entre homens, que os ajudaria a socializar e a desenvolver o seu potencial de liderança, disse Illo. As raparigas continuariam a poder fazer as leituras durante a missa." Não é especial? As raparigas vão poder ler em voz alta.

A curandeira mexicana que defuma o Papa: dádivas e bênçãos de fontes ainda não reconhecidas

Isto não vai resultar, porque demasiadas/os católicas/os despertaram para o facto de que elas/es são a Igreja. As mulheres, especialmente, sabem que as coisas têm de mudar, porque são elas que estão lá fora a fazer o verdadeiro trabalho, a manter as coisas unidas e a apanhar os cacos, à medida que o número de homens ordenados diminui e a hierarquia se esforça por encontrar homens para ficarem no comando. Tudo isto tem de mudar. A opção pelos pobres não tem grande significado sem o reconhecimento de que as mulheres são as mais pobres dos pobres, as que carregam um fardo tremendo, sobre cujos ombros assenta todo o edifício. Não se pode ter uma agenda progressista sem reconhecer que as suas responsabilidades lhes conferem uma autoridade espiritual própria. Já é mais do que tempo dos prelados reconhecerem o saber das mulheres, a autoridade das mulheres, os direitos das mulheres.

Max Dashu

Fonte do texto original e imagens


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Legado de Carol P. Christ: Podemos celebrar a escuridão? Podemos dormir?

 Deuses do Céu e do Sol suplantando as Deusas da Terra... valorização da Luz e desvalorização da Escuridão... Céu suplantando a terra, ascensão dos Deuses do Céu e diminuição das Deusas da Terra...

"Segundo Marija Gimbutas, a religião da Velha Europa celebrava a Deusa como o poder do nascimento, da morte e da regeneração de toda a vida. Os povos agrícolas compreendem que as sementes devem ser mantidas num local frio e escuro durante o inverno para que possam germinar quando forem plantadas na primavera. As pessoas que trabalham arduamente durante os longos dias que começam na primavera, atingem o seu auge em meados do verão e continuam até ao outono, estão gratas pelos tempos sombrios do ano em que podem descansar os seus ossos cansados nas longas noites de inverno. As longas noites de inverno são uma altura para sonhar, uma altura em que as pessoas se reúnem à volta do fogo da lareira para partilhar canções e histórias que expressam a sua compreensão do significado dos ciclos da vida.

Os indo-europeus não eram um povo agrícola. Pastores, nómadas e cavaleiros, celebravam os brilhantes Deuses do Céu, cujo poder se reflectia nas suas reluzentes armaduras e armas de bronze. Quando os povos de língua indo-europeia entraram na Europa, casaram os seus Deuses do Sol e do Céu com as Deusas Mãe da Terra dos povos que conquistaram. Tratava-se de casamentos desiguais em que o Sol era visto como superior à Terra. O casamento infeliz de Hera e Zeus reflecte este padrão, tal como as muitas violações de Deusas e ninfas registadas na mitologia grega e romana.

As Deusas mais velhas que recusavam a violação e o casamento eram relegadas para as fendas escuras da terra, que eram vistas como a entrada para o submundo. Estas deusas "ctónicas" emergiam das profundezas da terra em fúria, causando morte e destruição. Para os antigos europeus, as serpentes que emergiam das fendas das rochas na primavera eram prenúncios de renovação e regeneração. Tal como as sementes, dormiam num local frio e escuro durante o inverno, mas emergiam na primavera para despir a pele e pôr os ovos. O submundo era entendido como um lugar de transformação - e não como se tornaria mais tarde, um lugar de morte e destruição. A serpente era um símbolo de regeneração, não um símbolo do mal.

Segundo Marija Gimbutas, o branco era a cor da morte na Velha Europa, enquanto o preto era a cor da transformação e da renovação da vida. Os antigos europeus entendiam que a vida era cíclica. Tudo morreria, mas a vida renasceria com a mesma certeza. Foram os indo-europeus que nos ensinaram que a morte é um fim a temer. E foram eles que nos ensinaram que a luz deve ser reverenciada e a escuridão deve ser evitada a todo o custo. Foram eles que desenvolveram o binário claro-escuro, em que o branco é positivo e o preto é negativo. Os indo-europeus entraram na Índia e na Europa. A noção de iluminação encontrada no hinduísmo e no budismo é um legado do binário claro-escuro dos indo-europeus. Os indo-europeus eram de pele mais clara do que os povos que conquistaram: assim, o binário claro-escuro podia ser utilizado para justificar o domínio dos guerreiros e reis de pele mais clara.

O binómio luz-escuridão está presente no enfoque da Nova Era na luz e no amor. Não há nada de "novo" nisso! Aqueles que seguem caminhos espirituais baseados na Terra afirmam frequentemente que celebram a escuridão igualmente com a luz. Mas será que o fazemos? Ou será que ainda estamos presos à glorificação indo-europeia do branco e da luz? Celebramos o dia mais longo no solstício de verão e a noite mais longa no meio do inverno. E, no entanto, há uma diferença. No meio do inverno, regozijamo-nos com "o regresso da luz". Não existe uma celebração paralela do "regresso das trevas" no solstício de verão. Pelo contrário, parece que celebramos a luz tanto no solstício de verão como no meio do inverno.

O que significaria abraçar e celebrar a escuridão tanto quanto a luz? Se nos permitíssemos dormir durante as noites mais longas, que sonhos poderiam surgir? Poderíamos reaprender que o ciclo da vida é feito de três em três: nascimento, morte e regeneração? Não em dois: o bem e o mal, a vida e a morte, o preto e o branco, a escuridão e a luz?

Poderíamos começar por ter "uma boa noite de sono" nestas longas noites de inverno. Penso que o nosso corpo pode começar a mostrar-nos e a dizer-nos que a escuridão é realmente tão importante como a luz."

 Original

Fontes das imagens:

1 - https://olhardigital.com.br

2 - https://www.correiodoporto.pt


sábado, 7 de outubro de 2023

Reconsiderando o Essencialismo - Carol P. Christ

 

Na minha aula de Ecofeminismo temos estado a discutir o essencialismo porque algumas feministas alegam que outras feministas, particularmente as ecofeministas e as feministas da Deusa, são "essencialistas". Argumentam que as visões essencialistas reforçam os estereótipos tradicionais, incluindo aqueles que designam os homens como racionais e as mulheres como emocionais. Também eu considero o essencialismo problemático, mas não concordo que o feminismo da Deusa e o ecofeminismo sejam intrinsecamente essencialistas.

As feministas da Deusa e as ecofeministas criticam o dualismo clássico: as tradições de pensamento que valorizam a razão em detrimento da emoção e do sentimento, o homem em detrimento da mulher, o homem em detrimento da natureza. Defendemos que a tradição racional ocidental lançou as sementes da crise ambiental quando separou o "homem" da "natureza".

As feministas da Deusa e as ecofeministas afirmam as ligações entre as mulheres e a natureza numa visão do mundo ambiental que reconhece a interligação de todos os seres na teia da vida.

Esta visão tem sido criticada como essencialista. Será que é?

O essencialismo é o ponto de vista segundo o qual "a essência precede a existência". As e os essencialistas (que são platonistas ou cripto-platonistas) dizem que a "ideia" ou "qualidades essenciais" de uma coisa (uma mesa, um cavalo, uma mulher ou um homem) precede a "existência" de qualquer indivíduo no grupo a que pertence; estas qualidades são universalmente - sempre e em todo o lado - expressas pelos membros do grupo.

As feministas da Deusa e as ecofeministas têm sido lidas como dizendo que é da natureza dos homens estarem separados da natureza e que é da natureza das mulheres estarem ligadas à natureza. O que estávamos realmente a dizer era algo mais subtil: que os homens, especialmente os dominantes e poderosos, imaginam que estão separados da natureza; e que as mulheres, que foram identificadas com a natureza, têm mais probabilidades do que os homens de reconhecer a ligação humana à natureza.

As feministas da Deusa e as ecofeministas também disseram que as emoções e as relações são valiosas. Defendemos que a racionalidade foi incorretamente definida para excluir os sentimentos. Sugerimos que os sentimentos em relação aos seres humanos, aos animais e a toda a natureza deveriam inspirar as nossas visões do mundo e a nossa ética. Por vezes, temos falado de uma forma de pensar que inclui os sentimentos como sendo mais suscetível de ser praticada pelas mulheres.

As feministas da Deusa e algumas ecofeministas argumentaram que as mulheres precisam da Deusa como uma imagem positiva do poder feminino e sugeriram que a imagem da Mãe Terra fosse incluída juntamente com outras imagens.

Ainda operando dentro de dualismos binários, os críticos leem as feministas da Deusa e as ecofeministas como repetindo a "velha história" de que os homens são racionais e as mulheres não. Não conseguem ver que as feministas da Deusa e as ecofeministas estão a apelar a uma reintegração da razão e da emoção, da mente e do corpo, da humanidade e da natureza - e que encontramos "inteligência" na natureza. Embora muitas de nós queiramos celebrar os poderes do corpo feminino e os valores positivos associados à maternidade, poucas de nós argumentaram que as mulheres são apenas corpos ou que devem ser restringidas a papéis de cuidadoras.

A maioria das feministas da Deusa e das ecofeministas rejeita os dualismos binários que caracterizam o pensamento essencialista - mesmo quando a situação se inverte para beneficiar as mulheres. Por isso, ficamos perplexas ao sermos classificadas como essencialistas. Tal como outras, tive de recorrer ao dicionário para perceber a acusação que estava a ser feita.

Não creio que existam "diferenças essenciais" entre mulheres e homens ou entre machos e fêmeas. Pode haver algumas pequenas diferenças entre os que têm ADN masculino e os que têm ADN feminino. A testosterona tem sido associada a comportamentos ligeiramente mais agressivos do que os produzidos pelo estrogénio. Estas diferenças são estatísticas, mas não são verdadeiras para todos os indivíduos. Os corpos masculinos e femininos são diferentes, mas também o são os corpos pequenos e os corpos altos.

No entanto, não considero que estas diferenças criem uma "diferença essencial" entre mulheres e homens. Uma "diferença essencial" é aquela que determina inevitavelmente a forma como vivemos e reagimos ao mundo. Estudos sobre culturas tradicionais e matriarcais sugerem que as culturas podem sobrepor-se a quaisquer tendências que se encontrem na nossa constituição genética. Os homens não têm de ser agressivos ou violentos - podem ser tão carinhosos e generosos como as suas próprias mães. Na natureza não-humana também há machos carinhosos: alguns pássaros machos sentam-se em cima dos ovos; os machos bonobos não são tão agressivos como os machos chimpanzés.

Embora pense que a crítica anti-essencialista (geral) do ecofeminismo e do feminismo da Deusa está errada, desconfio de termos como "o feminino", "o divino feminino" e o "sagrado feminino" que são amplamente utilizados no pensamento da nova era e em algumas partes do movimento de espiritualidade das mulheres. Suspeito que estes termos são escolhidos para evitar o "afrontamento" aos sistemas de dominação masculina provocado pela palavra "f" (feminista) e pela palavra "G" (Deusa).

O "feminino" está associado a um conjunto de qualidades, muitas vezes não claramente definido, que inclui "mais emocional e intuitivo, mais amoroso e carinhoso". "O masculino", também muitas vezes sem uma definição clara, é entendido como "mais racional, assertivo e, por vezes, agressivo". A maioria dos que usam estes termos reconhecem uma dívida para com Carl Jung.

Jung definiu "o masculino" como racional e consciente e "o feminino" como inconsciente. Jung tinha um grande respeito pelo inconsciente e acreditava que a cultura ocidental tinha desvalorizado o "feminino". No entanto, isso não faz com que o seu pensamento seja feminista. Jung sentia-se pessoalmente desconfortável com as mulheres que entravam em discussões racionais com ele ou com outros homens. Ele e os seus seguidores chamavam a essas mulheres "animus ridden" (dominadas pelo animus), um termo de código para "não femininas".

A noção de que "todas e todos nós temos os nossos lados masculino e feminino" não resolve os problemas inerentes a estes termos. O facto de Jung e os seus seguidores poderem falar de mulheres fortes como estando cheias de animus sugere que as suas teorias eram inerentemente patriarcais. Quando identificou o feminino com o inconsciente, Jung estava a reafirmar (embora talvez de uma forma mais palatável) a visão tradicional de que as mulheres são menos racionais do que os homens.

Sou uma mulher altamente racional e altamente emocional. (Tenho o meu Sol em Sagitário e a minha Lua em Caranguejo.) Não vejo a minha mente racional como o meu "lado masculino". Fazê-lo seria reconhecer que é "pouco feminino" ser racional. A minha mente é tão minha como as minhas emoções. E ambas fazem parte do meu ser feminino. Da mesma forma, não gostaria de dizer a um homem carinhoso que ele é "feminino"; isso sugeriria que cuidar não é "masculino".

Há outros problemas. Jung via as Deusas como reflectindo o inconsciente e os Deuses a consciência racional. O seu seguidor Erich Neumann afirmou que era necessário que as culturas da Deusa fossem derrubadas para que o indivíduo racional pudesse emergir.

Penso que toda esta forma de pensar sobre qualidades e comportamentos "masculinos" e "femininos" é essencialista; e concordo que o pensamento essencialista deve ser rejeitado pelas feministas.

Ao mesmo tempo, penso que é importante elevar as qualidades que têm sido associadas ao feminino, de modo a provocar um repensar dos dualismos que moldaram as culturas ocidentais (e outras) - em detrimento das mulheres e das pessoas consideradas "outras" pelo "homem racional". Os símbolos da Deusa e da Mãe Terra podem ter um "poder metafórico" para alterar estereótipos familiares, transformando a forma como pensamos o mundo.

Também precisamos de afirmar que todos os indivíduos são inteligentes (sendo a racionalidade apenas uma parte disso) e que os indivíduos têm a capacidade de captar os sentimentos das outras pessoas e de se preocuparem com elas. Isto aplica-se aos seres humanos do sexo feminino e masculino, bem como a todos os outros indivíduos na teia da vida neste planeta e no universo como um todo.

A filosofia do processo afirma que "sentir e sentir os sentimentos dos outros" é fundamental em toda a vida: humana, animal, celular, atómica e divina. Nesta perspetiva, podemos ver que, quando divorciou a racionalidade do sentimento e designou as mulheres e toda uma série de outras pessoas como deficientes em termos de racionalidade, a filosofia ocidental deu uma volta enorme e errada. Esta viragem errada tem sido usada para justificar grandes injustiças e ameaça o futuro da vida nesta terra. As feministas da Deusa e as ecofeministas estão entre aqueles que veem isto claramente.

 Publicação original

 Imagens: Creta, Junho 2023

 

 

 

sábado, 2 de setembro de 2023

Os Amores da Senhora do Labirinto: Ariadne, Poderosa Deusa Minoica

No Mito do Minotauro, se não fossem as intervenções da humilde princesa Ariadne, Teseu - o herói grego - não teria tido qualquer hipótese. Embora muitas vezes retratada como uma simples donzela, a verdade é que dar apoio a um protagonista era a menor das suas qualidades. Proveniente dos céus, as origens de Ariadne acenam-nos a partir da névoa primordial da Creta minoica da Idade do Bronze, onde era a deusa-mãe dominante no panteão minoico - a importantíssima deusa da fertilidade que se crê ter respondido a títulos como deusa da terra, tecelã da vida e senhora do labirinto.

Ariadne Deusa minoica da fertilidade

Com o destino dos mortais nas suas mãos, Ariadne era considerada uma deusa brilhante, muitas vezes comparada a Deméter - cujas origens celestes também eram de Creta. De certa forma, Ariadne é análoga tanto à deusa das colheitas como à sua filha Perséfone - rainha do submundo. Antes do patriarcado, o papel da deusa-mãe era primordial - nas sociedades agrícolas, a religião estava centrada na fertilidade e tudo estava centrado na religião. Como a Creta minoica era uma sociedade matrilinear em que as mulheres levavam uma vida independente, como todas as deusas do panteão minoico, Ariadne governava sozinha, sem um consorte masculino. Perto do fim da civilização minoica - com a influência dos micénicos a ser sentida - Ariadne começou a ser acompanhada por um jovem consorte masculino. A sua insígnia, o labirinto - uma estrutura quadrada ou circular com múltiplos circuitos em espiral até ao centro e vice-versa - figura de forma proeminente na sua mitologia e acredita-se que tenha sido um local de iniciação onde as e os mortais passavam de um reino para outro, com o deus-touro - o Minotauro (semelhante a Hades) - a ocupar o seu centro mais profundo e escuro.

Micénicos Patriarcais

O declínio da civilização minoica foi acompanhado pela expansão dos micénicos - como é frequentemente o caso quando uma cultura se sobrepõe a outra - quando os micénicos ultrapassaram os minoicos em cerca de 1400 a.C., reformularam os mitos minoicos; os deuses invasores casaram com as deusas indígenas, substituindo os elementos matricêntricos por elementos patriarcais. Ao reescreverem a mitologia, os gregos micénicos provocaram a supressão sistémica do culto das deusas, o que encorajaria a difamação generalizada das mulheres. Mas a reformulação patriarcal dos contos não se ficou pelos micénicos, prosseguiu a bom ritmo nas culturas grega e romana. Ao rever os mitos que rodeiam Ariadne, o objetivo deste artigo é expor os tropos patriarcais que têm acompanhado os seus muitos disfarces durante milhares de anos.


Pasífae concebe o Minotauro

Ariadne é mais conhecida por um mito da era micénica em que a importantíssima deusa-mãe é reduzida a uma despretensiosa princesa que oferece ajuda ao invasor Teseu, o lendário primeiro rei herói de Atenas. A história começa quando Poseidon - deus da terra e do mar - oferece um touro branco raro ao rei Minos de Creta, na expetativa de que este seja sacrificado em sua honra. Sempre ávido de ter o touro premiado como reprodutor na sua manada, Minos tenta enganar o deus, sacrificando um touro menor em honra de Poseidon. Como tudo vê e tudo sabe, Poseidon, enfurecido, lança um feitiço sobre a rainha de Minos, Pasífae, para que ela se apaixone perdidamente pelo impressionante touro branco como a neve. O feitiço resultou. De facto, o desejo de Pasífae pelo touro era tão forte que ela pediu a ajuda do famoso artesão Dédalo para criar uma vaca de madeira com uma cobertura de pele de vaca para poder copular com o animal. O produto da sua união foi o Minotauro, um monstro que era um cruzamento entre um humano e um touro. Sem cuidados e sem amor, o Minotauro foi confinado ao labirinto - que foi, mais uma vez, projetado pelo perene inventor.

A história que conduziu à malevolência do Minotauro para com os atenienses é ilustrativa de uma época de grande tensão entre a Creta minoica e Atenas; quando Creta era a potência do Egeu e Atenas um mero estado incipiente. Reza a lenda que o filho do rei Minos, Andrógenes, foi traiçoeiramente assassinado pelos atenienses por ter ficado com todos os prémios dos Jogos Pan-atenaicos. Como represália pela sua morte, Atenas tinha de enviar todos os anos sete rapazes e sete raparigas como tributo a Creta. Essencialmente reféns, os jovens atenienses desarmados eram colocados no labirinto, onde ou se perdiam irremediavelmente nas suas intermináveis passagens sinuosas ou eram devorados pelo Minotauro devorador de homens ali confinado. Este pesado tributo prolongou-se durante anos, até que Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, se ofereceu para ser uma das sete vítimas masculinas. 


Ariadne e Teseu

Finalmente, Ariadne entra no mito. Filha de Minos e Pasífae e, portanto, irmã do Minotauro, ela fica imediatamente apaixonada pelo herói ateniense e troca a sua família pelo estrangeiro de Atenas. Ariadne arma então Teseu com uma espada para que este possa matar o seu irmão, o Minotauro. Depois, para escapar ao complexo labirinto de Dédalo, dá-lhe um novelo de fio, aconselhando-o engenhosamente a atar uma ponta à entrada e a deixar o fio desenrolar-se à medida que se vai aprofundando nos caminhos serpenteantes do labirinto. Sempre a estrela principal, Teseu consegue destruir o Minotauro e segue o fio até à entrada, onde Ariadne, apaixonada por ele, o espera. A partir daí, partem juntos para Atenas, mas antes de lá chegarem fazem um desvio pela ilha de Dia (Naxos), onde Teseu decide abandonar Ariadne.

Muitos foram os que se pronunciaram sobre as possíveis razões que levaram o herói grego a abandonar a sua salvadora minóica. Tanto Hesíodo (cerca de 750 a.C.-650 a.C.) como Plutarco (50 a.C.-120 a.C.) inventam que Teseu deixou Ariadne porque estava apaixonado por Egle, a deusa da boa saúde. Na peça perdida de Eurípides (480 a.C.-406 a.C.), Teseu, o tema sugere que Teseu - tal como Eneias que abandona Dido na Eneida - deixou a princesa minoica por provocação da própria Atena (a deusa padroeira de Atenas), porque tinha uma carreira heroica pela frente e a exótica Ariadne poderia ser uma distração. Na mesma linha, o autor e académico latino Higino (64 a.C.-17 d.C.) sugere que Teseu pensava que Ariadne lhe traria desgraça em Atenas - presumivelmente por ser estrangeira. A noção de identidade grega começou a tomar forma com o advento da conquista e/ou colonização em terras estrangeiras, a partir do século VIII a.C., quando começaram a definir-se - xenofobicamente - em relação a todos os outros povos.


Ariadne e Medeia

Nesta altura, a história começa a assemelhar-se a um outro mito da era micénica, em que a falta de paridade entre o casal é uma caraterística marcante. Em Jasão e os Argonautas, Medeia - outra deusa e princesa de uma terra estrangeira (Cólquida - atual Geórgia) - também age contra os seus interesses, abandonando a sua família real pelo herói grego Jasão, que acaba por a abandoná-la. Para se apoderar do Tosão de Ouro, Medeia ajuda Jasão em todas as etapas do seu caminho, mesmo à custa do seu pai e do assassínio do seu irmão. Embora as suas histórias sejam diferentes em substância, ambas as mulheres partilham a exploração como tema recorrente, quando são postas de lado depois de terem esgotado a sua utilidade para os heróis gregos hegemónicos. Demonstrando a falta de paridade entre os gregos e as suas conquistas, as mulheres - frequentemente os despojos de guerra - representam os subjugados das terras vencidas, enquanto Teseu e Jasão desempenham o papel de invasores descuidados - símbolo dos gregos micénicos colonizadores - que pilham os recursos dos vencidos enquanto fogem com os seus bens mais valiosos. O facto de serem vencidas não é, no entanto, a única semelhança entre as duas mulheres.

Ao contrário da sua homóloga da Cólquida, Ariadne não é conhecida pela vingança, mas numa passagem sobrevivente atribuída à Ariadne desprezada de Teseu, de Eurípides, encontra-se a frase: "e, no entanto, contarei uma história digna de ser censurada..." O poeta helenístico Catulo (84 a.C.-54 a.C.) desenvolve este tema no seu poema épico 64, onde, inspirando-se em Medeia, Ariadne apela à vingança contra o seu herói grego. Antes de partir para Creta, Teseu tinha prometido ao pai que, se a sua missão fosse bem sucedida, içaria uma vela branca em vez da vela negra que, nos anos anteriores, simbolizava os catorze jovens atenienses sacrificados. Por causa da maldição de Ariadne, quando Teseu deixa a princesa perturbada, esquece-se de içar a vela branca. Ao ver a vela negra, Egeu - acreditando que o seu filho estava morto - atira-se de cabeça para o mar, que passaria a chamar-se em sua honra: o Egeu. Tal como os deuses na Medeia de Eurípides ajudam Medeia na sua busca de vingança, também Catulo conta como Júpiter vem em defesa de Ariadne. No entanto, Ariadne não é boa em questões de vingança. Quando Medeia se vingou de Jasão, destruiu a sua noiva, a sua descendência e o seu futuro, ao passo que o ato de vingança de Ariadne faria de Teseu rei de Atenas.

Para além das semelhanças entre as duas mulheres desprezadas, como netas que são do deus Sol, Hélio, ambas possuem poderes sobrenaturais e, como tal, representam também divindades vencidas - há quem sugira que Medeia pode também ter sido uma deusa pré-patriarcal. No seu livro seminal The Masks of God: The Occidental Mythology, Joseph Campbell afirma que: "Consiste simplesmente em chamar demónios aos deuses dos outros povos, alargar a hegemonia dos seus próprios homólogos ao universo e depois inventar todo o tipo de grandes e pequenos mitos secundários... para validar não só uma nova ordem social mas também uma nova psicologia". No fundo, o Mito do Minotauro é sobre um monstro cretense, mais parecido com um touro do que com um humano, que devora os jovens atenienses. Não se perde de vista o facto de os touros na Creta minoica serem não só objectos de veneração, como também, muito possivelmente, utilizados nos seus rituais sagrados. No entanto, denegrir um animal sagrado era apenas parte do seu descrédito. Mais poderosa ainda foi a marginalização de Ariadne, transformando a grande deusa mãe minoica numa donzela apaixonada que é subserviente ao herói grego Teseu. Reduzida a um mero canal para o sucesso de Teseu, a verdade é que, se não fosse a ajuda de Ariadne, Teseu seria um mero pós-escrito - nem rei nem herói. No entanto, Teseu é a estrela desta história - Ariadne é apenas uma pequena atriz. Depois de renunciar à sua família e à sua pátria, Teseu abandona-a - enquanto ela dorme - deixando-a a morrer na ilha estranha e desolada. Em algumas versões, Ariadne, de coração partido, suicida-se.


Consorte de Dionísio

Nesta altura, entra em cena o folião e bon vivant, Dionísio - deus das vindimas. De acordo com uma tradição, Teseu foi obrigado a deixar Ariadne devido a ameaças feitas pelo deus Dionísio - que queria Ariadne para si. Deixada sem grande escolha, Ariadne aceita. Por outras palavras, uma Ariadne adormecida assemelha-se a uma Perséfone inconsciente a colher flores enquanto é levada pelo senhor do submundo - o seu próprio tio Hades - para se casar no abismo. Visto desta forma, o casamento é uma violação, que é precisamente como o historiador Pausânias (115 d.C. - 180 d.C.) expressa o casamento de Dionísio e Ariadne: "Ariadne adormecida, Teseu faz-se ao mar e Dionísio chega para violar Ariadne". Aqui, Ariadne é como todas as raparigas gregas, cujos casamentos - arranjados pelos pais com estranhos, normalmente com o dobro ou o triplo da sua idade - devem ter sido sentidos como uma espécie de violação. Pensa-se que tenha tido origem na Trácia ou na Ásia Menor, Dionísio é uma divindade estrangeira que se crê estar entre um dos mais antigos deuses ctónicos (subterrâneos) conhecidos pelo seu papel na fertilidade.

Ariadne, que já não é uma princesa minoica, é de novo uma deusa da fertilidade, cujo sono - sugestivo do período de dormência da terra - é análogo ao de Perséfone, que passa alguns meses por ano no subsolo. Ao contrário da história de amor entre o herói grego e a sua ajudante apaixonada, a união entre Ariadne e Dionísio consolida-se todos os anos. Além disso, Dionísio oferece a Ariadne um presente dos deuses: uma coroa de ouro, outrora de Afrodite - forjada por Hefesto - com pedras preciosas vermelhas em forma de rosas, seria eventualmente colocada entre as estrelas, tornando-se a Corona Borealis (Coroa de Luzes) no céu noturno.


A morte de Ariadne

Mas há uma reviravolta na história. Na Odisseia de Homero, Ártemis - a deusa virgem da caça e da castidade, conhecida por castigar brutalmente as mulheres rebeldes - mata uma Ariadne mortal pela sua infidelidade a Dionísio, que era, evidentemente, o seu marido desde o início. Na Odisseia, a frase é interpretada como "na denúncia de Dionísio", aparentemente Dionísio estava aborrecido por Ariadne ter profanado a sua gruta com o seu amor por Teseu. Não importa que o próprio Dionísio fosse um notório sedutor. Patriarcal até ao âmago, a Odisseia - talvez originalmente composta na tradição oral já na Idade Média grega (entre 1200-850 a.C.) - é, no fundo, uma história sobre as aventuras de Odisseu e as suas numerosas infidelidades nos dez anos que demora o seu de regresso, enquanto em casa anseia por ele a sua mulher, Penélope, que se contenta em tecer o tempo. A infidelidade de Ariadne, no entanto, pode ser explicada no contexto da fertilidade e ocorre durante a época pouco fértil do ano, quando a semente do deus da fertilidade fica adormecida. Nessa altura, o casal da fertilidade separa-se e a deusa vai-se embora - talvez remetendo para uma era anterior ao casamento, quando as mulheres tinham mais controlo sobre a sua vida reprodutiva. Finalmente, Ariadne dorme ou morre durante o período de dormência. Afinal de contas, para uma deusa da fertilidade, dormir e morrer são praticamente a mesma coisa.

Mas não se enganem, ao contrário da sua anterior manifestação no panteão minoico, Ariadne é agora apenas a esposa dum deus da fertilidade. Abundam os mitos sobre as façanhas e aventuras de Dionísio sem Ariadne, mas quando Ariadne é mencionada nesses mitos, é apenas em relação a Dionísio. Quando Dionísio volta para ela, o seu casamento é sacralizado todos os anos no meio de celebrações orgiásticas - Ariadne renasce e o planeta volta a ser fecundo. De acordo com o livro seminal de Walter Burkert, Greek Religion, a celebração do casamento sagrado entre Dionísio e Ariadne chamava-se Anthesteria e comemorava o facto de o rei Teseu ter oferecido a sua mulher, Ariadne, ao deus. Além disso, havia duas festas de Ariadne na ilha de Naxos, uma alegre e outra lúgubre. "O casamento com Dionísio situa-se na sombra da morte", afirma Burkert. Como em todas as festas da fertilidade, a morte - um aspeto da regeneração da vida - está implicada na folia.

A morte volta a acenar-nos em outro mito associado ao casal da fertilidade, quando Dionísio se encontra em guerra com o seu némesis - Perseu, rei de Argo - e com os Argivos. Perseu, recorde-se, ficou famoso por ter decapitado a Medusa - enquanto ela dormia. Uma das três irmãs Górgonas, o olhar de Medusa transformava os homens em pedra. Há quem afirme que Medusa pode ter sido uma deusa pré-patriarcal, o que poderia ser razão suficiente para a sua morte pelo patriarca. De acordo com o poeta épico Nonos (cerca de 400-500 d.C.), na sua Dionisíaca, uma Ariadne "frágil" e evidentemente mortal é transformada em pedra quando Perseu, "furioso", a atinge por engano numa batalha com uma lança. Há, no entanto, inconsistências nos mitos. Ao longo destes mitos posteriores, Ariadne é repetidamente referida como mortal, apesar de, noutra tradição, Dionísio ter descido ao submundo para a recuperar e levá-la consigo para o Olimpo como sua esposa imortal. No entanto, ela prova ser mais mortal do que imortal quando, de acordo com Pausânias, a deusa é colocada para descansar numa "urna de barro".

Finalmente, em Dionisíaca, Nonos revive a sua sombra chorosa: "Dioniso, esqueceste a tua antiga noiva: desejas Aura e não te importas com Ariadne. Ó meu Teseu, a quem o vento amargo roubou! Ó meu Teseu, que Fedra (irmã de Ariadne) arranjou para marido! Suponho que estava destinado que um marido perjuro sempre fugisse de mim..... Ai de mim, se não tivesse um marido mortal, que morresse em breve; então poderia ter-me armado contra o apaixonado Dionísio..."

Reduzida a um fantasma apaixonado, Ariadne lamenta o seu destino às mãos de dois homens indignos. Nem mesmo o casamento miseravelmente infeliz da sua irmã mais nova, Fedra, com Teseu, é suficiente para aliviar a sua dor. Reduzida a uma mulher cuja única fonte de felicidade é representada por um homem, a sombra de Ariadne em 400-500 d.C. - quando Nonos escreveu estes versos - é muito diferente da grande deusa-mãe independente que outrora fora, mais de dois mil anos antes.


Senhora do Labirinto

Honrada numa religião do solo que encorajava não só a reverência pela natureza mas também o respeito pelas mulheres, Ariadne foi subjugada por uma sociedade patriarcal que relegava a mulher enquanto exaltava o homem. Com a sua identidade rebaixada, foi usada como contraste para os homens que iria servir. Ariadne, porém, não foi a única grande deusa-mãe assim subjugada. Há quem acredite que, sob as formas arquetípicas da carnal Afrodite, da ciumenta Hera e até da patriarcal Atena, se encontram vestígios da tradição da grande deusa-mãe de onde surgiram. Muitos estudiosos têm-se debruçado sobre a tese de que, por detrás do grande panteão olímpico - tal como imaginado por Hesíodo e Homero -, se encontra uma base das religiões das grandes deusas mais antigas. Se for lido com atenção, este facto pode ser evidente na mitologia de Ariadne, quando, de vez em quando, se vislumbra a sua manifestação primeira, tal como foi imaginada na névoa primordial da pré-história.


Em espirais que imitavam o seu labirinto, as mulheres rodopiavam, dançando ritmicamente. Os seus movimentos foram concebidos para estimular a fecundidade, à medida que gesticulavam e giravam em harmonia com o movimento do próprio planeta. No centro do círculo estava a sacerdotisa de Ariadne - a sua encarnação física na Terra. Embebida em pompa, ela era a deusa - vestida com camadas de ouro e um traje caleidoscópico que só uma divindade poderia usar. Concebidos para incluir os adeptos num ambiente íntimo com as suas divindades, os templos minoicos eram tão não hierárquicos como a sua sociedade. Mas será que os festivais da fertilidade se realizavam nos templos ou ao ar livre? As mulheres entoavam cânticos enquanto dançavam à volta da personagem de Ariadne? Os homens participavam na cerimónia? Só podemos adivinhar. Mesmo num dia de céu limpo, a visão do passado ao longo de várias épocas é nebulosa. Uma coisa é certa: no domínio primordial e indispensável da fertilidade, eram as mulheres que mandavam.

 "Conforme versão publicada em outubro de 2020 Ancient Origins Premium."

Referências

Brindel, J. 1980. Ariadne: A Novel of Ancient Crete. St. Martin’s Press.

Burkert, W. 1985. Greek Religion. Harvard University Press.

Eisner, R. 1977. Some Anomalies in the Myth of Ariadne. The Classical World. Vol. 71, No. 3.

Herberger, C. 1972. The Thread of Ariadne. Philosophical Library.

Perry, L. 2013. Ariadne’s Thread. Moon Books.

Rigoglioso, M. 2010. Virgin Goddesses of Antiquity. Palgrave Macmillan.

Webster, T. 1966. The Myth of Ariadne from Homer to Catullus. Greece & Rome. Vol. 13, No. 1.

Fonte do texto 

Fontes das imagens:

Imagem 1 - https://www.goddessariadne.org/page-5

Imagem 2 - Pasífae por Júlio Romano 

Imagem 3 - https://jdaviesreazor.com/2008/12/10/ariadne-mistress-labyrinth/

Imagem 4 - Dionysos and Ariadne. Detail from the side A of an Attic red-figure calyx-krater. (ca. 400-375 BC). From Thebes.

Imagem 5 - Ariadne asleep at Hypnos's side. Detail of ancient fresco in Pompeii

Imagem 6 - rocha do Minotauro na gruta de Skotino, Creta, que para algumas pessoas está na origem da criação do mito do Minotauro. (Foto da autora do blogue, 2023

Imagem 7 - fresco do palácio de Cnossos (foto da autora do blogue 2015)