Diana Vandenberg https://www.boekwinkeltjes.nl/b/103915124/De-hermetische-schilderkunst-van-Diana/ |
O próprio enunciado do problema sugere-me uma primeira resposta.
É significativo que eu coloque este problema. Um homem não teria a ideia de
escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade.
Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: "Sou uma
mulher". Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra
afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado
sexo: que ele seja homem é natural. É de maneira formal, nos registos dos cartórios
ou nas declarações de identidade que as rubricas, masculino, feminino, aparecem
como simétricas. A relação dos dois sexos não é a das duas electricidades, de
dois polos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de
dizermos "os homens" para designar os seres humanos, tendo-se
assimilado ao sentido singular do vocábulo vir
o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que
toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade.
Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstractas, ouvir os homens dizerem-me: "Você pensa assim porque é uma mulher". Mas eu sabia que a minha única defesa era responder: "penso-o porque é verdadeiro", eliminando assim a minha subjectividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar: "E você pensa o contrário porque é um homem", pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está no seu direito sendo homem, é a mulher que está errada. Praticamente, assim como para os Antigos havia uma vertical absoluta em relação à qual se definia a oblíqua, há um tipo humano absoluto que é o masculino. A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjectividade; diz-se de bom grado que ela pensa com as suas glândulas. O homem esquece soberbamente que a sua anatomia também comporta hormonas e testículos. Encara o corpo como uma relação directa e normal com o mundo que acredita apreender na sua objectividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão. "A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades", diz Aristóteles. "Devemos considerar o carácter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural". E Sto. Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser "ocasional". É o que simboliza a história do Génese em que Eva aparece como extraída, segundo Bossuet, de um "osso supranumerário" de Adão. A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autónomo. "A mulher, o ser relativo...", diz Michelet. E é por isso que Benda afirma em Rapport d'Uriel: "O corpo do homem tem um sentido em si, abstracção feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho... O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem". Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o "sexo" para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.
A categoria do Outro é tão original quanto a própria
consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias,
encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro. A divisão não foi estabelecida inicialmente sob
o signo da divisão dos sexos, não depende de nenhum dado
empírico: é o que se conclui, entre outros, dos trabalhos de Granet sobre o pensamento chinês de Dumézil sobre as índias e Roma. Nos pares Varuna-Mitra, Urano-Zeus, Sol-Lua, Dia-Noite,
nenhum elemento feminino se acha implicado a princípio; nem
tampouco na oposição do Bem ao Mal, dos princípios fastos e nefastos,
da direita e da esquerda, de Deus e Lúcifer; a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano. Nenhuma
coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si. Basta três viajantes reunidos por
acaso num mesmo compartimento para que todos os demais viajantes se tornem "os outros" vagamente hostis. Para os
habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo
lugarejo são "outros"' e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados
"estrangeiros". Os judeus são "outros" para o antissemita, os negros
para os racistas norte-americanos, os indígenas para os colonos, os
proletários para as classes dos proprietários."
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2018/03/beauvoir-o-segundo-sexo-volume-11.pdf
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