... Podemos imaginar?...
Por Carol P. Christ
Existem muitas razões para as mulheres, os escravos e os
pobres se revoltarem contra autoridades injustas em sociedades de tipo
patriarcal. Mas entretanto não devemos assumir que haja razões para a revolta
contra a dominação quando ela não existe, nem para nos revoltarmos contra
autoridades injustas em sociedades onde elas não existem.
Em resposta à minha série recente de textos sobre o
patriarcado enquanto sistema de dominação criado pela intersecção do controlo da
sexualidade feminina, com o sistema da propriedade privada e a guerra (Parte 1,
Parte 2, Parte 3), várias pessoas me perguntaram se existe alguma forma de
injustiça inerente a uma sociedade de tipo matriarcal que possa ter dado origem
à criação do patriarcado pelos homens como expressão da sua revolta.
A ideia por detrás desta questão é que se as mulheres são
dominadas pelos homens nas sociedades patriarcais, então os homens também foram
dominados pelas mulheres nas sociedades pré-patriarcais. Implícita nesta
questão está a ideia de que deve ter havido uma “boa razão” para o
desenvolvimento do patriarcado. A ideia de que na origem não houve qualquer
“boa razão” para a existência do patriarcado – caso “boa” signifique justa – é
simplesmente demasiado dolorosa para poder ser considerada por muit@s de nós.
O elo perdido nesta questão é a nossa incapacidade de
imaginarmos sociedades sem dominação.
Segundo Heidi Goettner-Abendroth, “sociedades matriarcais”
são “sociedades pacíficas” nas quais nenhum dos géneros domina o outro.
As sociedades matriarcais têm 4 características em comum:
1 1. Praticam
agricultura em pequena escala e conseguem a igualdade através da dádiva
transformada em hábito social.
2 2. São
igualitárias, matrilocais e matrilineares. Mulheres e homens são definid@s pela
sua conexão com o clã materno que possui a terra em comum.
3 3. Têm
sistemas bem desenvolvidos de obtenção de consenso nas tomadas de decisão, que
garantem que todas as opiniões sejam tidas em consideração.
4. Respeitam
princípios como o amor, o cuidado com as outras pessoas, a generosidade, os quais associam à ideia de maternidade e que ambos os géneros são ensinados a
manifestar. Veem frequentemente a Terra como a Grande Mãe.
Como seria viver numa
sociedade pacífica “matriarcal”?
Enquanto crianças, não teríamos de lutar com as nossas irmãs
e os nossos irmãos pela atenção da nossa mãe ou do nosso pai. Tanto as
raparigas como os rapazes receberiam o mesmo amor e atenção da parte das mães,
avós e ti@s. tanto as raparigas como os rapazes teriam a certeza de sempre
terem lugar no clã materno. Tanto enquanto rapaz como enquanto rapariga nunca
teríamos de nos “separar de” nem de rejeitar a nossa mãe para “fazermos a
experiência de nós enquanto indivíduos” nem para “crescermos”. Poderíamos
crescer sem necessidade de romper os laços com as pessoas que primeiro nos
amaram e cuidaram de nós.
Seríamos criad@s numa família alargada com irmãs, irmãos e
prim@s, tod@s considerad@s noss@s irmãs e irmãos. Nunca nos sentiríamos sós.
Nunca nos ensinariam a competir com as nossas irmãs e irmãos. Nunca nos
atacaríamos entre nós porque comportamentos violentos não seriam apropriados
dentro da família.
Quando chegássemos à idade de ter sexo, poderíamos ter todo o
sexo que nos apetecesse. Ser-nos-ia ensinado que sexo é algo alegre e
prazenteiro. Quando os casais já não sentissem atracção mútua, facilmente se separariam e encontrariam outras pessoas.
Não haveria razão para as famílias se preocuparem com o
interesse das crianças pelo sexo. Como todas as crianças têm uma mãe e todas as
mães têm casa no clã materno, não haveria crianças “ilegítimas”, “bastardas”,
“mulheres perdidas”, “vadias” ou prostitutas. Como o sexo seria livre, a
prostituição não faria qualquer sentido.
As crianças nascidas dessas relações teriam sempre um lar no
clã da sua família materna. As mães seriam ajudadas na educação das crianças
pelas suas irmãs e irmãos, pelas mães e avós, tias e tios. Uma jovem grávida ou
com uma criança pequena nunca seria rejeitada nem “entregue à sua sorte”.
Com tanta ajuda, as mulheres poderiam trabalhar “fora de
casa” nos campos comunitários juntamente com as suas e os seus parentes. Uma
mãe nunca ficaria “confinada” ou “fechada” com as crianças. “O problema d@s sem
nome” descrito por Betty Friedan não se poria. Mães que não se sentiriam
sozinhas, nem oprimidas, não sentiriam qualquer necessidade de “fazerem as suas
filhas e filhos pagarem” pela sua infelicidade.
Um jovem não teria a obrigação de “prover” ao sustento das crianças,
uma vez que isso seria da responsabilidade do clã materno. Um jovem
contribuiria para o seu próprio clã e ajudaria as suas irmãs e primas a cuidar
das suas crianças. Estas crianças vê-lo-iam como o seu “modelo de
masculinidade”. Os homens trabalhariam com as mães e as irmãs nos campos, em
projetos de construção ou comércio com outros clãs.
Quer fossemos rapazes ou raparigas, homens ou mulheres,
teríamos sempre a certeza de sermos amad@s, pois seríamos ensinad@s a amar e a
cuidar das outras pessoas. Não seriamos ensinad@s a competir, enganar ou
cumular para nós propri@s. Caso tivéssemos uma habilidade especial, seríamos
encorajad@s a desenvolvê-la, mas nunca a pensarmos que isso nos tornaria
superiores a qualquer outra pessoa.
Tanto enquanto rapazes como enquanto raparigas, seríamos
ensinad@s a respeitar as pessoas de idade, em particular as avós e os avôs.
Isto não significa que estas pessoas tomariam o poder sobre nós, porque os clãs
teriam sistemas democráticos bem desenvolvidos de forma a obter consensos que
permitiriam a qualquer voz ser ouvida antes da tomada de decisões importantes.
Seguramente que haveria conflitos, ciúmes e desentendimentos
em sociedades pacíficas, mas quando os conflitos ocorressem, não seriam
resolvidos pela força porque a todas as pessoas teria sido ensinado que a
partilha e a generosidade de espírito são as melhores formas de resolver
conflitos.
Sociedades pacíficas estão tão longe daquela em que vivemos e
são estranhamente tão atraentes, que muitas pessoas julgam que elas nunca
existiram. No entanto, sociedades pacíficas existiram em todos os continentes
do planeta e existem ainda hoje em dia em vários níveis entre os povos
Iroquois, os Zapotecas, os Kuna, os Shipibo, os Samoans, os Asante, os Khoisan,
os Tuaregs, os Berberes, os Kasai, os Minangkabau, os Mosuo e outros.
Não sei o que acham, mas quanto a mim, eu adoraria viver numa
sociedade assim. Se procuramos “razões para” a existência do patriarcado, não
creio que a infelicidade dos homens em tais sistemas fosse uma delas. Tanto os
rapazes como os homens são amados, honrados e altamente considerados. Eles não
têm de lutar, de ir à guerra, para se afirmarem e têm todo o sexo que querem,
portanto assumo que são extremamente felizes.
Adoro imaginar todas as pessoas da terra a viverem em
sociedades pacíficas onde os valores do amor, da partilha e da generosidade são
considerados os mais importantes. A “idade de ouro” não tem de ser uma ideia do
passado. Sonho com a possibilidade dela ser o nosso futuro.
Carol Christ
Traduzido por Luiza Frazão
http://feminismandreligion.com/2013/03/25/what-might-it-be-like-to-live-in-a-society-of-peace-can-you-imagine-by-carol-p-christ/#comment-15510