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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

SAMHAIN - CELEBRAR O FIM DUM CICLO



Este é o momento do ano em que o ciclo da vida termina, tudo o que a terra produziu já foi colhido e armazenado, o grão, os frutos, os vegetais (resta-nos a azeitona, a nós, mas está quase...!). Tudo o que resta vai agora ser cortado rente pela foice da morte da Anciã e retornar ao útero da Mãe Terra para aí ser transformado. O caldeirão simboliza esse útero da Mãe onde tudo é recriado para voltar a nascer. Na natureza, vão acontecer processos de decomposição, de putrefação, de transmutação; pétalas, folhagem, galhos secos transformar-se-ão em húmus suculento, enquanto das sementes nova vida germinará para que o ciclo recomece. O tempo circular, o tempo da Deusa.
 
Este é o momento da hibernação, quando a vida se recolhe para o interior da terra, quando a nós humanos também apetece ficar em recolhimento no interior das nossas casas, no aconchego do calor da lareira, honrando esta época de introspeção, de avaliação daquilo que na nossa vida também precisa de morrer, de ser transformado. Momento ainda de confronto com a Sombra... Quando aceitamos fluir com a Vida, com a Natureza, quando compreendemos que dela fazemos parte enquanto criações da Deusa, aprendemos a aceitar, respeitar, valorizar, honrar e celebrar o processo da morte. Sabemos que somos energia eterna, que como dizia Lavoisier, na Natureza nada se perde, tudo se transforma e que por isso também nós estamos envolvidas e envolvidos neste ciclo de morte e renascimento. Assim aquelas e aqueles que nos precederam, que continuam a viver noutra dimensão, e a quem naturalmente na nossa cultura nós recordamos e honramos neste momento do ano. 

Pessoalmente, gosto de ir ao cemitério visitar o túmulo da minha mãe, do meu pai, das minhas avós e avôs, das tias e dos tios já falecidos. Levo-lhes flores e uma prece de gratidão pela herança que me legaram. No meu altar coloco um bolo para elas e para eles, aquilo a que agora chamamos bolo dos santos, herança duma tradição muito antiga, pagã, que como tantas outras o cristianismo teve de assimilar para conseguir impor-se e dominar enquanto religião. É óbvio que elas e eles não irão comer esse bolo de uma forma física, mas a energia amorosa que foi colocada na sua confeção e na intenção desta oferenda tocará a energia que são agora, e sempre foram, e que conecta os nossos corações.

Neste festival honremos a Deusa Anciã, a Deusa Negra do Mundo de Baixo e peçamos-lhe que nos ajuda a transmutar dentro do Seu caldeirão ou na fogueira que Lhe acendemos, aquilo que não queremos mais na nossa vida. 
E depois celebremos a Vida com muita alegria!

©Maria Luiza Oliveira Frazão

terça-feira, 30 de outubro de 2012

CRISE NO PATRIARCADO



A estrutura caractereológica do homem atual (que vem perpetuando uma cultura patriarcal e autoritária desde há entre 4 a 6 mil anos) caracteriza-se por um encouraçamento contra a natureza dentro de si mesmo e contra a m
iséria social que o rodeia. Este encouraçamento do carácter está na base da solidão, do desamparo, do insaciável desejo de autoridade, do medo, da angústia mística, da miséria sexual, da rebelião impotente, assim como duma resignação artificial e patológica. Os seres humanos adotaram uma atitude hostil àquilo que dentro deles mesmos está vivo, mas de que se afastaram. A origem desta alienação não é biológica, mas social e económica e não é detetável na história humana antes do surgimento da ordem social patriarcal.

WILHEM REICH
La Función del Orgasmo
citado por Cacilda Rodrigañez Bustos, em El Assalto al Hades


Imagem:  René Magritte

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

FILHAS DO PATRIARCADO


“É precisamente na mulher que tem uma relação pobre com a mãe que o arquétipo do si mesmo primeiro se constela, naquela que tende a buscar a sua plenitude através do pai ou do homem amado. […] Uma mulher expressou isso quase como um manifesto no começo da análise:
“Eu insisto em ter o carinho dum homem. Qualquer fonte feminina me enfurece. O homem é responsável pelo universo. As mulheres  não passam dum segundo lugar. Odeio túneis, Kali, minha mãe e este corpo de mulher. O que eu quero é um homem.”

O problema é que nós, mulheres muito feridas na relação com o feminino, quase sempre temos uma persona muito eficiente, uma boa imagem pública. Crescemos como filhas dóceis do patriarcado, frequentemente intelectuais e dotadas daquilo que denominarei “egos-animus”. Lutamos por defender as virtudes e ideais estéticos a nós apresentados pelo superego patriarcal. Mas enchemo-nos de autorrejeição e de uma sensação de profunda feiura e fracasso quando não conseguimos satisfazer nem aliviar as exigências de perfeição do superego.

Uma mulher com mais de dez anos de análise junguiana disse-me: “Passei anos tentando relativizar uma coisa que nunca tive: um ego verdadeiro”. Realmente, ela tem apenas um ego-animus, e não um que seja verdadeiramente seu para se relacionar com o inconsciente e com o mundo exterior. A sua identidade baseia-se em adaptações da persona àquilo que o animus lhe diz que deve ser feito; assim, ela a um só tempo, adapta-se às projeções que lhe impingem e revolta-se contra elas. 

Consequentemente, essa mulher quase não tem o sentido do seu núcleo pessoal de identidade, do valor e do ponto de vista femininos. Isto acontece por se terem valorizado, em relação às mulheres ocidentais, virtudes que frequentemente apenas se definem pela sua relação com o masculino: a mãe e esposa fecunda e bondosa; a filha agradável, dócil e delicada; a companheira diligente, discretamente encorajadora ou brilhante.

Como tantas escritoras feministas declararam pelos tempos afora, esse modelo coletivo e o comportamento daí resultante é inadequado para a vida; nós mutilamo-nos, enfraquecemo-nos, silenciamo-nos e enfurecemo-nos, tentando comprimir os nossos espíritos dentro dele, na certa exatamente como as nossas avós deformaram os seus corpos sensíveis dentro de espartilhos, por causa dum ideal.”

Sylvia Brinton Perera, Caminho para a Iniciação Feminina, Edições Paulinas, São Paulo, 1985 (adaptado)

Imagem: Liv Tyler em "O Senhor dos Anéis" (clique sobre a imagem para uma definição de consceitos junguianos como "anima" e "animus")


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

HOJE, 11 DE OUTUBRO, PRIMEIRO DIA INTERNACIONAL DA RAPARIGA

A CÉLULA "RAPARIGA" É UM CHIP QUE PODE MUDAR A NOSSA CONSCIÊNCIA COLECTIVA

A célula “menina”, ou “rapariga”, é uma célula, ou um conjunto de células, central para a evolução da espécie humana. Essa célula existe em tod@s nós, mas entretanto os poderes em vigência compreenderam a necessidade de a suprimir, reinterpretando-a, negando o seu valor, levando-nos a tomá-la por fraqueza, reduzindo-a, erradicando-a, matando a célula “rapariga” em nós.

 Imaginemos que a rapariga é um chip no macrocosmos da consciência colectiva, e que é preciso repensar e equilibrar o futuro de tod@s nós. Imaginemos que essa célula “rapariga” é compaixão, empatia, paixão, intensidade, vulnerabilidade, sinceridade, capacidade de associação, de relacionamento, intuição.

 Compreendamos que da compaixão decorre grande sabedoria, a vulnerabilidade pode ser a nossa maior fortaleza e as emoções têm a sua lógica própria que nos leva a tomar as medidas mais certas, radicais e salvadoras. Os poderes instituídos, no entanto, sempre nos disseram o contrário, que a compaixão turva o raciocínio, que atrapalha, que vulnerabilidade é igual a fraqueza, que não nos devemos deixar guiar pelas nossas emoções, que não devemos tomar as coisas a peito, pessoalmente.

 O mundo foi criado para evitar sermos uma rapariga. 

O que significará então ser um rapaz? Ser um rapaz significa não ser uma rapariga, ser um homem significa não ser uma rapariga, ser uma mulher significa não ser uma rapariga, ser um líder significa não ser uma rapariga. Ser uma rapariga é então algo de tão poderoso que é preciso treinar as pessoas para não o serem!

A ironia é que negar, suprimir, a rapariga, recusar o sentimento, nos trouxe até onde nos encontramos agora, a um mundo onde as mais extremas formas de violência, a pobreza mais terrível, a violação, o genocídio, a destruição do planeta e dos seus recursos, tudo está fora de controlo. Por termos suprimido as nossas células “rapariga”, não sentimos mais o que está a acontecer, não conseguimos sentir o peso do que está a acontecer connosco e com o planeta…

No Congo, por exemplo, uma terrível guerra que já matou mais de 6 milhões de pessoas dura há mais de 12 anos relacionada com a exploração de minério para exportar para o Ocidente. Os sentimentos são contrários aos interesses dos impérios, interferem com a exploração desenfreada, com o esventrar da Terra e com a exploração desenfreada e destrutiva das suas riquezas.

A célula “menina” foi suprimida tanto nas mulheres como nos homens, e nos homens os estragos foram ainda maiores. A educação dos rapazes, no sentido de os tornar “fortes”, obriga-os a distanciarem-se de si próprios, dos seus sentimentos, a não chorarem. Na verdade, as balas que eles usam na guerra são as suas lágrimas endurecidas… Quando não permitimos que os homens tenham acesso à sua Menina Interior, à sua vulnerabilidade, à compaixão, eles embrutecem, tornam-se agressivos e violentos. Ensinamos-lhes que devem sentir-se seguros quando não o estão, que devem fingir que sabem tudo quando não é o caso. Sem isso não teríamos chegado aonde nos encontramos…


Se é mau aquilo que fazemos com a menina dentro de nós, é terrível aquilo que fazemos com as raparigas por esse mundo fora.

elas são espancadas
queimadas com pontas de cigarros acesas
tratadas como lixo
espancadas pela mãe, o pai, os irmãos, os tios
passam fome deliberadamente, nos países ricos, para se assemelharem à imagem idealizada que têm de si próprias
são controladas
mutiladas
 vítimas de analfabetismo
levadas a sentirem-se mal por serem tão inteligentes e talentosas
silenciadas culpabilizadas
queremo-las suaves, com bons modos, menos intensas
são mortas no estado embrionários por serem raparigas
são escravizadas
violadas...

Elas estão tão habituadas a ser espoliadas de tudo aquilo que as torna humanas, que acabamos por transformá-las em objectos, em mercadorias. O comércio de raparigas é uma realidade em todo o mundo e em alguns países elas valem menos que as vacas ou as cabras…

Actualmente, uma em cada oito pessoas no mundo é uma rapariga entre os 10 e os 24 anos de idade. Elas são portanto a chave para o futuro da humanidade. Mas estão em sérios apuros porque enfrentam muitas desvantagens que as mantêm exactamente lá onde a sociedade quer que elas estejam: à míngua de cuidados médicos adequados, de educação, de comida saudável, de participação na força laboral, sobrecarregadas com toda a carga de tarefas domésticas e muitas vezes com a criação dos irmãos mais novos…

No entanto, é a condição das raparigas no mundo e da rapariga dentro de nós que vai determinar a nossa sobrevivência ou não enquanto espécie. 

A palavra de ordem que é imposta às raparigas de todo o mundo é o verbo “agradar”, as raparigas são treinadas para agradarem. Torna-se urgente mudar este verbo para “educar”, “activar”, “ocupar-se”, “confrontar”, “desafiar”, “criar”. Se ensinarmos as raparigas a mudar as suas palavras de ordem, vamos fortalecer, empoderar a rapariga dentro de nós tod@s.

Alguns exemplos de raparigas que abraçaram a sua Menina Interior, apesar de todas as circunstâncias negativas à sua volta:

uma rapariga holandesa que quer dar a volta ao mundo no seu barco sozinha

uma rapariga que quis tatuar 56 estrelas no lado direito do seu rosto

Julia Butterfly Hill, que passou um ano em cima duma árvore para defender velhos carvalhos que iam ser abatidos

uma rapariga afegã de 17 anos, que com uma câmara escondida na burca, filmou cenas de violência contra as mulheres no seu país, que deram a volta ao mundo

Rachel Corrie, uma rapariga israelita que se pôs à frente dum tanque de guerra gritando pelo fim da ocupação, sabendo o risco que corria

uma rapariga congolesa que engravidou do seu violador e que me disse amar o seu bebé, porque o seu bebé estava cheio de amor…

A capacidade destas raparigas para suplantarem situações adversas e ultrapassar limites é espantosa. (…)

Eve Ensler (tradução livre)

Veja o vídeo