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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O Caldeirão de Cerridwen: Roubar da Velha Mãe Universo

 

Por Kelle ban Dea

 A história de como Cerridwen, a deusa das bruxas, prepara uma poção mágica cheia de awen (inspiração) que é acidentalmente ingerida pelo jovem Gwion Bach, é muito apreciada em todo o mundo ocidental, especialmente pelos neo-druidas. Gwion Bach renasce então como Taliesin, o maior bardo da Grã-Bretanha. É um típico conto de heróis, com Cerridwen como musa e iniciadora.

Ou será que é? Este conto sempre me deixou um sabor estranho na boca, e quando li recentemente The Broken Cauldron (O Caldeirão Quebrado) de Lorna Smithers, percebi porquê. Na versão mais antiga que temos deste conto, Gwion Bach não prova acidentalmente o awen. Ele rouba-o.

E depois o caldeirão parte-se, e o resto da poção derrama-se pelo chão e envenena a terra.

Esta versão faz lembrar outros contos do mundo “celta”, em que os caldeirões ou cálices das mulheres mágicas são roubados ou partidos, o poder das mulheres é afetado por roubo ou violação e a terra fica a sofrer com isso, geralmente por inundação ou, pelo contrário, por seca. É um tema recorrente, que as ecofeministas consideram simbólico tanto da opressão do patriarcado sobre as mulheres como da exploração da Terra. Estas mulheres são representantes da Deusa da Soberania, que personifica a terra e determina quem está apto a governá-la. Um rei tem de fazer um pacto com a deusa para proteger a terra e o seu povo.

Só que, contam os mitos, a dada altura os reis e os “heróis” aperceberam-se de que podiam simplesmente violar e roubar, e assim as mulheres retiram-se para o Outro Mundo e a terra fica desolada.

Estes motivos parecem tão óbvios que não consigo compreender por que razão, durante tanto tempo, foram lidos como contos de heróis e não exatamente o oposto - contos que nos dizem que os heróis são muitas vezes, de facto, homens violentos e que a glória é normalmente sinónimo de conquista. Alguém sai sempre magoado, ou magoada, mas são os vencedores que contam e, durante demasiado tempo, interpretam as histórias.

Prefiro a interpretação de Smithers. Ela refere-se a Cerridwen como “uma deusa que passei a conhecer como a Velha Mãe Universo”. Tradicionalmente, o caldeirão simboliza inspiração, sabedoria e renascimento. Mas a maioria das interpretações deste conto centra-se nas façanhas de Taliesin e ignora as consequências do caldeirão partido e da magia roubada.

O caldeirão roubado ou partido volta a aparecer num poema mítico galês - alegadamente da autoria do próprio Taliesin - chamado “Os Despojos de Annwfn”. Annwfn é o Outro/ Submundo celta, onde se encontra um caldeirão mágico de inspiração e renascimento, cuidado por nove sacerdotisas. Taliesin acompanha o famoso herói, o Rei Artur, e os seus guerreiros numa incursão a Annwfn para roubar o caldeirão. Segue-se uma matança e um derramamento de sangue. Apenas sete homens regressam a casa. Mas tudo vale a pena, porque os heróis lendários têm o seu prémio.

Na história de Branwen, sobre a qual já escrevi aqui anteriormente, o caldeirão do renascimento é roubado a uma mulher gigante e entregue a um rei que o utiliza para ressuscitar guerreiros caídos em guerreiros silenciosos e mortos-vivos. Máquinas de matar. Isto faz claramente parte de um mito antigo, pois vemos este motivo no artefacto do século I d.C., o Caldeirão de Gundestrup (embora aqui os guerreiros estejam provavelmente a renascer no Outro Mundo e não como zombies assassinos). O caldeirão do renascimento é antigo, mas a humanidade corrompeu-o. Derramou uma poção envenenada sobre a terra.

Mais tarde, no conto, o brutal meio-irmão de Branwen, Efnisien, mata o seu filho bebé atirando-o para o fogo e depois, presumivelmente num acesso de remorsos, atira-se ao caldeirão, partindo-o para que deixe de poder ser utilizado. Este é talvez o mais brutal de todos os contos, um que me faz sempre estremecer quando o leio.

As nove donzelas que cuidam do caldeirão são também um motivo recorrente, embora nos contos arturianos posteriores se tenham transformado em nove bruxas, e são (naturalmente) abatidas pelo herói, como no conto de Peredur.

Se o caldeirão do renascimento e da inspiração representa o ventre da Deusa, como a maioria parece interpretá-lo, ou o próprio Feminino, então o que significa o facto de os nossos supostos heróis o terem roubado e quebrado? Que os nossos contos heroicos pareçam completamente despreocupados com as consequências, mas que celebrem os seus protagonistas másculos? Apenas o conto de Branwen parece apresentar o verdadeiro horror sem restrições, e talvez não seja surpreendente que os estudiosos tenham teorizado que este foi, de facto, escrito pela primeira vez por uma mulher.

Voltando à própria Cerridwen, creio que precisamos de novas interpretações, como a de Smithers, que, de facto, nos devolvam ao que é certamente o núcleo e a verdade deste conto. Cerridwen não é simplesmente uma bruxa-musa, cujo papel é inspirar e dar à luz o herói e depois desaparecer da narrativa; ela é a narrativa, a deusa que produz o awen e que é responsável pela morte e pelo renascimento. A própria Velha Mãe Universo.

Na verdade, o roubo da nossa humanidade não diminui a Velha Mãe Universo. Como é que isso pode acontecer? Ela continua a destruir estrelas, a dar à luz mundos e a criar vida. As galáxias continuarão a girar sem o nosso contributo. Os que prejudicamos somos nós próprios e o próprio ecossistema de que dependemos para sobreviver.

Aquilo que roubamos aos nossos descendentes.

E por isso temos de fazer o que pudermos para reparar o caldeirão, antes que sejamos deixados numa Terra Desolada mais uma vez.

 

[1] Smithers, Lorna The Broken Cauldron (2021) Ritona Press

 

Fonte:

https://feminismandreligion.com/2024/09/01/cerridwens-cauldron-stealing-from-old-mother-universe-by-kelle-ban-dea/

Imagem 1 - Cerridwen, arte de Wendy Andrew

Imagem 2 - O Caldeirão de Gundestrup, Wikipedia

domingo, 26 de maio de 2024

Senhora dos Verdes / Helena dos Caminhos

 

Yueri Leitch

HELENA DOS CAMINHOS

 

“Se Helena apartar

do campo seus olhos

nascerão abrolhos”

Luís de Camões

 

“O azar da Península Ibérica foi a Inquisição e a caça às bruxas que destruíram todos os rastos da mitologia arcaica…”

“Sabemos que as estradas romanas seguiam caminhos antigos e sabemos que estes eram caminhos de transumância pastoril e que antes do pastoreio dirigido existiu o mero ato de seguir os trilhos das manadas.”                          

Artur Felisberto

Helena dos Caminhos, conhecida entre nós como a Senhora dos Caminhos, é uma das Deusas de Beltane mais antigas e mais fascinantes e cuja história é mais rica e complexa e difícil de deslindar. Na verdade a história de Helena dos Caminhos parte em várias direções, fazendo jus ao Seu atributo de Deusa dos caminhos, de Guardião dos caminhos. Por Helena, e honrando o seu espírito indomado de Deusa Hasteada, de Deusa Rena, ouso entrar por caminhos que não sei ainda aonde me conduzirão, nem isso me importa, porque precisamente o que a Deusa me é inspira é a abrir ou a mostrar caminhos…

 

Entre as divindades relacionadas com Beltane que fiquei a conhecer no meu primeiro ano do treino de sacerdotisa de Avalon, surgiu uma que imediatamente captou a minha atenção duma forma muito premente: Elen of the Trackways. Fiquei sob o Seu encanto e andei uma eternidade às voltas com esta energia poderosa até ter percebido que Elen, ou Helena, queria ser encontrada e resgatada no nosso território. Ao ler a investigadora britânica Caroline Wise, compreendi melhor aquilo que eu mesma senti no meu primeiro contacto com esta Deusa: “Quando comecei a leitura dessa pequena brochura (onde se falava de várias Helenas mitológicas e da possibilidade da sua origem comum) senti as correntes da kundalini atravessarem o meu corpo”.

Durante o meu treino, com o meu inglês tão insipiente, lia e escrevia em frente do computador e do tradutor do Google. Na verdade estudar, fazer investigação, hoje em dia é absolutamente fascinante, porque podemos satisfazer a nossa sede de informação e a nossa curiosidade da forma mais simples, pressionando apenas algumas teclas do computador. Ora, como muito cedo me apercebi das ligações que existem entre o material britânico e o ibérico, a certa altura resolvi escrever no motor de busca: “Senhora dos Caminhos”. Será que tal epíteto fora alguma vez aqui atribuído à Deusa? Para meu espanto absoluto a resposta foi positiva. Sim, são inúmeras as capelas, santuários, nichos, por todo o país, mais para o Norte, mas na verdade um pouco por todo o país. Existem até duas capelas bem perto da aldeia onde nasci, no distrito de Leiria, uma na Batalha e outra em Porto de Mós. Incrível, capelas da Senhora dos Caminhos mesmo ao pé de casa e eu nunca tinha ouvido falar desta Deusa! Uma investigação sumária desses locais de culto, trouxe-me uma informação preciosa: em Rãs, freguesia de Sátão, Aguiar da Beira, uma nova capela da Senhora dos Caminhos foi construída sobre outra mais antiga dedicada à… Senhora dos Verdes.

Senhora dos Verdes? Não podia acreditar no que estava a ler… Senhora dos Verdes é nem mais nem menos que a tradução literal de Lady of the Green, uma das primeiras designações por que Elen of the Trackways é conhecida, como uma espécie de versão feminina do Green Man, o Homem Verde, ou seja, uma personificação do espírito da natureza, relacionada com a Fertilidade e a Soberania da terra. Ou com a própria Terra, como postula Caroline Wise no seu brilhante trabalho de investigação sobre esta divindade, segundo ela uma das mais primitivas e importantes do panteão britânico. O nome da capital inglesa, Londres, poderá estar relacionado com ela, acredita.

Pela etimologia, “Elen” é um termo relacionado com cervídeos como a Rena, o Alce, o Veado, a Corça, mas também com o Cisne. Em francês, por exemplo, existe o termo Élentier significando Alce. Entre a figura referida no Mabinogion, Elen of the Trackways, Helena de Troia e Santa Helena, mãe do Imperador Constantino, entretanto, existem ligações que levam a investigadora a suspeitar tratar-se da mesma entidade. Helena de Troia nasceu, segundo a lenda, dum ovo de Cisne, forma tomada por Zeus para seduzir sua mãe, Leda. Quanto a Santa Helena, foi ela quem, supostamente, descobriu na Terra Santa a verdadeira cruz de Cristo. Ora, Cruz do Norte é precisamente um outro nome dado à constelação de Cygnus. Elen surge assim como uma energia por demais poderosa e fundadora para não irmos no seu encalce.

Voltando aos poderes de Helena, Ela é a Senhora da Soberania da Terra, Senhora dos Verdes, a Vénus Britânica, Deusa dos Jardins, a Noiva das Flores, Guardiã dos cursos de água subterrâneos, Guardiã dos antigos trilhos das migrações da Rena e do Alce, Guardiã das Linhas Ley, Ativadora e Mediadora da Kundalini da Terra. A Sua ligação à Rena parece ser a mais primordial, e Renas existiram também na Ibéria. Nos períodos glaciais, os animais característicos foram o mamute, o rinoceronte peludo e a rena, espécies vindas do centro e do norte da Europa, que buscavam o clima relativamente ameno da Península. Portanto, em épocas glaciares havia renas e a última dessas épocas acabou há 9 mil anos, ou seja, no início do Neolítico. Esta mudança climática terá originado a substituição da rena pelo cavalo

 “Esta Deusa, com ligação a animais como os cervídeos, cujos caminhos guarda e guia, tornou-se a Deusa das linhas de energia, implicada na soberania da terra, nas suas medições, mapeamento e na geomancia. Por intermédio dos animais e dos seus antigos trilhos, ela está relacionada com o equilíbrio das energias da terra, com a fertilidade e com os ciclos da natureza”, resume Caroline Wise. E também por cá temos, entre outros, o Monte de Santa Helena, em Lage, freguesia de Vila Verde, onde são visíveis os vestígios duma via romana, que a atravessava e que era parte do caminho de Santiago.

 

O CISNE DE HELENA

 

“Como Deusa Hasteada, Ela guia-nos pelos primeiros trilhos da migração das renas. Ela apontou para a antiga cidade de Londres e para as estrelas e revelou-me mistérios do conceito abstrato de soberania, que liga a fertilidade da terra a quem a governa.” Caroline Wise (http://mirrorofisis.freeyellow.com/id152.html)

Andrew Collins, entretanto, em The Cygnus Mistery, defende que a veneração do Cisne, como ave associada à vida cósmica, remonta a 17 000 anos atrás quando a constelação de Cygnus ocupava posição de destaque nos céus noturnos do Hemisfério Norte, sendo então Deneb, a estrela mais brilhante desta constelação, a Estrela Polar. Segundo crê, a constelação de Cygnus estaria na origem de todas as religiões do mundo, bem como da Astronomia, da Literatura, das cosmologias antigas e das viagens transoceânicas. Raios cósmicos duma estrela binar desta constelação, a Cygnus X-3, defende o autor, terão contribuído para a evolução humana durante a última Idade do Gelo, sendo vários os indícios, diz-nos, que provam que as/os nossas/os antepassadas/os tinham consciência de que a vida na Terra tinha uma origem estelar.

Os animais totémicos de Helena são a Rena e o Veado (os cervídeos) e o Cisne, cuja simbologia é riquíssima e sobre o qual se pode ler na Infopedia: O cisne é em muitas tradições o símbolo da mulher e da virgem dos céus que em contacto com a terra e com a água dá origem aos seres humanos”.  Helena relaciona-se assim com a constelação do Cisne, também conhecida como Cruz do Norte, e estou convencida de que um fóssil da antiga veneração dessa constelação no nosso território se encontra precisamente no culto prestado à Santa Cruz, na religião católica, curiosamente um dos antigos oragos da freguesia onde nasci. Na versão oficial, trata-se da cruz onde Cristo terá sido crucificado, descoberta na Terra Santa, por Helena (santa Helena), mãe do imperador Constantino, aquele que impôs o Cristianismo como religião oficial do Império Romano.

Podemos avistar Helena dos Caminhos nos trilhos dos bosques, entre as árvores, se A invocarmos e estivermos atentas/os à Sua epifania. Aí, é possível vislumbrarmos a Sua silhueta ou recebermos da Deusa um qualquer sinal da Sua presença. Como Deusa de Beltane, se nos rendermos à Sua presença em nós, Helena guia-nos pelas correntes da Kundalini do corpo, pelas indomadas correntes do desejo, quando vibrando em uníssono com o divino masculino, atingimos o portal estelar que conduz o ato de fazer amor à sua cósmica dimensão e apoteose.

©Luiza Frazão, Maio 2015

terça-feira, 2 de abril de 2024

A PÁSCOA DA DEUSA

Legado de Carol P. Christ: PÁSCOA DA DEUSA: UMA VISÃO DESDE A GRÉCIA

Este texto foi originalmente publicado em 16 de abril de 2012

 Nota da revista Feminism and Religion: “Na Sexta-feira Santa, no Sábado de Páscoa, no Domingo de Páscoa e na Segunda-feira de Páscoa, os blogues do feminismandreligion.com celebraram as mães e Deus Mãe.”

 Este é o meu corpo, a vós doado.

Este é o meu sangue, a vós doado.

 Embora estas palavras sejam o centro de uma liturgia cristã que celebra o sacrifício de Jesus como o Cristo, são mais apropriadas para falar das nossas próprias mães. A tua mãe, a minha mãe e todas as mães, humanas e não humanas, mamíferas, aviárias e répteis, dão o seu corpo e sangue para que os seus filhos tenham vida. É verdade que as mães nem sempre fazem escolhas conscientes para engravidar, mas quase todas as mães afirmam a vida na sua vontade de nutrir as crias que emergem dos seus corpos e dos seus ninhos. Se as mães - humanas e não humanas - não tivessem dado o seu corpo e o seu sangue desde tempos imemoriais, tu e eu não estaríamos aqui.

A liturgia pascal não reconhece que a oferta original do corpo e do sangue é a oferta da mãe. O cristianismo "roubou" as imagens associadas ao nascimento e atribuiu-as a um salvador masculino. Se isso fosse tudo o que os cristãos fizeram, já seria suficientemente mau. Atualmente, na maioria dos países, existem leis contra o roubo. Os teólogos e liturgistas cristãos deveriam também ser punidos com um "F" por plágio - definido como a apresentação das ideias de outros como se fossem suas. Z Budapest tinha razão quando opinou, de forma célebre, que "o cristianismo não tinha ideias originais.

Não ter ideias originais talvez seja perdoável. Se as mães ainda fossem honradas, certamente teriam perdoado aos seus filhos o facto de também quererem ser honrados. A maioria das mães está disposta a partilhar o que tem com os seus filhos. A essência da maternidade é a generosidade, amar o outro como a si mesmo. No entanto, os cristãos continuam a insistir que a ideia do amor auto-doador teve origem em Jesus e que ninguém teria pensado nisso se não fosse por ele.

Os cristãos não se limitaram a roubar ideias das culturas que honram a mãe. Eles torceram o nariz para as mães. Diziam que o corpo que os gerou era mau: era a fonte do pecado, a "porta de entrada do demónio", nas palavras infames de Tertuliano. Eles agravaram o crime de roubo, acrescentando-lhe o crime de calúnia! Desde então, as mulheres reais têm sido castigadas pelo "pecado" de "Eva".

A negação da mãe é inerente à visão platónica do mundo adoptada pelo cristianismo. A visão platónica do mundo, tal como outras vias de "renúncia" ao "mundo", é o auge da ingratidão. No fundo, despida das suas roupagens, a sua essência é a seguinte: o nascimento neste mundo através do corpo de uma mãe não é suficientemente bom. O nascimento neste mundo não é suficientemente bom. O nascimento através do corpo de uma mulher não é suficientemente bom.


Embora reconheça a esperança de vida eterna em que se baseia a rejeição da vida neste mundo, considero a renúncia à vida no corpo e neste mundo um erro de "categoria" fundamental. Aqueles que escolhem o caminho da renúncia são "vida" rejeitando "vida". A vida no corpo não é vida sem morte. Mas será que devemos rejeitar a dádiva da vida porque ela não dura para sempre? Devemos rejeitar as flores porque a maior parte delas só floresce na primavera? Ou devemos deliciar-nos com a beleza efémera e com as nossas próprias vidas que não são eternas? Parece-me que as nossas civilizações ditas "superiores" tomaram um rumo errado há alguns milénios.

Talvez não seja demasiado tarde para voltar atrás. Podemos começar por dar graças às nossas mães, aos nossos antepassados, mulheres e homens, à teia da Vida, à própria Terra e ao cosmos, sem os quais e sem as quais não existiríamos. A minha oração pascal é simples: 

Abençoemos a Fonte da Vida,

e os ciclos de nascimento, morte e regeneração.

Com esta simples oração, podemos substituir o egoísmo por uma afirmação da nossa interdependência, e a nossa ganância pelo que não temos, pela gratidão por tudo o que nos foi dado.

 

*Ontem foi segunda-feira de Páscoa na Grécia.

Imagem 1 - a Mãe Poupa

Imagem 2 - Deusa Deméter e Sua filha Perséfone

Imagens originais do texto em inglês aqui.

terça-feira, 26 de março de 2024

Como Cultuamos a Deusa?

 

Criando espaço para a reverência

por

Kelly Applegate-Nichols

 

Enquanto o movimento de espiritualidade da Deusa acompanha os movimentos de espiritualidade feminina e feminista, estou certa de que a própria Deusa olha com admiração e orgulho para as Suas criações. Tenho a certeza de que Lhe agrada ver mulheres tão dedicadas ao empoderamento pessoal, e à determinação feroz de sair de debaixo do chicote do patriarcado, para se manterem juntas como mulheres, unidas na nossa paixão por um mundo melhor.

Embora saiba no meu coração que estamos continuamente na mente da Deusa, sou levada a perguntar-me: quantas vezes é que Ela está na nossa?

Embora façamos grandes progressos juntas no nosso objetivo comum de liberdade e paz, algumas de nós parecem estar menos em paz do que nunca; parece haver uma corrente subjacente de solidão, de desconexão. Ultimamente, tenho pensado que é pelo menos possível que aquilo que nos mantém acordadas à noite tenha menos a ver com o estado do mundo e mais com a ligação, por vezes ténue, com a nossa Mãe. Talvez estejamos tão concentradas no nosso empoderamento pessoal que nos esquecemos de que existe outro poder, um "poder superior", se preferirmos. E Ela quer comungar connosco.

Parte da nossa saída do domínio do patriarcado tem sido o abandono da religião centrada no deus masculino. Durante demasiado tempo, foi-nos ensinado que, mesmo no domínio espiritual, são os homens que nos supervisionam a nós e às nossas almas. Um problema potencial surge quando deixamos isso para trás sem um substituto suficiente, o que pode levar à queda livre religiosa e espiritual. Por vezes, desafiamos de tal forma a linguagem da religião patriarcal que podemos ficar desligadas das ideias que estão por detrás das palavras. Mas e se houvesse um caminho melhor? E se pudéssemos ter uma recuperação dos termos religiosos e espirituais, para nosso benefício, para desenvolver a nossa ligação com a nossa Criadora?


Parte da nossa saída do domínio patriarcal tem sido o abandono da religião centrada no Deus masculino. Durante demasiado tempo, foi-nos ensinado que, mesmo na área espiritual, são os homens que nos supervisionam a nós e às nossas almas. Um problema potencial surge quando deixamos isso para trás sem um substituto suficiente, o que pode levar-nos à queda livre religiosa e espiritual. Por vezes, desafiamos de tal forma a linguagem da religião patriarcal que podemos ficar desligadas das ideias que estão por detrás das palavras. Mas e se houvesse um caminho melhor? E se pudéssemos ter uma recuperação dos termos religiosos e espirituais, para nosso benefício, para desenvolver a nossa ligação com a nossa Criadora?

O Dicionário Oxford define adoração como "o sentimento ou expressão de reverência e adoração por uma divindade" e "mostrar reverência e adoração por (uma divindade); honrar com ritos religiosos". No entanto, algumas de nós desenvolveram a ideia de que "adoração" significa ser subserviente ou ajoelhar-se, uma ideia apoiada pelos seguidores de uma figura divina masculina, irada e punitiva. Eu sugeriria que adorar a Deusa é um assunto completamente diferente.  Porque parte da minha própria adoração é a compreensão do Seu poder, do facto de que Ela é um poder muito maior do que o meu eu humano. Para mim e para todas as mulheres, esse Poder que cria mundos está sempre à nossa volta.

A própria palavra "religião" deixa muitas vezes um mau gosto na boca das mulheres se a associarmos a todo o mundo do patriarcado. No entanto, se tomada isoladamente e fora de contexto, religião significa simplesmente "a crença e o culto de um poder ou poderes sobre-humanos, um sistema particular de fé e culto". A religião como conceito pode ser divorciada do clima religioso atual. Se dedicarmos tempo ao desenvolvimento da nossa vida espiritual, estamos, de facto, a praticar uma religião da Deusa.


Parte dos meus rituais para a Deusa é dizer-Lhe que A amo, muitas vezes. É a mais simples das orações, mas é a que me faz sentir imediatamente ligada. Também passo algum tempo nos vários altares da minha casa, inclino-me para beijar o chão à minha porta, faço oferendas, escrevo e realizo rituais em Sua honra. A religião da Deusa permite-me desenvolver a minha prática da forma que eu quiser, não há nenhuma doutrina a que me deva conformar. Não acho que Ela exija essas coisas de mim, e certamente não serei punida se não as fizer. Faço-o porque me faz sentir próximo d'Ela. Faço-o porque, como disse Thomas Merton de forma tão eloquente, "...acredito que o desejo de vos agradar vos agrada de facto. E espero ter esse desejo em tudo o que estou a fazer".

Há muitos outros termos religiosos e espirituais que se tornaram distorcidos pelas circunstâncias, merecem outro olhar, e que cada mulher se pergunte: "O que é que estes termos significam realmente para mim? O que é que eles podem significar para mim?" Palavras como milagre, reverência, devoção, humildade. Podemos personalizar as nossas definições de uma forma que funcione para nós, e só para nós. Podemos criar espaço nos nossos corações para a admiração e a reverência.

Fonte


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

NOITE DE NATAL - A ANTIGA NOITE DAS MÃES

 Será por esta a razão profunda que o Dia da Mãe em Portugal se celebrou a 8 de Dezembro até tempos relativamente recentes?

"Noite das mães: as antigas origens pagãs do Pai Natal?

Essa tradição de uma mulher viajar pelo mundo trazendo presentes também está incorporada na tradição irlandesa. Isso poderia ser um remanescente das deusas antigas trazendo boa fortuna?

Um antigo festival de inverno que remonta pelo menos à Idade do Ferro é a Noite das Mães ou Modraniht.

Esta celebração ocorreu na actual véspera de Natal e foi associada a uma homenagem às ancestrais e espíritos femininos, daí a associação com as mães.

O que pode ser surpreendente para algumas pessoas é que essa celebração também ecoa no folclore irlandês da véspera de Natal.

Ao contrário de outras festas menos atestadas que ocorreram nesta época, temos documentação escrita definitiva desta festa que remonta ao século VIII, e relíquias dessas mesmas divindades na forma de Dísir e Matres do primeiro século.

A tradição oral remonta muito mais longe, possivelmente às primeiras deusas da fertilidade europeias.

Deusas triplas semelhantes da Idade do Bronze também são encontradas na Anatólia, talvez indicando uma raiz proto-indo-europeia. As sete deusas Matrika, por exemplo, remontam a pelo menos 3.000 aC.

O Dísablót do Norte da Europa foi realizado durante as noites de inverno, bem como o Equinócio Vernal.

Agora, esta é uma ocorrência interessante porque as fadas e espíritos associados com as Plêiades (incluindo a mencionada Matrika) também eram reconhecidos nessas ocasiões. Mas isso provavelmente é um post para depois, excepto para dizer que não devemos esquecer-nos de que as estrelas eram tanto um motivo para esta celebração sazonal quanto o renascimento do sol!

Neste contexto, as noites mais longas do ano teriam acontecido numa época em que as estrelas estavam mais presentes na vida das pessoas e, portanto, teriam sido vistas como mais influentes.

Como já escrevi algumas vezes aqui, vamos cada vez encontrando mais e mais monumentos alinhados com constelações e posições de estrelas polares em dias auspiciosos, o que confirma o que dissemos antes.


Espero que seja este o caso também aqui na Irlanda.

Mas voltando à Noite das Mães, era uma noite em que oferendas e sacrifícios eram feitos às deusas, antepassadas e ancestrais femininas. Oferecer uma porção de uma refeição, sem manteiga, mel ou bebida eram meios populares de apaziguar e expressar respeito e agradecimento.

Acender fogueiras, queimar incenso e fazer profecias para o ano seguinte eram outras actividades associadas a esta noite. Isso não deveria ser surpresa, considerando os vínculos entre as Dísir, as Norns e as Moirai, todos grupos triplos de mulheres / deusas sobrenaturais controlando o destino.


É interessante olhar para esta tradição à luz de uma deusa anterior mencionada aqui, La Befana, que entrava pela casa voando, trazendo presentes para as crianças que haviam sido boas e pedaços de carvão para aquelas que se tinham portado mal.

Befana é similar a Perchta e à rainha das fadas, Nicnevin, que muitas vezes era considerada a líder da Caçada Selvagem no Yule. Esta era uma procissão de elfos, espíritos de fadas, mortos e mortas e outras entidades sobrenaturais.

Embora seja frequentemente considerado de mau agouro encontrar o desfile desta caçada, é interessante notar os aspectos mais lúdicos e provocadores dos encontros folclóricos irlandeses. (Para não ignorar as mortes reais de outros que são arrastados por esta perseguição fantasmagórica!)

Essa tradição de uma mulher viajar pelo mundo trazendo presentes também está incorporada na tradição irlandesa. Isso poderia ser um remanescente das deusas antigas trazendo boa fortuna?

Aqui está um exemplo de uma história sobrevivente que foi gravada em Carlow em 1937.

“Diz-se que na noite de Natal uma velha vai de trenó de um lado ao outro do mundo. O trenó é puxado por cães e caminha pelas nuvens. Numa certa véspera de Natal, porém, o eixo do trenó quebrou-se e ela caiu ao chão, pousando ao lado de uma carpintaria. O carpinteiro fez um eixo para o seu trenó.

Ele mirou e remirou até que ela estar fora de vista, e quando então olhou para o chão, por algum poder mágico, todas as sobras de madeira se tinham transformado em ouro. ”

Fonte original aqui: https://www.duchas.ie/en/cbes/5044666/5030337/5142569

Com o folclore irlandês posterior da véspera de Natal, muito parecido com Brigid no Imbolc, por exemplo, vemos Maria substituída pela antiga figura da Deusa.

Como podemos ver, então, há também alguns paralelos surpreendentes com La Befana, que era uma deusa que voava de casa em casa nos contos antigos na Europa continental no meio do inverno. E, como já foi mencionado, a própria La Befana está conectada com as deusas Perchta e Holda.

A velha, neste caso, também pode ser outra forma da Cailleach, é claro. Há fortes ligações com a Cailleach como inicialmente associado a figuras de deusas da Europa continental antes das associações com a Irlanda e a Escócia

Existem também antigas tradições relacionadas com a figura da Mãe do Veado dos povos xamânicos asiáticos, bem como das tribos da Escandinávia, Escócia e dos povos indígenas norte-americanos.

Veja a postagem anterior para mais informações sobre isso. Já mencionamos como as várias figuras da Deusa voaram pelo ar em um trenó, carregaram o sol nos chifres de um cervo e entregaram presentes ao povo.

Então, talvez a véspera de Natal deva ser lembrada por sua associação muito mais antiga com ancestrais e espíritos femininos, bem como sua associação com o início de um novo ciclo solar anual.

A Noite das Mães foi um momento de proximidade e reflexão pessoal para famílias, filhas e filhos.

Foi um momento de recordar as mães que faleceram e, à medida que as noites escuras chegavam ao fim e a nova luz estava para nascer, era o momento de contacto entre fins e novos começos.

(C.) David Halpin.

Fotos.

1. A reconstrução da Shamaness of Bad Dürrenberg por James Dilley

2. Círculo de pedras de Boleycarrigeen

3. Uma foto em preto e branco de Haroldstown Dolmen

4. La Befana, a Bruxa do Natal Italiana, em https://italiancenter.net/events/festa-della-befana.html


Versão original:

https://www.facebook.com/CircleStoriesDavidHalpin/posts/1349492972066042

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

SENHORA DAS FLORES - uma das faces da Deusa de Beltane

 

Sabias que uma das invocações da face da Deusa de Beltane é Senhora das Flores?

As flores são, como sabes, os órgãos sexuais das plantas, puras manifestações da beleza e sabedoria divinas e têm um grande poder, magia e capacidade de cura para nos oferecerem. Como nos diz a autora do livro A Magia das Flores, Tess Whitehurst, elas situam-se na fronteira entre o visível e o invisível, mais perto do reino etérico da energia pura e por isso permitem-nos ver o coração da verdade. Se nos sintonizarmos com as suas vibrações únicas, podemos melhorar muito a nossa saúde e vitalidade, poder e sucesso pessoal. Temos a aromaterapia e os florais de Bach, por exemplo, para o atestarem.

Na verdade elas tanto podem servir como terapeutas como como perfeitas e maravilhosas emissárias do poder da Deusa, por isso a Senhora das Flores é tão importante e será honrada na nossa Conferência da Deusa, entre 10 e 12 de Maio de 2024.

Sem dúvida que quanto mais reconhecemos este poder inefável das flores mais paz e harmonia e alma trazemos ao mundo.

Na nossa cultura existe uma rainha que realizou o célebre Milagre das Rosas. Foi Isabel de Aragão, mais conhecida como a Rainha Santa Isabel (1270-1336), mas parece que outras santas e rainhas realizaram o mesmo, inclusive uma sua tia na Hungria.

Seja como for, desta história existe uma parte que não parece ser vista nem interessar: a proibição do Rei, em relação à Rainha, de esta exercer a caridade. Esta foi a real causa do milagre: esconder do Rei, no caso Dinis, as suas acções em prol das pessoas pobres e esfomeadas, já que o que ela transformou em rosas foi o próprio pão que lhes mataria a fome naquele dia… Esta é a parte do milagre que não se conta, mas que deveria causar-nos indignação, é que, mesmo sendo Isabel de Aragão rainha, e por isso mesmo possuidora de riqueza própria, ela não podia fazer o que queria com o seu dinheiro…

As flores têm destas coisas, um lado sombra… Muitas vezes também são conectadas com futilidade, superficialidade, vaidade, ou desempoderamento… Invocando aspectos sombra do feminino que podem levar-nos até à própria história da Deusa celta Blodeuwedd, a Deusa feita de flores… um pouco como Eva foi feita para Adão… Só que Blodeuwedd se libertou ao apaixonar-se pelo eleito do seu coração… Foi entretanto amaldiçoada até as mulheres da Deusa se terem identificado com o seu destino e reconhecido o seu antigo poder quando se transformou numa coruja, ou mocho, qualquer uma delas muito sagrada da Deusa…

Em Portugal, existem templos cristãos à Senhora das Flores em, pelo menos, Travanca e em Oliveira de Azeméis.

 

 Imagens: Milagre das Rosas, pintor André Gonçalves, 1735

Deusa Blodeuwedd

 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Max Dashu - O Conselho Pontifício para a Cultura tem uma agenda para as mulheres: a mesma gaiola de sempre

 Publicado em 2 de fevereiro de 2015 por Veleda (Max Dashu)

 O Conselho Pontifício para a Cultura reúne-se em Roma, de 4 a 7 de fevereiro de 2015, para refletir sobre "Culturas femininas: Igualdade e diferença". O documento preliminar que publicaram dá uma dica, caso tenha ficado com dúvidas de que as suas ideias sobre as mulheres mudaram um pouco. O documento intitula-se "Culturas Femininas: Igualdade e Diferença", e tenta - mais uma vez - convencer as mulheres do que a hierarquia masculina insiste ser o seu lugar de direito:

"No início da história da humanidade, as sociedades dividiam rigorosamente os papéis e as funções entre homens e mulheres. Aos homens cabia a responsabilidade, a autoridade e a presença na esfera pública: a lei, a política, a guerra, o poder. Às mulheres cabia a reprodução, a educação e o cuidado da família na esfera doméstica."

Esperem aí. O que é que aconteceu à responsabilidade e autoridade femininas - mulheres chefes, curandeiras e chefes de clã? Durante muito tempo, foi possível afirmar que as líderes femininas públicas nunca existiram, mas há demasiada documentação acumulada para que isso continue a ser verdade.



Mulher xamã Manchu: uma importante líder espiritual e social na sua cultura do nordeste asiático




"Na Europa antiga, nas comunidades de África, nas civilizações mais antigas da Ásia, as mulheres exerciam os seus talentos no ambiente familiar e nas relações pessoais, evitando a esfera pública ou sendo positivamente excluídas. As rainhas e imperatrizes recordadas nos livros de história eram notáveis excepções à norma."

Figura feminina invocatória de Netafim, cerca de 5000 a.C.


Estes prelados estão a avançar uma reivindicação de dominação universal masculina - uma doutrina à qual a hierarquia da Igreja está profundamente ligada. Não sentem qualquer necessidade de fundamentar esta afirmação com provas. O seu decreto foi suficiente durante tanto tempo que não conseguem reconhecer que o mundo mudou. Tomando como norma as sociedades baseadas no Estado, passam ao lado de longas épocas da história humana, incluindo as sociedades neolíticas, com as suas muitas representações de liderança feminina, e um vasto leque de sociedades indígenas que não se enquadram na política sexual apertada que aqui se apregoa.

A liderança cerimonial das mulheres é um tema central da arte egípcia pré-dinástica


As mulheres das sociedades antigas não "evitavam a esfera pública": nem as guerreiras africanas, nem as sacerdotisas cretenses e ibéricas, nem mesmo as sacerdotisas sumérias, babilónicas e fenícias. Estamos a falar de história registada, que não deixa margem para ambiguidades. Mesmo em períodos muito posteriores, conhecemos as cantoras épicas turcas, as juízas e escribas do Camboja, as poderosas associações de mulheres do mercado da África Ocidental. Mas porquê falar apenas destes continentes, deixando de fora as Américas, a Austrália e as ilhas do Pacífico? Também eles contam como sociedades antigas e têm as suas próprias histórias de mulheres proeminentes, de legisladoras, diplomatas e chefes, de líderes cerimoniais e guerreiras.

A Senhora de Cao, sacerdotisa-chefe no Peru do século IV (encenação moderna baseada em achados arqueológicos)

Os iroqueses e os cherokees recordam que as " fabricantes de mocassins" (mocassins-makers) tinham o direito de atuar como "travão de guerra", recusando-se a abastecer homens que quisessem ir para a guerra sem o consentimento do conselho das mulheres. Em Yunnan, o povo Lisu conta que os homens tinham de parar de lutar se uma mulher de qualquer dos lados abanasse a saia para pedir um armistício. Do mesmo modo, na ilha Vanatinai, no Pacífico, uma mulher podia dar o sinal de guerra ou de paz tirando a saia exterior. Isto é autoridade feminina. Não se trata de uma fantasia. É a realidade histórica.

Os Huastecas esculpiram um grande número de monumentos femininos em pedra, no leste do México

A declaração do Conselho Pontifício passa ao lado da grande maioria das sociedades indígenas, incluindo aquelas em que a responsabilidade feminina, a autoridade e a presença pública eram e continuam a ser parte integrante. Entre as Seis Nações dos Iroqueses, os Gantowisas têm autoridade estrutural para selecionar os chefes e para lhes "tirar os chifres" se falharem nas suas responsabilidades. Estes chefes actuam como delegados do povo e não como senhores sobre ele, um facto que continuou a surpreender os observadores europeus, que faziam suposições muito diferentes sobre a liderança, bem como sobre o poder feminino.

Mas há mais: o conselho feminino de Gantowisas ("matronas" nos relatos europeus) discutia questões e, como escreve a historiadora Séneca Barbara Mann, o conselho masculino não podia debater qualquer questão até que o conselho feminino lha transmitisse. Havia um equilíbrio estrutural entre a soberania masculina e a feminina. Mann também chama às mulheres anciãs o "conselho federal de reserva" das Seis Nações, referindo-se ao seu controlo dos recursos económicos.

As mulheres Hopi realizam a cerimónia Lakon; os homens não têm autoridade sobre elas nesta cultura matrilinear / matrilocal

E onde estão, na visão cega dos padres, as mulheres fundadoras, como Ti-n-Hinan, a mãe ancestral do povo Imushagh / Tuareg do Hoggar, cujo túmulo do século IV é o monumento mais proeminente da região? E as mulheres chefes dos edomitas, cujos nomes figuram no Génesis, ou ainda a profetisa Miriam, Débora e Hulda? Onde estão as profetisas montanistas que foram denunciadas como heréticas na Ásia Menor do século III? As mulheres que lideraram rebeliões contra a conquista e a colonização, movimentos de trabalhadores, cujas acções deram origem às revoluções francesa e russa?

Ti-n-Hinan, fundador ancestral do povo Imushagh/Tuareg

A negação da liderança espiritual feminina é especialmente preocupante para uma instituição que luta com todas as suas forças para conter a maré de ordenações femininas. Admitir as provas maciças do sacerdócio feminino - o wu na China antiga, o mikogami no Japão, o mudang na Coreia, para citar algumas das sociedades da Ásia Oriental onde predominavam (e ainda predominam na Coreia) xamãs do sexo feminino - seria arrancar os últimos esteios que sustentavam o edifício em ruínas de uma estrutura de poder exclusivamente masculina. Esta hierarquia foi gravemente abalada pelos escândalos relacionados com a pandemia de violações de crianças e com o encobrimento dos bispos, bem como com a corrupção financeira na Cúria. Muitas pessoas declaram prontamente que as mulheres fariam um trabalho muito melhor na direção da Igreja.

As Wu (mulheres xamãs) actuavam como curandeiras, profetas e fazedoras de chuva na China antiga. Bronze hu cerca do século IV a.C.

Depois de pretenderem que a liderança masculina é um dado histórico universal, uma qualidade inata e essencial, os Conselheiros Pontifícios passam ao tema dos movimentos de mulheres que desafiaram e subverteram velhos constrangimentos habituais:

 A partir da segunda metade do século XIX, sobretudo no Ocidente, a divisão dos "espaços" masculinos e femininos foi posta em causa. As mulheres exigiram direitos, como o direito de voto, o acesso ao ensino superior e às profissões liberais. E assim se abriu o caminho para a paridade dos sexos".

Isso soa muito bem, certo? Que as mulheres conquistaram os seus direitos e as coisas abriram-se. Oh... espera. Uh-oh: "Este passo não foi, e não é, isento de problemas."

Quais eram esses problemas? Dizem-nos que as mulheres estavam a assumir papéis "que pareciam ser exclusivamente destinados ao mundo masculino" [destinados, por quem?] e que as suas reflexões sobre a sua situação estavam "por vezes a envolver-se em movimentos políticos e fortemente ideológicos". Estas constatações, devemos compreender, são muito mais problemáticas do que as doutrinas "fortemente ideológicas" de subordinação feminina que a igreja institucional impôs através de meios "políticos", desde as cruzadas aos julgamentos inquisitoriais e à caça às bruxas, até às leis e políticas modernas que a igreja defende e que continuam a fazer das mulheres cidadãs de segunda classe, cujas vidas e corpos são dispensáveis.

O Conselho Pontifício não considera que as estruturas patriarcais sejam problemáticas; continua a defender que estão de acordo com as qualidades essenciais dadas por Deus. É a reação feminina contra elas que ele não aprecia e deplora. Mulheres! Fiquem no vosso lugar.

"Que anúncio querigmático ["pregação", em linguagem simples] deve haver para as mulheres, que não se feche numa visão moralista? De que indicações precisamos para uma nova praxis pastoral, para um caminho vocacional para o matrimónio e a família, para a consagração religiosa, tendo em conta a nova consciência de si que as mulheres têm?"

O que há de "novo" em empurrar as mulheres "para o matrimónio e a família"? Uma coisa é certa: por "consagração religiosa" não se entende a ordenação sacerdotal feminina. O mais provável é que estejam a sonhar com novos adereços religiosos para o papel de esposa e mãe, como forma de dar resposta ao anseio das mulheres por uma maior inclusão na Igreja.

O pior que poderia acontecer, na mente dos escritores, é a mulher rejeitar o papel feminino tal como eles o definem: "Trata-se de proteger a dignidade da mulher, de respeitar o que é genuinamente feminino (e esta é a verdadeira igualdade) e de evitar que a mulher, ao tentar inserir-se responsavelmente numa sociedade marcadamente masculina, perca a sua feminilidade [sic]."

Isto é nada mais nada menos do que a reafirmação do velho princípio patriarcal: o lugar da mulher é na esfera privada, sob a autoridade do homem. Não só isso, mas "sociedade" significa "homens". Se as mulheres estão incluídas na forma como se pensa a "sociedade", não há necessidade de nos "inserirmos" nela. Nós já fazemos parte dela. Mas a declaração não mostra qualquer consciência deste simples facto. Estes prelados de alto nível não acreditam que as mulheres pertençam de todo à esfera pública - e muito menos ao sacerdócio.

De facto, eles não querem que as mulheres participem nesta iniciativa sobre a "Cultura das Mulheres". Como me informa Soline Humbert, "o Conselho Pontifício para a Cultura tem 32 membros permanentes, todos homens, nomeados por 5 anos. Quase todos são cardeais, bispos e padres, e um par de leigos ("homens de cultura"... Não há "mulheres de cultura"...) Há também consultores que são nomeados pelo papa... Há 27 consultores homens, e 7 mulheres, ( se bem me lembro), nomeados no verão passado pelo Papa Francisco."

 Por outras palavras: são zero mulheres entre os 32 membros permanentes do Conselho Pontifício, enquanto no círculo exterior de Consultores o rácio de homens para mulheres é de 4:1, num total de 59 homens e 7 mulheres. É esta a pessoa que vai emitir uma declaração definitiva sobre a "Cultura da Mulher" - e esperam que isso passe por uma mudança, na sua iniciativa de envolver as mulheres católicas.

Este é um padrão familiar da alta hierarquia sacerdotal: excluir totalmente as mulheres do núcleo do poder e admitir algumas mulheres cuidadosamente seleccionadas para um círculo exterior, onde são muito mais numerosas (e superiores) do que os homens. Soline acrescenta que "houve uma menção a um grupo de mulheres que trabalhou no documento de discussão agora publicado, mas não vi os nomes dos membros desse grupo (mulheres anónimas?) nem como foram seleccionadas. Além disso, apesar de terem mencionado que haveria um 'Dia Aberto', parece que, mais uma vez, é apenas por convite para alguns seleccionados...."

Vénus em cativeiro: a visão da hierarquia
sobre a cultura feminina
A imagem selecionada para esta iniciativa é altamente simbólica: uma mulher nua, sem cabeça, sem braços, sem pernas e em estado de escravidão. É a fotografia de Man Ray de 1936 "Vénus Restaurada". É esta a sua ideia de Cultura Feminina?!? Já indignou inúmeras mulheres. Soline Humbert resume o contexto desta peça no blogue We Are Church Ireland:

"Man Ray tinha um forte interesse por Sade e pelo sadismo e há um traço sádico recorrente na sua obra de arte, bem como nas suas relações com as mulheres, caracterizadas pela dominação e pela agressão. Man Ray fotografou mulheres usando instrumentos de bondage e encenando cenas de tortura. Também ajudou outros, como William B Seabrook, a concretizar na vida real as suas fantasias de bondage com mulheres.

"O que é que está por detrás desta escolha da imagem da escravidão feminina pelo (todo masculino) Conselho Pontifício para a Cultura? Será a escolha do grupo de mulheres (quem são elas?) que está por detrás deste documento? Que mensagem se pretende transmitir?"

Podemos perguntar-nos.

O mesmo se aplica às recentes repreensões do Papa Francisco às mulheres das Filipinas pelas suas elevadas taxas de natalidade, depois de décadas em que os eclesiásticos defenderam firmemente o método do ritmo! Como se a abstinência fosse uma opção real para a maioria das mulheres casadas deste mundo. Ele não faz a mínima ideia da realidade que estas mulheres vivem.  No que respeita às mulheres, nada mudou.

Nem a atitude fria para com os povos indígenas, cuja escravatura, fome, flagelações e outros abusos no sistema missionário estão a ser postos em causa pela planeada canonização de Junípero Serra. (Ver 8:50 >> no vídeo com link, onde os descendentes falam sobre raptos, sobre os seus antepassados que passavam fome com 700 calorias por dia, enquanto eram forçados a trabalhar, e obrigados a ajoelhar-se em azulejos durante toda a missa, mantidos em fila por guardas com chicotes e baionetas). Nestas duas importantes questões de justiça social, as mulheres e os povos indígenas, o pontífice surdo nem sequer finge querer mudar.


A reação contra as mulheres chegou mesmo à liberal São Francisco. Foram precisos 16 séculos para que a proibição de mulheres no altar fosse revogada, durante algumas décadas, em alguns locais, e agora alguns padres estão a tentar voltar atrás. "O reverendo Joseph Illo, pároco da Igreja da Estrela do Mar desde agosto, disse acreditar que existe uma "ligação intrínseca" entre o sacerdócio e o serviço no altar - e como as mulheres não podem ser padres, faz sentido ter apenas acólitos. "Talvez o mais importante seja o facto de preparar os rapazes para considerarem o sacerdócio".

"A paróquia do distrito de Richmond é agora a única na Arquidiocese de São Francisco que excluirá as raparigas do serviço do altar. Tal decisão é "uma decisão do pároco", disse o porta-voz da arquidiocese Chris Lyford. "Um programa de acólitos seria uma experiência de ligação entre homens, que os ajudaria a socializar e a desenvolver o seu potencial de liderança, disse Illo. As raparigas continuariam a poder fazer as leituras durante a missa." Não é especial? As raparigas vão poder ler em voz alta.

A curandeira mexicana que defuma o Papa: dádivas e bênçãos de fontes ainda não reconhecidas

Isto não vai resultar, porque demasiadas/os católicas/os despertaram para o facto de que elas/es são a Igreja. As mulheres, especialmente, sabem que as coisas têm de mudar, porque são elas que estão lá fora a fazer o verdadeiro trabalho, a manter as coisas unidas e a apanhar os cacos, à medida que o número de homens ordenados diminui e a hierarquia se esforça por encontrar homens para ficarem no comando. Tudo isto tem de mudar. A opção pelos pobres não tem grande significado sem o reconhecimento de que as mulheres são as mais pobres dos pobres, as que carregam um fardo tremendo, sobre cujos ombros assenta todo o edifício. Não se pode ter uma agenda progressista sem reconhecer que as suas responsabilidades lhes conferem uma autoridade espiritual própria. Já é mais do que tempo dos prelados reconhecerem o saber das mulheres, a autoridade das mulheres, os direitos das mulheres.

Max Dashu

Fonte do texto original e imagens


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Legado de Carol P. Christ: Podemos celebrar a escuridão? Podemos dormir?

 Deuses do Céu e do Sol suplantando as Deusas da Terra... valorização da Luz e desvalorização da Escuridão... Céu suplantando a terra, ascensão dos Deuses do Céu e diminuição das Deusas da Terra...

"Segundo Marija Gimbutas, a religião da Velha Europa celebrava a Deusa como o poder do nascimento, da morte e da regeneração de toda a vida. Os povos agrícolas compreendem que as sementes devem ser mantidas num local frio e escuro durante o inverno para que possam germinar quando forem plantadas na primavera. As pessoas que trabalham arduamente durante os longos dias que começam na primavera, atingem o seu auge em meados do verão e continuam até ao outono, estão gratas pelos tempos sombrios do ano em que podem descansar os seus ossos cansados nas longas noites de inverno. As longas noites de inverno são uma altura para sonhar, uma altura em que as pessoas se reúnem à volta do fogo da lareira para partilhar canções e histórias que expressam a sua compreensão do significado dos ciclos da vida.

Os indo-europeus não eram um povo agrícola. Pastores, nómadas e cavaleiros, celebravam os brilhantes Deuses do Céu, cujo poder se reflectia nas suas reluzentes armaduras e armas de bronze. Quando os povos de língua indo-europeia entraram na Europa, casaram os seus Deuses do Sol e do Céu com as Deusas Mãe da Terra dos povos que conquistaram. Tratava-se de casamentos desiguais em que o Sol era visto como superior à Terra. O casamento infeliz de Hera e Zeus reflecte este padrão, tal como as muitas violações de Deusas e ninfas registadas na mitologia grega e romana.

As Deusas mais velhas que recusavam a violação e o casamento eram relegadas para as fendas escuras da terra, que eram vistas como a entrada para o submundo. Estas deusas "ctónicas" emergiam das profundezas da terra em fúria, causando morte e destruição. Para os antigos europeus, as serpentes que emergiam das fendas das rochas na primavera eram prenúncios de renovação e regeneração. Tal como as sementes, dormiam num local frio e escuro durante o inverno, mas emergiam na primavera para despir a pele e pôr os ovos. O submundo era entendido como um lugar de transformação - e não como se tornaria mais tarde, um lugar de morte e destruição. A serpente era um símbolo de regeneração, não um símbolo do mal.

Segundo Marija Gimbutas, o branco era a cor da morte na Velha Europa, enquanto o preto era a cor da transformação e da renovação da vida. Os antigos europeus entendiam que a vida era cíclica. Tudo morreria, mas a vida renasceria com a mesma certeza. Foram os indo-europeus que nos ensinaram que a morte é um fim a temer. E foram eles que nos ensinaram que a luz deve ser reverenciada e a escuridão deve ser evitada a todo o custo. Foram eles que desenvolveram o binário claro-escuro, em que o branco é positivo e o preto é negativo. Os indo-europeus entraram na Índia e na Europa. A noção de iluminação encontrada no hinduísmo e no budismo é um legado do binário claro-escuro dos indo-europeus. Os indo-europeus eram de pele mais clara do que os povos que conquistaram: assim, o binário claro-escuro podia ser utilizado para justificar o domínio dos guerreiros e reis de pele mais clara.

O binómio luz-escuridão está presente no enfoque da Nova Era na luz e no amor. Não há nada de "novo" nisso! Aqueles que seguem caminhos espirituais baseados na Terra afirmam frequentemente que celebram a escuridão igualmente com a luz. Mas será que o fazemos? Ou será que ainda estamos presos à glorificação indo-europeia do branco e da luz? Celebramos o dia mais longo no solstício de verão e a noite mais longa no meio do inverno. E, no entanto, há uma diferença. No meio do inverno, regozijamo-nos com "o regresso da luz". Não existe uma celebração paralela do "regresso das trevas" no solstício de verão. Pelo contrário, parece que celebramos a luz tanto no solstício de verão como no meio do inverno.

O que significaria abraçar e celebrar a escuridão tanto quanto a luz? Se nos permitíssemos dormir durante as noites mais longas, que sonhos poderiam surgir? Poderíamos reaprender que o ciclo da vida é feito de três em três: nascimento, morte e regeneração? Não em dois: o bem e o mal, a vida e a morte, o preto e o branco, a escuridão e a luz?

Poderíamos começar por ter "uma boa noite de sono" nestas longas noites de inverno. Penso que o nosso corpo pode começar a mostrar-nos e a dizer-nos que a escuridão é realmente tão importante como a luz."

 Original

Fontes das imagens:

1 - https://olhardigital.com.br

2 - https://www.correiodoporto.pt


sábado, 7 de outubro de 2023

Reconsiderando o Essencialismo - Carol P. Christ

 

Na minha aula de Ecofeminismo temos estado a discutir o essencialismo porque algumas feministas alegam que outras feministas, particularmente as ecofeministas e as feministas da Deusa, são "essencialistas". Argumentam que as visões essencialistas reforçam os estereótipos tradicionais, incluindo aqueles que designam os homens como racionais e as mulheres como emocionais. Também eu considero o essencialismo problemático, mas não concordo que o feminismo da Deusa e o ecofeminismo sejam intrinsecamente essencialistas.

As feministas da Deusa e as ecofeministas criticam o dualismo clássico: as tradições de pensamento que valorizam a razão em detrimento da emoção e do sentimento, o homem em detrimento da mulher, o homem em detrimento da natureza. Defendemos que a tradição racional ocidental lançou as sementes da crise ambiental quando separou o "homem" da "natureza".

As feministas da Deusa e as ecofeministas afirmam as ligações entre as mulheres e a natureza numa visão do mundo ambiental que reconhece a interligação de todos os seres na teia da vida.

Esta visão tem sido criticada como essencialista. Será que é?

O essencialismo é o ponto de vista segundo o qual "a essência precede a existência". As e os essencialistas (que são platonistas ou cripto-platonistas) dizem que a "ideia" ou "qualidades essenciais" de uma coisa (uma mesa, um cavalo, uma mulher ou um homem) precede a "existência" de qualquer indivíduo no grupo a que pertence; estas qualidades são universalmente - sempre e em todo o lado - expressas pelos membros do grupo.

As feministas da Deusa e as ecofeministas têm sido lidas como dizendo que é da natureza dos homens estarem separados da natureza e que é da natureza das mulheres estarem ligadas à natureza. O que estávamos realmente a dizer era algo mais subtil: que os homens, especialmente os dominantes e poderosos, imaginam que estão separados da natureza; e que as mulheres, que foram identificadas com a natureza, têm mais probabilidades do que os homens de reconhecer a ligação humana à natureza.

As feministas da Deusa e as ecofeministas também disseram que as emoções e as relações são valiosas. Defendemos que a racionalidade foi incorretamente definida para excluir os sentimentos. Sugerimos que os sentimentos em relação aos seres humanos, aos animais e a toda a natureza deveriam inspirar as nossas visões do mundo e a nossa ética. Por vezes, temos falado de uma forma de pensar que inclui os sentimentos como sendo mais suscetível de ser praticada pelas mulheres.

As feministas da Deusa e algumas ecofeministas argumentaram que as mulheres precisam da Deusa como uma imagem positiva do poder feminino e sugeriram que a imagem da Mãe Terra fosse incluída juntamente com outras imagens.

Ainda operando dentro de dualismos binários, os críticos leem as feministas da Deusa e as ecofeministas como repetindo a "velha história" de que os homens são racionais e as mulheres não. Não conseguem ver que as feministas da Deusa e as ecofeministas estão a apelar a uma reintegração da razão e da emoção, da mente e do corpo, da humanidade e da natureza - e que encontramos "inteligência" na natureza. Embora muitas de nós queiramos celebrar os poderes do corpo feminino e os valores positivos associados à maternidade, poucas de nós argumentaram que as mulheres são apenas corpos ou que devem ser restringidas a papéis de cuidadoras.

A maioria das feministas da Deusa e das ecofeministas rejeita os dualismos binários que caracterizam o pensamento essencialista - mesmo quando a situação se inverte para beneficiar as mulheres. Por isso, ficamos perplexas ao sermos classificadas como essencialistas. Tal como outras, tive de recorrer ao dicionário para perceber a acusação que estava a ser feita.

Não creio que existam "diferenças essenciais" entre mulheres e homens ou entre machos e fêmeas. Pode haver algumas pequenas diferenças entre os que têm ADN masculino e os que têm ADN feminino. A testosterona tem sido associada a comportamentos ligeiramente mais agressivos do que os produzidos pelo estrogénio. Estas diferenças são estatísticas, mas não são verdadeiras para todos os indivíduos. Os corpos masculinos e femininos são diferentes, mas também o são os corpos pequenos e os corpos altos.

No entanto, não considero que estas diferenças criem uma "diferença essencial" entre mulheres e homens. Uma "diferença essencial" é aquela que determina inevitavelmente a forma como vivemos e reagimos ao mundo. Estudos sobre culturas tradicionais e matriarcais sugerem que as culturas podem sobrepor-se a quaisquer tendências que se encontrem na nossa constituição genética. Os homens não têm de ser agressivos ou violentos - podem ser tão carinhosos e generosos como as suas próprias mães. Na natureza não-humana também há machos carinhosos: alguns pássaros machos sentam-se em cima dos ovos; os machos bonobos não são tão agressivos como os machos chimpanzés.

Embora pense que a crítica anti-essencialista (geral) do ecofeminismo e do feminismo da Deusa está errada, desconfio de termos como "o feminino", "o divino feminino" e o "sagrado feminino" que são amplamente utilizados no pensamento da nova era e em algumas partes do movimento de espiritualidade das mulheres. Suspeito que estes termos são escolhidos para evitar o "afrontamento" aos sistemas de dominação masculina provocado pela palavra "f" (feminista) e pela palavra "G" (Deusa).

O "feminino" está associado a um conjunto de qualidades, muitas vezes não claramente definido, que inclui "mais emocional e intuitivo, mais amoroso e carinhoso". "O masculino", também muitas vezes sem uma definição clara, é entendido como "mais racional, assertivo e, por vezes, agressivo". A maioria dos que usam estes termos reconhecem uma dívida para com Carl Jung.

Jung definiu "o masculino" como racional e consciente e "o feminino" como inconsciente. Jung tinha um grande respeito pelo inconsciente e acreditava que a cultura ocidental tinha desvalorizado o "feminino". No entanto, isso não faz com que o seu pensamento seja feminista. Jung sentia-se pessoalmente desconfortável com as mulheres que entravam em discussões racionais com ele ou com outros homens. Ele e os seus seguidores chamavam a essas mulheres "animus ridden" (dominadas pelo animus), um termo de código para "não femininas".

A noção de que "todas e todos nós temos os nossos lados masculino e feminino" não resolve os problemas inerentes a estes termos. O facto de Jung e os seus seguidores poderem falar de mulheres fortes como estando cheias de animus sugere que as suas teorias eram inerentemente patriarcais. Quando identificou o feminino com o inconsciente, Jung estava a reafirmar (embora talvez de uma forma mais palatável) a visão tradicional de que as mulheres são menos racionais do que os homens.

Sou uma mulher altamente racional e altamente emocional. (Tenho o meu Sol em Sagitário e a minha Lua em Caranguejo.) Não vejo a minha mente racional como o meu "lado masculino". Fazê-lo seria reconhecer que é "pouco feminino" ser racional. A minha mente é tão minha como as minhas emoções. E ambas fazem parte do meu ser feminino. Da mesma forma, não gostaria de dizer a um homem carinhoso que ele é "feminino"; isso sugeriria que cuidar não é "masculino".

Há outros problemas. Jung via as Deusas como reflectindo o inconsciente e os Deuses a consciência racional. O seu seguidor Erich Neumann afirmou que era necessário que as culturas da Deusa fossem derrubadas para que o indivíduo racional pudesse emergir.

Penso que toda esta forma de pensar sobre qualidades e comportamentos "masculinos" e "femininos" é essencialista; e concordo que o pensamento essencialista deve ser rejeitado pelas feministas.

Ao mesmo tempo, penso que é importante elevar as qualidades que têm sido associadas ao feminino, de modo a provocar um repensar dos dualismos que moldaram as culturas ocidentais (e outras) - em detrimento das mulheres e das pessoas consideradas "outras" pelo "homem racional". Os símbolos da Deusa e da Mãe Terra podem ter um "poder metafórico" para alterar estereótipos familiares, transformando a forma como pensamos o mundo.

Também precisamos de afirmar que todos os indivíduos são inteligentes (sendo a racionalidade apenas uma parte disso) e que os indivíduos têm a capacidade de captar os sentimentos das outras pessoas e de se preocuparem com elas. Isto aplica-se aos seres humanos do sexo feminino e masculino, bem como a todos os outros indivíduos na teia da vida neste planeta e no universo como um todo.

A filosofia do processo afirma que "sentir e sentir os sentimentos dos outros" é fundamental em toda a vida: humana, animal, celular, atómica e divina. Nesta perspetiva, podemos ver que, quando divorciou a racionalidade do sentimento e designou as mulheres e toda uma série de outras pessoas como deficientes em termos de racionalidade, a filosofia ocidental deu uma volta enorme e errada. Esta viragem errada tem sido usada para justificar grandes injustiças e ameaça o futuro da vida nesta terra. As feministas da Deusa e as ecofeministas estão entre aqueles que veem isto claramente.

 Publicação original

 Imagens: Creta, Junho 2023