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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Vou andar pelo campo enquanto cá andar e enquanto o houver




Esta manhã acordei com o pensamento nos caminhos da minha terra. São caminhos por onde já quase não se anda, paisagens cujo encanto não impressiona mais ninguém. Não são áreas protegidas, não vêm em nenhum roteiro turístico. De cada vez que lá vou falta mais um pedaço tomado por alguma nova construção. O mais selvagem e avassalador foi o IP não sei quantos que destruiu, entre muitas outras coisas, os carvalhos mais antigos e imponentes da área que oficialmente até seriam árvores protegidas.

Gosto, dizia, de percorrer esses caminhos, sinto que preciso deles e que eles precisam de mim. Dizem-nos @s mestr@s que o mundo precisa da nossa atenção para existir e eu acredito e é quase com um sentimento de dever ou de missão que sempre que posso percorro os campos, para garantir que perduram, que continuam a mudar de aparência em cada estação, que ainda rescendem a ervas mágicas no Verão, que se enchem de flores quando vem a Primavera e de pássaros nos ninhos e de regatos e poças de água no Inverno e que amarelecem no Outono quando a Deusa Abundância estende para nós os seus frutos e bagas todas ao mesmo tempo.
  
Entretanto perguntam-me as pessoas da aldeia que, imagine-se, já não andam pelos campos no meio dos quais construíram as habitações onde vivem, se não tenho medo de andar sozinha pelo campo. A pergunta, mais do que incomodar-me, fere a minha alma como o bulldozer fere a paisagem. Ao indagar dos hipotéticos perigos, dizem-me que vêm basicamente das cobras e dos assaltantes.

Devo dizer entretanto que considero as cobras dos animais mais sagrados de toda a criação. Quanto aos assaltantes, eles estão por todo o lado, toda a paisagem foi tomada de assalto, a cultura foi tomada de assalto, toda a terra foi tomada de assalto. Eu visito apenas o que resta do saque, por enquanto, o que vai sobrevivendo no meio de toda a desolação, e dou-lhe toda a atenção e carinho que posso e perecer nesse acto não vou dizer que seria heróico, mas alguma coisa do género.

Mas não sou assim tão destemida, também tenho os meus medos. Tenho medo duma cultura em que as pessoas se trancam em casa com medo das cobras, dos assaltantes, dos fiscais das finanças, dos banqueiros, dos polícias, daqueles que se dizem seus governantes, e aí ficam embasbacadas à frente da televisão, vendo incessantes novelas e arraiais populares, gouchas, casas de segredos e jogos de futebol, enquanto engolem as pastilhas prescritas pelo médico de família, alternando tudo isso com os vinte crimes seguidos do telejornal das oito, mais as ameaças dos ministros, no meio da euforia de plástico da publicidade. E não é apenas medo, é pavor por ver a forma vil e abjecta como se destrói a alma e se drena a força vital dum país e duma cultura. 

Luiza Frazão

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Conferência da Deusa de Glastonbury 2014


A Roda do Ano determinou que esta 19.ª edição da Conferência fosse dedicada à Deusa Anciã, que ocupa nessa mesma Roda a direcção Noroeste, o momento em que o ano termina com a morte da natureza anunciada já no Equinócio do Outono. A Deusa Anciã é portanto a Senhora da Morte, a que ceifa a vida que chegou ao seu término, recolhendo-a no Seu caldeirão, o Seu útero, o interior da Terra, onde será transformada para de novo renascer. A Morte, a que sempre se segue um novo começo, um Renascimento, foi portanto o grande tema desta Conferência: the Cauldron and the Loom, o Caldeirão e o Tear, lia-se no título do programa.

E o Tear, onde se entrelaçam os fios da Vida, veio para Glastonbury pela mão da fantástica Carolyn Hyllier, xamã, artesã, autora, compositora e intérprete, pintora… uma mulher única, um potentado, out of this world, como dizia alguém.  Carolyn Hyllier encheu o Assembly Rooms de Glastonbury com a sua instalação, misto de pintura e tecelagem, com a sua própria música de fundo, onde sobressaiam 13 tecedeiras, representantes de várias culturas do mundo que ganhavam vida quando percorríamos cerimoniosamente a instalação, interpelando-nos até às profundidades mais
inconfessadas da alma, fazendo estremecer todas as camadas de esquecimento, menosprezo e abuso com que recobrimos o feminino no mundo, desvalorizando a sua função, na aparência tão humilde mas na verdade tão grandiosa de simplesmente tecer as condições para que a vida seja possível. E de repente percebemos que as fantásticas tecedeiras míticas de Caroline Hyllier são como os grandes pilares em que assenta a própria alma do mundo…

Sob a sua alçada e com orientação da Sacerdotisa Annabel Du Boulay foi criada a Estrada da Morte com a participação de tod@s que na sexta-feira à noite percorremos em cerimónia e que em cerimónia fora transportada em ombros pelas sacerdotisas desde o Assembly Rooms até ao Town Hall nessa tarde num sublime cortejo fúnebre com o qual se pretendeu honrar a morte dando-lhe o peso e o lugar que merece, sabendo que ela é necessária para que a vida se renove e não algo de pavoroso com sabor a derrota que “civilizadamente” escondemos ou tentamos ignorar. Foi um dos momentos mais desafiadores percorrermos um-a por um-a a grande Estrada da Morte, sendo o desafio morrer para aquilo que não queremos mais na nossa vida, aprender o desapego. No fim de tod@s termos passado para o outro lado, fizemos em glória o percurso inverso sobre a grande estrada vermelha da Vida.

Foi muito interessante constatar que nunca vira tanta gente no Town Hall como este ano atraída pela energia da Deusa Anciã que forneceu ainda inspiração para uma cerimónia marcante de coroação das Anciãs, mulheres acima dos 69 anos, que encheram o palco, onde foram apresentadas por alguém íntimo que ressaltava os aspectos mais marcantes da sua vida e personalidade. Foi lindo e poderoso ver contrariar a tendência da cultura dominante para equacionar o avançar da idade com decadência, na lógica do simples mecanismo que se desgasta, em vez de com valor acrescentado, enriquecimento tanto pessoal  como para toda a comunidade.

Nesta Conferência coube-me também a mim, a convite da minha formadora na terceira espiral do meu treino de Sacerdotisa, Kathy Jones, a grande honra de apresentar um workshop sobre um trabalho inspirado pela energia da Bean Sidhe celta em que pudemos trabalhar aspectos relacionadas com a Sombra feminina.

Para muitas mulheres e alguns homens de várias partes do mundo, a Conferência é o grande momento do ano e a pequena cidade de Glastonbury enche-se de gente que vem aqui  celebrar o regresso da Deusa, honrá-La no lugar desde mundo em que a Sua energia está mais presente e mais se faz sentir, o lugar da Senhora de Avalon com a maravilhosa Sua energia de profunda cura e transformação.



Imagens da Conferência, a primeira no lugar aonde nos levou a procissão do último dia, junto à imagem da Deusa Anciã; a segunda com o grupo de Espanha, da Ibéria, ao qual se juntou a sacerdotisa de Avalon e de Rhiannon Katinka Soetens; a terceira do altar mexicano dos Mortos que criei para o meu workshop Women in White, the Universality of the Celtic Bean Sidhe, no Camino Center.  

terça-feira, 13 de maio de 2014

RESGATAR MARIA, EMPODERAR A MÃE


Hoje em Portugal é o grande dia de Maria, a Senhora de Fátima, a Nossa Senhora, a Mãe de Jesus, crê-se. Nunca lhe ouvi chamar Deusa, a não ser uma vez na televisão um padre muito preocupado porque o que se passava em Fátima era puro paganismo, adoração da Deusa. Não me lembro do nome dele, já foi há uns 30 anos, mas a verdade é que o indivíduo tinha mesmo razão – quando dizia ser adoração da Deusa, não quando se mostrava preocupado, óbvio. Como muito bem lembra Moisés Espírito Santo e outr@s, a religião popular encontrou maneira de subsistir no seio da viril, seca, sensaborona, rígida e implacável  Igreja de Roma tratando de arranjar nela um lugar de honra para a sua Rica Mãezinha sem a qual hoje em dia não haveria nada na Igreja Católica capaz de ainda mover multidões como a que hoje deve ter estado em Fátima e de que também já fiz parte e adorei a experiência.

Maria de Fátima, entretanto, como os padres a travestiram, que é exactamente uma versão católica portuguesa daquilo que o lobby gay da indústria internacional da moda faz com as manequins: pré-adolescentes, anoréticas, sem resquícios de feminidade no corpo, assexuadas, tendo mais do rapazinho do que da rapariga (mas esperem lá que isto pode levar-nos muito longe se lermos “Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima” do já referido Moisés E. Santo…), Maria, enquanto Senhora de Fátima, dizia eu, sejamos realistas, nada tem de uma Mãe. Só com muito boa vontade e um grande transe de pai-nossos e ave-marias e muita água benta é que conseguimos ver n’Ela a Grande Criadora Toda-Poderosa, a Senhora do Grão, da Abundância, da Fartura, capaz de proteger, cuidar e alimentar as filhas e os filhos, que era assim que Ela, a Deusa, que o povo levou para a Igreja de Roma, era vista e sentida.

Entretanto o processo por que passou, o lifting, levou-lhe os benéficos e fecundos atributos maternos que apenas em outras Senhoras muito mais esquecidas hoje em dia podemos encontrar, como a Senhora do Ó, a Senhora grávida, e em especial a Senhora do Leite, Essa sim, uma verdadeira Mãe capaz de alimentar o mundo. O lifting, o processo de emagrecimento, a mastectomia e, presumo, também a histerectomia por que passou a Virgem Maria, penso que estarão relacionadas com o profundo ar de apatia depressiva que apresenta e que estranha e, desconfio que perfidamente, se confunde com santidade (iluminação em outros credos). Oficialmente é o sofrimento pelos pecados do mundo, contra o seu Filho, ou seja, todo um programa de manipulação emocional capaz de nos tornar tão apátic@s e depressiv@s como a sua imagem aparenta, se não tomarmos providências.

Misericórdia, dirão, Compaixão. Concedo. Maria, que é a Senhora do Mar, do mar das emoções, é uma Deusa da Compaixão, como a oriental Kuan Yin, uma Mãe capaz de sofrer por nós e de interceder por nós junto do Pai demasiado severo e ocupado com coisas sérias para directamente atender as suas míseras criaturas... Tão interessante…  sobretudo quando se diz com desdém que os deuses do Olimpo grego tinham qualidades demasiado humanas… ahahah! E seriam apenas eles?

Ora ter na cultura como arquétipo feminino dominante uma Mãe, assexuada, anoréctica, mastectomizada, deprimida, que apenas pode oferecer compaixão, misericórdia, piedade (acho que é tudo a mesma coisa) às suas criaturas terrenas, sem qualquer poder para além do de aplacar a insensibilidade da divindade masculina, é extremamente preocupante e a minha preocupação é mesmo genuína. 

Por que terá Maria, entretanto, esse poder junto de Deus Pai também é um mistério, uma vez que Ela é tão-somente a Mãe do Seu Filho, ou seja, Deus é um Pai solteiro que usou o ventre de Maria como única tecnologia de reprodução disponível. Óbvio que Ela seria de qualidade superior, enquanto Deus, ele só podia escolher o melhor. Podemos imaginar, por exemplo, o Michael Jackson a escolher a Mãe que daria à luz os seus preciosos rebentos com um rigor o mais semelhante que a sua simples humanidade torna possível. Só me espanta no meio disto tudo é que os cristãos se insurjam tanto contra o direito dos gays de adoptarem crianças…

Mas Maria nunca poderá aspirar ao estatuto de Deusa, a menos que nós o decidamos. Nós, mulheres, que há que ter mão nisto, e foi o que fez ontem Marion Brigantia numa cerimónia no Templo da Deusa de Glastonbury em que eu não participei por ainda não ter sentido que para mim chegou esse momento. Só para mim, só eu sentir-me mais conectada com a energia de Maria. Processos que às vezes podem demorar.

 E enquanto isso o que eu faço é procurar as nossas antigas Deusas Mães capazes de nos valerem, ajudando a empoderar a Mãe em nós e no mundo para ver se pomos alguma ordem na grande casa humana.
©Luiza Frazão

domingo, 20 de abril de 2014

DON JUAN e a Motivação de Poder


“De particular relevância é o trabalho muito mais recente do psicólogo David Winter. Tal como outr@s académic@s modern@s de nomeada, Winter tem vindo a estudar aquilo que no livro do mesmo nome designa de “motivação de poder”. Como psicólogo social, dedicou-se à descoberta de padrões históricos através de medições objectivas. E embora uma vez mais convenha olhar para além daquilo que Winter sublinhou, a partir da perspectiva psicológica convencional centrada no masculino, as suas descobertas documentam decisivamente que atitudes mais repressivas para com as mulheres prenunciam períodos de belicismo agressivo.

Centrando-se numa das figuras românticas mais famosas da literatura e da ópera, o impetuoso sedutor Don Juan, a análise sociopsicológica de Winter baseia-se largamente no estudo da frequência de certos temas em documentos literários. Winter observa que, apesar da obrigatória condenação das acções de Don Juan como “perversas” e “malditas”, ele é de facto idealizado como “o maior sedutor de Espanha”. Assinala também que os motivos subjacentes de Don Juan são a agressão, o ódio e o desejo de humilhar e punir as mulheres – não os impulsos sexuais. Nota ainda algo de profunda importância psicológica e histórica: as atitudes extremamente hostis para com as mulheres são características de épocas em que as mulheres sofrem a máxima repressão por parte dos homens. 

O caso clássico relevante que cita é o da Espanha onde emergiu a lenda de Don Juan, quando os espanhóis das classes superiores haviam adoptado o “costume mourisco de manter as mulheres em isolamento”. A razão psicológica por detrás desta hostilidade acrescida, explica Winter, é o relacionamento mãe-filho tornar-se particularmente tenso em períodos assim – a par da generalidade das relações feminino-masculino.

Contextualmente, torna-se evidente que a “motivação de poder” de Winter é, na nossa terminologia, a pulsão androcrática para conquistar e dominar outros seres humanos. Tendo estabelecido ser o rebaixamento das mulheres por parte de Don Juan uma manifestação desta “motivação de poder”, Winter tabula então a frequência das histórias sobre Don Juan na literatura de uma nação relativamente aos períodos de expansão imperial e de guerra. O que documentam as suas descobertas é aquilo que nós prediríamos socorrendo-nos do modelo de alternância gilânico-androcrático: historicamente, as estórias do mais famoso arquétipo de dominação masculina sobre as mulheres aumentam de frequência antes e durante os períodos de militarismo e imperialismo exacerbados.”


in O Cálice e a Espada, Riane Eisler, Via Óptima
    

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PECADO ORIGINAL

“É necessário reconstruir a contradição homem-mulher a partir da negação do corpo da mulher, e portanto aquilo que na Psicanálise tradicional aparece como enfermidade, neurose, desadaptação, etc. converte-se numa contradição material. A mulher encontra-se desde o princípio sem uma forma própria de existir, como se o existir da mulher já se encontrasse numa forma de existência (mulher, mãe, filha, etc.) que a negam enquanto mulher. Ser mãe significa existir e usar o corpo em função do homem, e por isso uma vez mais carecer de sentido e de valor do próprio corpo e da própria existência a todos os níveis. 

Esta negação de si mesma esta interiorizada em níveis tão profundos que é como se as mulheres, ao longo de toda a sua história, não tivessem feito mais do que repetir esta história de autodestruição. Por consequência, o discurso sobre a violência masculina, sobre o vexame, a dominação, sobre os privilégios, etc. continuará sendo um discurso abstracto se não tivermos em conta o aspecto interiorizado desta mesma violência, a violência como autonegação, negação duma existência própria. A negação de si mesma é posta em marcha a partir do nascimento, a partir da primeira relação com a mãe, onde esta já não se encontra presente como mulher com o seu corpo de mulher, estando ali como mulher do homem e para o homem. (…)

O facto da menina viver a relação com a pessoa do seu sexo apenas através do homem, com essa espécie de filtro que existe entre ela e a mãe, é a razão mais profunda da divisão que encontramos entre uma mulher e outra mulher; nós as mulheres estamos divididas na nossa história desde sempre, não apenas porque cada uma de nós está unida socialmente ao marido, às e aos filh@s – este é apenas o aspecto visível da separação – a divisão dá-se a um nível mais profundo, ao não conseguirmos olhar-nos uma à outra, ao não sermos capazes de contemplar o nosso corpo sem termos sempre presente o olhar do homem. (…)

Num artigo em “L’Erba Voglio”… insistia na relação interrompida com a mãe, ou no mínimo deformada desde o começo precisamente porque a mãe não é a mulher, apenas “a mãe”, ou seja, a mulher do homem. Do facto de que a mulher não encontra na relação com a mãe o reconhecimento da sua própria sexualidade, do seu próprio corpo, procede depois toda a história sucessiva da relação com o homem como relação onde a negação de tudo aquilo que tu és, da tua sexualidade, da tua forma de vida, já se produziu.”

Lea Melandri, La Infamia Originaria (excertos),
citada por Cacilda Rodrigañez Bustos em El Assalto al Hades

Imagem: Arthur Hughes