"Afirmou Ernest Borneman que o surgimento do patriarcado foi uma contrarrevolução sexual, na qual se perderam os hábitos sexuais das mulheres (désaccoutumance sexuelle, na versão francesa da obra); que as mulheres só puderam ser subjugadas despojando-as da sua sexualidade, o que é consistente com os mitos originais dos heróis solares e santos, que matam o dragão, a serpente e o touro. O rasto destes hábitos sexuais, que nos chegam através da arte e da literatura, é muito importante porque nos dá uma ideia do que se destruiu com a contrarrevolução sexual.
Um lugar-comum dos hábitos perdidos são os círculos femininos e danças do ventre universalmente encontradas por todo o lado, desde os tempos mais remotos (pinturas paleolíticas como as de Cogull (Lérida) e Cieza (Múrcia), cerâmica Cucuteni do 5.º milénio a C., arte minoica, etc.), que nos falam duma sexualidade autoerótica e partilhada entre mulheres, de todas as idades, desde a infância. Entre os testemunhos escritos, cito os versos de Gongora sobre as mulheres que habitavam as nossas serranias ainda no séc. XVI, e que se reuniam para bailar:
En los pinares de Júcar
Vi bailar unas serranas,
Al son del agua en las piedras
Y al son del viento en las ramas.
No es blanco coro de ninfas
De las que aposentan el agua
O las que venera el bosque,
Seguidoras de Diana:
Serranas eran de Cuenca,
Honor de aquella montaña,
Cuyo pie besan dos ríos
Por besar de ellas las plantas.
Alegres corros tejían,
Dándose las manos blancas
De amistad, quizá temiendo
No la truequen las mudanzas.
¡Qué bien bailan las serranas!
¡Qué bien bailan!
(…)
As Serranas, como as chamadas Amazonas em outros lugares do mundo, eram mulheres que iam viver para o monte para preservarem os seus hábitos sexuais. Durante séculos, e com ligação a redutos do antigo paganismo, sobreviveram entre a cumplicidade e a calúnia (como a do Romance de Serra da Vera, que apresenta estas mulheres como salteadoras que sequestravam homens para saciarem a sua lascívia, matando-os em seguida). No entanto, a realidade podia mais do que qualquer deformação, calúnia e mitologia juntas, e a sua existência contaminava a das outras mulheres que abandonavam as aldeias pela calada da noite para se juntarem a elas.
No séc. XVII, desencadeou-se, como se sabe, uma campanha de extermínio contra estas mulheres, que passaram à história convertidas em bruxas.
A natureza sexual dos jogos e círculos femininos foi também estudada a partir das letras das suas canções que chegaram até nós (1). O hábito quotidiano das mulheres se juntarem “para bailar”, e para se banharem, é ancestral e universal, e dá-nos um vislumbre do espaço coletivo de mulheres impregnado de cumplicidade e baseado na intimidade natural entre mulheres, que hoje apenas prevalece em recônditos lugares do mundo. Em África, existem aldeias onde as mulheres ainda se reúnem à noite para dançar (bailes claramente sexuais, como se pode ver numa reportagem do Sudão (2).
A imagem das mulheres do quadro “o Jardim das Hespérides”, de FredericK Leighton (séc. XIX) é outro vestígio dessa relação de cumplicidade e de intimidade entre mulheres.
Os hábitos sexuais das mulheres remetem-nos para a sexualidade não falocêntrica das mulheres; para a diversidade da sexualidade feminina, e a sua continuidade entre cada ciclo, entre uma etapa e outra. Uma sexualidade diversa e que se diversifica ao longo da vida, cujo cultivo e cultura perdemos.
(…)
Vivemos num ambiente em que o sistema libidinal humano, desenhado filogeneticamente para travar relações humanas, está congelado. Hoje as mães vivem longe das suas filhas e as avós vão de visita a casa d@s net@s; a pessoa de família que nos dá a mão quando adoecemos vive no outro extremo da cidade, e mal conhecemos o vizinho ou a vizinha" (…)
Cacilda Rodrigañez Bustos