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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A VERDADEIRA FACE DE HERA


Mirella Faur

Hera e Juno, as padroeiras dos relacionamentos

“O meu canto louva Hera, filha de Rhea, Rainha imortal, irmã e esposa de Zeus. Sentada no seu trono
dourado Ela recebe as homenagens dos deuses do Olimpo, que A glorificam e honram tanto quanto ao
Zeus, pois a ambos pertencem o cetro e o céu.”

Hino a Hera, de Homero (adaptado)

Hera, a Rainha Celeste, uma das mais antigas e poderosas deusas do mundo mediterrâneo, nos primórdios reinava sozinha e sem consorte, verdadeira herdeira da tradição da Grande Mãe. No entanto, poetas e historiadores no período helenístico e clássico Lhe atribuíram um papel de menor importância , descrevendo-A como a esposa ciumenta e vingativa de Zeus, uma deusa insegura, cruel e injusta, padroeira do casamento e da fidelidade, que ela respeitava e cumpria apesar do alto preço a pagar. Zeus era um deus todo-poderoso, com comportamento tipicamente patriarcal , adúltero e dominador, que violentava gabava das suas conquistas e dos filhos ilegítimos. Hera aparece nos mitos clássicos e poemas homéricos como a consorte dependente e fiel, que u s a s e u s p o d e r e s sobrenaturais e sua astúcia para se vingar das traições conjug a i s , matando a s amantes e os filhos bastardos sem, no entanto, confrontar ou abandonar seu marido infiel. Apesar desta descrição negativa, o culto de Hera floresceu em vários lugares, seus templos imponentes e faustosos sendo encontrados da Babilónia até à Síria, Grécia, Creta e Roma, os mais famosos sendo os de Hierápolis, Sparta, Olímpia, Micenas, Argos, Cós, Samos, Corinto, Attica, Beotia, Epidaurus, Euboea, Platea e Creta.

Como se explicam os séculos de devoção a uma deusa“vulnerável” e misógina, com os inúmeros festivais e celebrações - chamados Heraea - em Hierápolis (com procissões, oferendas nos altares, banquetes e competições desportivas) ou Olímpia (com jogos e
competições de corridas entre mulheres de várias faixas etárias) e as procissões anuais das sacerdotisas levando as estátuas de Hera para serem lavadas no mar?

Para compreendermos estas incongruências históricas devemos perscrutar os mitos arcaicos e a origem do mito clássico. Na era de Touro Hera era honrada como a deusa celeste com “olhos de vaca” (símbolo de beleza e riqueza), que presidia sobre todas as passagens da existência feminina.

O nome grego Hera significava A Senhora e A Escolhida, atribuído à uma deusa minóica do céu, da tempestade e do vento, sua essência sendo a soberania da terra e seus títulos definindo a regência das fases da vida da mulher e da natureza. Assim Parthenia era a donzela, a lua nova, a primavera, Teleia – a mulher adulta, a lua cheia, o verão e Khêra, a viúva ou mulher solitária, a lua minguante e o inverno . A l é m d e s t a apresentação tríplice, Hera ainda tinha como atributos: Ataurote - a virgem, Nymphomene - a noiva, Zygia- a casada, Gamelia - padroeira do casamento, Antheia - deusa das flores, Acrea – a senhora das alturas, Hippia – padroeira das corridas de cavalos. Suas imagens mais antigas a representam nos altares dos templos como um pilar de madeira sagrada envolto em panos ou uma mulher majestosa e bonita, os cabelos presos por um diadema, sentada sobre um trono e segurando um cetro com um cuco no topo (seu animal sagrado além do falcão, do pavão e da vaca) e uma romã (indicando a sua regência também sobre a morte, além davida). Hera aparecia como uma deusa lunar e celeste, que controlava o céu, a terra, o ar e a água, protegia as mulheres, seus ritos de passagem e relacionamentos, regente da arte, da ciência, do tempo e das profecias. Seu culto antecede em muito o de Zeus, até mesmo em Olímpia, onde seu templo foi depois dedicado a Zeus.

Quando as tribos invasoras vindo do Norte europeu invadiram a Grécia, o culto de Hera tornou-se um empecilho e assim ela foi transformada na consorte de Zeus, deus celeste e senhor dos raios. O casamento mítico de Hera e Zeus representa a derrota do culto matrifocal na Grécia e Creta prémicênica pelos cultos patriarcais e a amalgamação forçada das duas tradições e seus panteões. Os eternos conflitos do casal divino simbolizam as batalhas entre os seguidores de Zeus e os adoradores de Hera. A permanente tensão conjugal e a esterilidade matrimonial descreviam o contraste entre a antiga descendência matrilinear e as novas imposições da hierarquia patrilinear. Zeus negou a Hera realização sexual e emocional e nascimento de um filho legítimo, com medo de que ele poderia usurpar a sua soberania (assim como ele fez com o seu pai Chronos). Hera – por sua vez – recusou-se a gerar um herdeiro que perpetuasse o direito e a hegemonia patriarcal. Os inúmeros estupros de deusas e mortais atribuídos a Zeus representavam a violação dos direitos matrifocais e o ostracismo imposto às sacerdotisas de Hera pelos adeptos de Zeus.

A perseguição e punição das amantes de Zeus por Hera, era uma metáfora que simbolizava o compromisso sagrado que impedisse a submissão das sacerdotisas à nova ordem patriarcal. A matança dos filhos destes estupros era uma medida extrema para evitar a existência de descendentes leais à nova ordem patriarcal. A severidade do comportamento de Hera com seus inimigos reflete o desespero das seguidoras do seu culto, que lutaram até a morte para preservar a linhagem matriarcal e os direitos sagrados das mulheres. Como consequência da instauração da nova ordem patriarcal, as mulheres foram proibidas de exercer práticas curativas, terem acesso aos estudos, cultos e calendários lunares, sendo punidas pelas transgressões das regras. Até nos dias de hoje, a violência contra as mulheres é atribuída ao comportamento errado, omisso, devasso, rebelde, fútil ou carente das mulheres.

No panteão Olímpico Hera aparece como filha de Chronos e Rhea, irmã de Zeus que se apaixonou por ela, mas Rhea não lhe deu seu consentimento por conhecer a sexualidade voraz e desprovida de ética do seu filho. Para conseguir vencer a resistência de Hera refratária aos seus avanços, Zeus lançou mão de um estratagema, se transformando em cuco, que parecendo enregelado de frio foi acolhido nos braços compassivos de Hera. Depois que Zeus reassumiu suas feições ele a violentou, forçando-a aceitar o casamento, festejado por todas as divindades. O mito conta que a celebração do casamento durou 300 anos e em seguida o casal divino foi morar no monte Olimpo, onde Hera passou a dividir o trono com Zeus e ser a única deusa casada. No início a relação foi amorosa e pacifica, mas depois começaram as brigas perpétuas, com traições de Zeus, fidelidade e vinganças de Hera, humilhações e disputas recíprocas. Apesar desta união tumultuada, Hera passou a ser reverenciada como a esposa modelo, que permanecia fiel e monógama, apesar da infidelidade do marido e das investidas de outros deuses.

Enquanto Zeus gerou vários filhos fora do casamento, da sua união com Hera nasceram apenas as deusas Hebe e Eileithya que, segundo algumas fontes, não eram filhas, mas personificações da própria Hera (sua face jovem e a protetora dos partos). Para se vingar de Zeus pelo nascimento de Athena, Hera gerou de forma partenogenética (sem parceiro) os deuses Ares (odiado por Zeus), Hefaisto (rejeitado pela própria Hera por ter nascido aleijado) e uma criatura monstruosa, Tifon, a serpente de cem cabeças, inimiga mortal de Zeus.

A relação conjugal de Zeus e Hera tornou-se o protótipo do casamento humano, com brigas, separações e repetidas voltas, Hera se retirando na solidão durante algum tempo, mas voltando após a renovação da sua “virgindade” ao se banhar na fonte sagrada de Kanathos. Em troca da sua fidelidade Hera esperava a mesma conduta do seu cônjuge e sua decepção se manifestou na amargura, ciúme obsessivo, raiva e vingança, bem como na projeção da sua libido reprimida e manifestada pela licenciosidade de Zeus. Sua atuação feminina era mais como esposa do que como mãe, podendo ser definida como uma “matriarca contida e reprimida em um mundo patriarcal”, sem ter tido o direito e as condições mútuas para que fosse celebrado o verdadeiro hieros gamos, o casamento sagrado e consagrado.

Os mitos clássicos enaltecem apenas a virtude da fidelidade de Hera, sem mencionar seus antigos atributos de proteção, força e nutrição. A ênfase está no ciúme mórbido, na maldade cruel das vinganças, na imagem maldosa de Hera, fato atribuído à vida conjugal de Homero, perseguido e atormentado por uma esposa vil e ciumenta.A equivalente romana de Hera, a deusa Juno tinha um mito semelhante, mas uma maior autoridade e relevância, por terem sido agregados ao seu culto os atributos lunares e de fertilidade da terra de uma antiga deusa mãe. Para os gregos, a união perene de Hera e Zeus simbolizava a importância da manutenção do casamento.

Para os romanos o casamento, lar e família tinham uma importância conjunta maior, louvando-se também a fertilidade e a maternidade como atributos divinos. Juno Natalis era a guardiã dos partos e da maternidade, Juno Lucina conduzia a alma para a luz e Juno Pronuba protegia as mulheres casadas, o mês de junho sendo a ela como favorável aos casamentos. Acreditava-se que cada mulher possuía uma individualidade feminina sempre renovada e jovem nomeada juno,
equivalente ao genius dos homens. O asteróide Juno simboliza o princípio de relacionamento e da parceria equilibrada e harmoniosa, sendo associado com os signos de Libra e de Escorpião, definindo a aspiração para a união perfeita e os sofrimentos e complexos psicológicos oriundos da não realização. Ele descreve os jogos de poder, as manipulações, repressões, projeções, decepções, medos e conflitos encontrados nos relacionamentos desiguais e desajustados e indica as soluções para a sua transmutação e cura..

Para as mulheres que buscam resgatar os verdadeiros valores e conceitos da tradição da Deusa é imprescindível descartar a visão patriarcal de Hera como uma deusa vulnerável e dependente e A honrar como protetora e defensora, que cuida dos seus direitos, favorecendo e atraindo relacionamentos justos, leais e de honesta parceria. Precisamos transformar o arquétipo distorcido da Hera como esposa infeliz e dependente enraizado no nosso inconsciente, na cultura, literatura e ordem social vigente. Resgatar a Hera arcaica que vive em nós - simultaneamente com a sua imagem negativa mais recente – significa ver Hera como um incentivo para que amemos mais a nós mesmas, buscando nosso aprimoramento individual, cuidando dos nossos corpos, mentes, corações e limites.

Devemos ter a coragem para exigir um relacionamento equitativo, harmonioso, honesto e equilibrado , vivendo com integridade, lealdade e respeito, sem nos deixar limitar ou prender por medos , co-dependências e concessões. Pede-se a Hera a benção para um casamento sagrado, uma união alquímica que una as almas e não somente corpos, corações ou interesses, em busca da fusão com o divino amor, que tudo permeia e que existe em todos e no todo.

http://www.teiadethea.org/files/jornais/jornaljulho09.pdf

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ritual de Litha

PARA A MÃE TERRA

AS VIRGENS NEGRAS


As Virgens Negras são registos valiosos duma época em que a Terra era reverenciada como Mãe e todas as criaturas eram Seus filhos.

Diferentes das Virgens Brancas - que personificam dogmas e virtudes cristãos de obediência e resignação-, as Negras têm em comum as qualidades telúricas e a sua localização em sítios arqueológicos que comprovaram a existência de deusas pré-cristãs. Tradições religiosas antigas – como a gnóstica, hebraica e cristã – contêm elementos da mitologia e iconografia das deusas asiáticas, sumérias, egípcias e europeias, guardando a sua associação com luz e sabedoria, mas desprovidas da unidade primordial entre céu e Terra. Inúmeras das imagens e estátuas destas deusas são negras, cor que evoca o mistério impenetrável da Fonte Criadora. Ísis e Shekina são cobertas por mantos ou véus pretos, Cibele era venerada como um bloco de pedra preta, Deméter e Athena tinham versões escuras e a belíssima e tocante estátua de Ártemis de Éfeso, a Mãe dos mil seios, era negra.

Nos primórdios do cristianismo, o princípio feminino era representado por Virgens Negras e Brancas e por uma multidão de santas, todas brancas, com exceção de Sara, a Egípcia, padroeira dos ciganos. À medida da expansão e do fortalecimento da religião cristã, as estátuas de mármore e bronze das deusas pré-cristãs foram destruídas, o seu culto perseguido e proibido. Porém, em lugares remotos dos países cristianizados, fiéis dos antigos cultos preservaram os seus ídolos domésticos e pequenas estátuas, escondendo-os nas grutas e fendas da terra, em criptas dos templos antigos, perto de fontes e rios e no oco das árvores. Alguns foram encontrados na proximidade dos centros religiosos dos cátaros e templários e nos lugares onde foi preservado o culto da Mãe Divina e de Maria Madalena. Em todos estes locais “apareceram” posteriormente e de maneira milagrosa imagens das Virgens Negras, encontradas por pessoas humildes, animais ou crianças. Muitas delas foram perdidas ou destruídas por fanáticos e guerras, enquanto a sua verdadeira origem e significado estavam sendo esquecidas. No entanto, a sua lembrança influenciou gerações posteriores de escultores e artistas religiosos que reproduziram as suas imagens, surgindo assim representações mais recentes, com características e trajes cristãos, mas preservando a cor negra. No século VII e VIII chegaram na Europa estátuas originais das deusas antigas trazidas do Oriente Médio pelos Cruzados. Na Idade Média os altares dedicados à Virgem Negra na Europa eram os mais procurados e venerados. Os antigos locais sagrados e templos das deusas pré-cristãs foram adaptados à nova religião e dedicados a Maria, para quem foram “transferidos” atributos e poderes da Deusa, pois não tinha sido possível extinguir da alma popular a veneração milenar de uma Mãe Divina.
A partir do século X o culto das Mães negras intensificou-se de tal forma que ultrapassou o do Pai e Seu Filho. Reis, guerreiros, camponeses, mulheres, doentes e peregrinos ajoelhavam-se juntos perante as imagens das Virgens milagrosas nas inúmeras igrejas e grutas a Elas dedicadas nos países europeus, orando, fazendo os seus pedidos e deixando votos e contribuições. Milagres e aparições aconteciam com frequência, principalmente curas de mulheres, enfermos e crianças. A Virgem Negra tornou-se motivo predominante na literatura mística e alquímica dos séculos XII e XIII e o impulso para a construção de inúmeras catedrais, igrejas e permanentes romarias.

As tentativas da igreja cristã para explicar a cor negra das estátuas eram equivocadas e sem fundamento, alegando escurecimento pelo fumo das velas ou reações químicas dos pigmentos das tintas. Era necessário ocultar e distorcer o verdadeiro significado da cor preta, atributo milenar da terra, do inconsciente, da fase escura da Lua, do poder misterioso e sagrado da mulher, da sabedoria ancestral que aceitava a morte seguida pelo renascimento, assim com o dia segue à noite. O culto da Virgem Negra representava a perpetuação do princípio feminino numa cultura e religião patriarcais e misóginas e por isso devia ser abolido ou desacreditado. Apesar da oposição dos teólogos cristãos, da perseguição pela Inquisição, da destruição de inúmeras imagens pelos protestantes, revoluções, guerras e reformas políticas, do “disfarce” tingindo as estátuas de branco, o fenómeno complexo e multifacetado das Virgens Negras persistiu ao longo dos séculos. As fogueiras da Inquisição foram seguidas pela frieza da Era da Razão e do materialismo científico, que antagonizava tudo o que se relacionava com o princípio feminino. Porém, nos séculos XIX e XX, aparições marianas reanimaram o culto da Virgem Negra e a necessidade de conciliar religião e sexualidade trouxe de novo os valores telúricos e femininos à consciência coletiva. Algumas das Virgens Negras tornaram-se símbolos religiosos e mesmo padroeiras nacionais, como a Virgem de Guadalupe, a Madona Negra de Czestochova (Polónia) e a nossa Senhora de Aparecida. Atualmente intensificou-se o movimento internacional ao redor de imagens de Madonas e Deusas Negras na esperança de criar uma ponte de ligação entre grupos étnicos, movimentos ecológicos e feministas, teologia da libertação e teorias filosóficas e políticas. No aeroporto de São Francisco, Califórnia, existe uma escultura de Beniamo Bufano reproduzindo uma Madona Negra com seios nus, semelhante à deusa Astarte, enquanto outra na Califórnia evoca Ísis. Em 1991 na Polónia houve um “encontro” de Madonas Negras, que reuniu em exposição a hindu Kali com a Virgem de Guadalupe e a Madona de Czestochova. A intensa e extensa veneração da Madona Negra em Itália tem um equivalente no Brasil no culto das deusas afro-brasileiras e nas oferendas anuais nas praias para Iemanjá, a Negra Mãe das águas, enquanto em França, em Sainte Marie de la Mer, procissões, missas e oferendas no mar reverenciam a negra Sara Kali.

Apesar da diversidade de aparências, origens e antiguidade, as Virgens Negras evocam as memórias ancestrais do culto da Grande Mãe, fonte de vida e regente de todas as suas fases, do nascimento à morte e regeneração. Elas são a continuação - sob uma nova denominação e na nova religião - da reverência ancestral ao sagrado poder feminino. Autênticas ou réplicas modernas das antigas estátuas, as Virgens Negras evocam a sua origem ctónica, aquática e vegetal e as memórias ancestrais da Mãe Terra, pois a sua antiguidade supera a das religiões e civilizações.

Elas têm um intenso poder de cura e transformação, pois as Virgens Negras possuem o antigo axé das deusas telúricas, Senhoras da vida, morte e regeneração. A sua aparição nos sonhos, visões e terapias das mulheres contemporâneas representa uma mensagem do feminino sagrado e transcendente, um incentivo para transpormos as pontes que nos afastam e separam e o aviso urgente e premente de reconhecermos o poder sagrado da Terra e da mulher, da diversidade de todas as formas de vida e da necessária inclusão em uma harmoniosa e abrangente parceria. Nossa sobrevivência como Filhos da Terra depende da nossa capacidade de resgatar, honrar e cuidar da Sua luz, que brilha oculta na escuridão da nossa inércia, indiferença, esquecimento ou ganância.

http://sitioremanso.multiply.com/journal/item/70
Imagem 1: Senhora de Aparecida, Brasil
Imagem 2: Nossa Senhora de Einsiedeln, Suíca

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A LEI NATURAL


A GRANDE MÃE PRIMORDIAL

O continente e o conteúdo

À força de rejeitar tudo o que a feminilidade representava como solução para a angústia do homem, criou-se uma humanidade perfeitamente neurótica, pois se o rapazinho é obrigado a praticar este acto é porque não lhe vestiram na mais tenra idade uma veste feminina, como se fazia antigamente. Uma concepção estúpida e formal da virilidade impediu a continuação desta prática que, com origem em motivos inconscientes, era muito mais válida que a destruição do amor que educadores desprovidos de educação tentam levar a cabo, criando uma putativa educação sexual.

É, uma vez mais, toda a nossa sociedade que está em causa. A masculinização da sociedade conduziu a ignorar aquilo que constitui o próprio fundamento de toda a relação psicossocial, a saber, os laços afectivos que unem os membros duma mesma família, dum mesmo clã. E estes repousam muito particularmente na relação mãe-filho (rapaz ou rapariga). Suprimindo a noção de Mãe-Divina, ou submetendo-a à autoridade dum deus-pai, desarticulou-se o mecanismo instintual que estabelecia o primitivo equilíbrio. Daí provêm as neuroses e outros dramas que transtornam as sociedades paternalistas, incluindo aquelas que se consideram mais evoluídas, aquelas que pretendem, com belas palavras, atribuir à mulher um lugar de honra, um lugar escolhido pelo homem.


Na verdade, o homem não pode escolher o lugar da mulher nem o seu próprio lugar face à mulher. Ele deve obedecer a uma lei inelutável, que é, para retomar a definição de Montesquieu, uma lei de natura, contra a qual a lei da razão nada pode. Esta lei de natura concretiza-se no instinto, que não é algo que possamos negar. Negá-lo, como fizeram tantos moralistas e psicólogos, antes de Freud, é abrir a via dos desregulamentos psíquicos, porque todo o comportamento se ressente do facto de não estar apoiado na lei natural.

Esta querela entre natureza e razão, que de resto sempre foi uma falsa questão, é responsável pela cegueira desta sociedade que, ao querer corrigir o instinto, cortou o ser humano daquilo que era a sua natureza.

A verdade é que o instinto não se corrige. Sublima-se, transcende-se, e isso graças a uma razão que o dirige, mas que em caso algum o deve encerrar em limites estreitos e negá-lo. E o instinto assusta, porque é forte e porque é inelutável. Este estudo sistemático do princípio feminino na cultura celta tem pelo menos o mérito de trazer à luz da consciência a ideia de que o instinto é primordial, no sentido etimológico do termo, que ele é necessário, que é um factor de progresso e de evolução.

Mas o instinto tem algo de selvagem, de “bárbaro”, mesmo. E é por aí que ele atinge a “grandiosidade”. Ele é o único motor dos nossos sentimentos, da nossa acção. E, tendo em conta os nossos hábitos morais, é por vezes difícil formulá-lo e olhá-lo de frente: a verdade choca-nos. Quando ousamos afirmar que todas as relações entre homens e mulheres, quaisquer que elas sejam (conjugais, filiais ou outras) são necessariamente relações incestuosas entre mãe e filho, atraímos as mais ásperas críticas e somos tidos por obcecados. E no entanto…

O homem é, com efeito, um ser incompleto e tem consciência disso. O seu medo e a sua atracção pelo abismo negro (o nada de onde provém), o seu medo e a sua vertigem diante da morte (o nada que o espera) tornam-no um ser frágil que procura a segurança a todo o custo. Essa segurança é a mãe, tanto para o homem como para a mulher. Mas o homem, física e afectivamente, possui um meio de reentrar, pelo menos provisoriamente, na mãe. Não é preciso insistir: qualquer tendência da psicanálise já esclareceu suficientemente bem que o pénis, pequena parte do homem, mas uma parte exterior e susceptível de aumentar, constitui o substituto do próprio homem. Ele pode, portanto, em certas ocasiões, reactualizar de modo fantasmagórico o regresso ao paraíso que a mãe representa.

E toda a mulher é uma mãe, real ou potencial. O homem está portanto biologicamente sujeito à mulher, quer ele queira, quer não. Ele é o conteúdo, enquanto a mulher é o continente: isso constitui um estado de inferioridade muito óbvio para o homem e ele passará depois todo o seu tempo a negar tal realidade para provar a si próprio que é superior. É assim que se explica a acção masculina, o facto dos homens serem dotados para a acção, para a violência e o combate. Esta acção é o único meio que lhes resta para tentarem afirmar-se.

E se o homem é o conteúdo, portanto um ser inferior, ele arroga-se o direito dum ser superior, mostrando que a sua força activa é a única capaz de proteger a espécie. Até conseguiu persuadir a própria mulher dessa superioridade, simbolizada pelo reconhecimento do pénis do rapazinho no momento do nascimento, feito pela mãe ou por qualquer outra mulher que ajude no parto. O famoso grito: “É um rapaz!”, repetido geração após geração, é bastante eloquente a esse respeito. Quando nasce uma rapariga, aceita-se; mas quando nasce um rapaz, rejubila-se.

No entanto, o continente, a mãe, que é o mesmo que dizer a mulher , é a própria realização do Paraíso. Ela realiza-o sob dois aspectos duma mesma realidade: ela contém o filho e o amante. De resto, como alguns psicanalistas já referiram, a vagina da rapariga não é reconhecida pela mãe, nem pelo pai, no momento do nascimento. Tal reconhecimento far-se-á, no entanto, um dia, e será o homem a efectuá-lo. Assim, para se afirmar, para tomar consciência de quem é e sobretudo do seu poder, a mulher precisa do homem. Traduzido em linguagem mitológica dá: o homem precisa duma deusa, mas a deusa precisa do homem. É esta a razão pela qual se perpetuaram, sob formas diversas, os antigos cultos da divindade feminina.

Na cultura celta, vimo-la sob os seus diferentes aspectos, ou melhor, sob as diferentes máscaras que os homens lhe atribuíram. Todos os nomes que lhe foram dados, entretanto, não nos devem fazer esquecer que se trata dum ser único, da mãe primordial, da primitiva deusa, da grande rainha dos começos.

Jean Markale, “La Femme Celte”, Petite Bibliothèque Payot

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O FEMININO RESGATADO OU A POESIA NO QUOTIDIANO




A dimensão poética do feminino, que dá sentido à vida, não é exclusividade da mulher: ela faz parte da evolução de todo o ser humano.

O que falta ao nosso mundo é a conexão anímica. A afirmação, de Carl Gustav Jung, poderia ser complementada por outra, de Roger Garaudy: “Viver, antes de mais nada, é participar do fluxo e da pulsação orgânica do mundo”.

A conexão anímica citada por Jung e a qualidade de vida proposta por Garaudy estão estreitamente vinculadas ao que chamamos de feminino no ser humano: um potencial interno a ser trabalhado tanto no homem como na mulher, feito de valores hoje considerados supérfluos, superficiais, pouco úteis para a luta pela sobrevivência básica e por isso relegados a um segundo plano.

Entre esses valores estão a estética, a intuição, a poesia, o raciocínio e o pensamento não lineares, os sentimentos, a sincronicidade, os sonhos... Abrir-se para o feminino, portanto, é entrar em um mundo de mistério e encantamento — uma vivência poética que dá cor, entusiasmo e significado à vida.

De acordo com Erich Neumann, um dos seguidores de Jung, a civilização ocidental vive uma crise motivada pelo excesso de valorização do masculino, representado pelo arquétipo do Pai, que leva à inflação espiritual do ego.

O reequilíbrio pode ser obtido aproximando-nos do inconsciente, representado pelo feminino, não só através do arquétipo da Grande Mãe, mas de todas as qualidades simbólicas do feminino pertinentes aos vários ciclos evolutivos da consciência.

Outro grande perigo da atualidade citado por Neumann é a desvalorização das forças transpessoais. Tudo o que não pode ser compreendido e analisado pelo ego não é encarado com respeito, mas simplesmente reduzido, como algo sem importância ou ilusório. Anulado, reprimido ou ignorado, o mistério perde sua força. Assim, o universo perde seu caráter assustador, mas, sem o mistério sagrado que transcende o ego, a vida torna-se mecânica e sem sentido.
A vivência do feminino não torna menos árdua a luta pelos objetivos e metas propostas pelo mundo atual. Mas pode transformá-la em uma aventura corajosa e criativa, com surpresas agradáveis, mesmo através das dificuldades.

Pela sua própria condição biológica, a mulher está naturalmente mais próxima do feminino. Ao contrário do que se poderia pensar, essa proximidade às vezes dificulta o desenvolvimento desse potencial, porque o coloca muito próximo de um nível de atuação inconsciente. Tanto quanto o homem, a mulher deve se esforçar conscientemente para diferenciar e desenvolver os valores pertencentes ao feminino.

O potencial feminino passa por um desenvolvimento simbólico ao longo da vida. Para estudar melhor as possibilidades que se abrem em cada fase evolutiva, vamos nos reportar ao referencial que propõe o analista junguiano Carlos Byington: fase matriarcal, patriarcal, de alteridade e cósmica.

Fase 1 matriarcal — Aqui, o feminino encontra-se em seu próprio elemento, pois o arquétipo dominante é o da Grande Mãe. Devemos observar, porém, que além das valores conhecidos, pertinentes ao aspecto maternal do símbolo, há outras características do feminino igualmente importantes.

Neste estágio psíquico, a consciência não se encontra ainda completamente destacada do inconsciente; é permeada pelo seu fluxo, tornando-se difusa e periódica. Essa condição favorece muito a inspiração criativa, a intuição, qualidades que emergem de modo misterioso, não influenciáveis pela vontade do ego. Convém lembrar que o inconsciente é que é criativo, não o consciente. Portanto, maior abertura e proximidade do inconsciente favorecem a expressão criativa, em todos os níveis, seja ela artística, científica, ou uma busca de novas atitudes.
Outra qualidade do feminino à disposição de homens e mulheres é a consciência do tempo lunar, que enfatiza a qualidade, e não a quantidade de tempo. Com o desenvolvimento desse potencial, podemos abrir-nos para a apreciação do momento mais favorável à execução de determinadas ações ou objetivos. O tempo solar seria o pólo masculino, o que enfatiza a pontualidade e a exatidão da ordem cronológica temporal.

A compreensão relacionada com o feminino não se dá por um ato do intelecto. É
o coração, e não a cabeça a sede da consciência matriarcal. No entanto, como as percepções estão conectadas com o ego, não podem ser consideradas inconscientes. A compreensão acontece por uma abertura afetiva a um novo conteúdo que, assimilado pela totalidade da pessoa, provoca uma alteração global — e não apenas intelectual — da personalidade.

O feminino, com seu caráter restaurador (pois enfatiza a quietude, a tranquilidade, o mistério), está ligado às qualidades noturnas. A força regeneradora do inconsciente atua em segredo e permite que nos aproximemos dessa dimensão, às vezes assustadora, da escuridão, através da suavidade da feminino. Para desabrochar com segurança, o crescimento, a regeneração, a transformação, precisam das qualidades femininas do silêncio, da paciência, da receptividade.
Outra qualidade importante é a ação pela entrega, pelo “deixar acontecer”, a “ação pela não-ação” dos orientais, o aprendizado do acolhimento, não só na maternidade biológica, mas no carregar e deixar amadurecer uma nova cognição, uma nova atitude.

Para a mulher, o maior perigo nessa fase é justamente atuar o feminino apenas no plano externo, concreto, projetando-o na maternidade biológica. Quando isso acontece, o feminino não se desenvolve no plano interno, simbolicamente, e então ocorre urna grande perda para a personalidade, em termos existenciais.

Para o homem, o feminino será realizado, necessariamente, como evento psíquico e não físico. E ele também tem que se defrontar com um perigo intenso: a permanente desvalorização do feminino. Como a consciência deve se desligar do inconsciente e seguir para a fase patriarcal, tudo o que estiver ligado à fase matriarcal deverá ser momentaneamente desvalorizado para permitir o desligamento e a passagem à fase seguinte. No entanto, muitos homens (e mulheres também) permanecem fixados na desvalorização do feminino, encarando suas qualidades como algo negativo, a ser superado em definitivo, e não conseguem recuperar, em si mesmos, a força simbólica desse potencial.

Na fase matriarcal, o feminino desabrocha em sua plenitude para homens e mulheres e permanece durante toda a vida como fonte revitalizante de imensas possibilidades criativas e sensíveis, onde podemos nos nutrir para ampliar e enriquecer nossa essência humana.
Fase patriarcal — Nesta fase, a consciência destaca-se por completo do inconsciente para formar um ego forte, que dirige a libido de acordo com sua vontade rumo à organização e à discriminação. O arquétipo da Grande Mãe é substituído pelo arquétipo do Pai, a lua dá lugar ao sol e as novas conquistas são simbolizadas pelas façanhas do herói. O princípio masculino aqui está “em casa“, como estava o feminino na fase anterior. Com a modificação da consciência, o feminino também sofre transformações que ampliam o seu significado. O que não quer dizer, como frequentemente se supõe, que o feminino se transforme em masculino.

As qualidades do feminino (suavidade, intuição, aceitação, tempo lunar qualitativo) fortalecem-se nesta fase e tomam forma mais definida pelo seu exercício consciente e ativo, tanto no círculo familiar, mais íntimo, como no espaço mais amplo das várias relações afetivas e sociais. Conquistando novos espaços, essas qualidades serão fortalecidas e diferenciadas através da consciência patriarcal, que possibilita a formação de canais individuais mais assertivos de expressão.

À mulher, essa atuação consciente e decidida dos valores femininos proporciona uma auto-confiança fundamental na sua própria essência. Para o homem, passada a etapa de afirmação da sua identidade masculina, o encontro com o feminino representa a conquista da própria alma.
Na nossa cultura, a consciência patriarcal foi levada ao extremo. A aceleração do ritmo vital, a excessiva competitividade e agressividade prejudicaram a qualidade de vida em geral. Hoje, as pessoas têm muito mais conforto devido ao enorme avanço científico-tecnológico, mas já não possuem tantas possibilidades internas de desfrutar esse bem-estar, porque o feminino pouco desenvolvido tomou a vida sem significado existencial.

O objetivo de atingir status, estabilidade financeira, acesso aos bens materiais, simboliza, mais que simples conforto, o sucesso do ponto de vista patriarcal. A vivência e o desenvolvimento dos valores ligados ao potencial feminino são desvalorizados, e é necessária grande ousadia para buscá-los na atual sociedade. Os desafios não são poucos. Em primeiro lugar, temos que usar de toda a capacidade discriminativa da consciência patriarcal para delinear de maneira precisa os valores do feminino a serem resgatados, preservados e desenvolvidos. Em segundo lugar, temos que ampliar o exercício desses valores (suavidade, receptividade, compreensão lunar) do círculo familiar, amigos e pessoas próximas para a sociedade em geral, inserindo essa ação em nosso cotidiano. Isso requer a persistência e a tenacidade da consciência patriarcal, usadas a favor do feminino. Por último, temos que expressar o feminino sem que perca sua essência.

Tais tarefas requerem a força do herói, pois tentam recuperar o respeito, a dignidade, a civilidade no contato humano, hoje tão raros. O feminino tem a faculdade de estabelecer vínculos, relações, tanto externos como internos. Com a consciência patriarcal, passamos a nos diferenciar do outro, a ter uma visão do outro. O feminino faz a ponte, a conexão entre eu e outro, trazendo uma qualidade afetiva à relação. Vivida internamente, essa qualidade afetiva estabelece contacto com a vivência poética inerente a cada ser humano e abre as portas para outra visão de mundo que complementa e equilibra a anual — e dominante — consciência patriarcal.

O estabelecimento de uma vivência poética no quotidiano não pode ser deixado ao acaso. Essa vivência deve ser desejada, buscada e trabalhada criativamente. Portanto, o irromper dos valores femininos na fase matriarcal não é o bastante. Sua continuidade depende das qualidades positivas da consciência patriarcal, que favoreçam seu desenvolvimento.

Fase da alteridade — Se na fase anterior o feminino foi delineado e expresso com clareza, podemos ingressar na fase da alteridade. Os arquétipos regentes são a Anima e o Animus e o objetivo é o encontro e a aproximação das polaridades. O feminino amplia-se ao incluir seu oposto, o masculino, e vice-versa. Ambos são vividos como duas totalidades que se encontram e estabelecem o que Jung chamou de relacionamento “quatérnio”.

O feminino poderá expandir-se muito mais, valendo-se de seu poder criativo, para encontrar novas maneiras de expressão da consciência. Essa criatividade é absolutamente necessária à transformação dos valores patriarcais que se baseiam na consciência tradicional e conservadora do coletivo.

A luta pela afirmação do feminino já não é importante nesta fase. Assim, essa energia pode ser dirigida ao diálogo, à escuta, à reflexão que inclua o oposto. As qualidades do masculino serão vivenciadas como complementares e não mais como antagônicas. As projeções podem ser retiradas; o encontro do feminino com o masculino pode ser vivido internamente. Novas possibilidades desabrocham — por exemplo, a percepção de que a suavidade possui grande força intrínseca, de que o pensamento lunar, do coração, possui sua própria lógica, de que a capacidade de entrega é uma escolha ativa e não um mero abandonar-se passivo. Os valores do feminino, enfim, incluem os valores do potencial masculino naturalmente, do mesmo modo que no símbolo do Tao o lado escuro contendo um ponto claro e o lado claro contendo um ponto escuro estão em constante movimento e inter-relação.

Esse diálogo, essa dança entre as polaridades é a grande tarefa a ser cumprida pelo homem e pela mulher: o lado prático e o lado sensível expressando-se ao mesmo tempo, superando a dissociação interna.
Fase cósmica — É difícil falar com precisão desta fase, pois ainda estamos, enquanto humanidade em geral, na transição da fase patriarcal para a fase de alteridade, que apenas começamos a desenvolver. No entanto, ela não é uma completa desconhecida, pois temos a possibilidade de vivenciar momentos integrativos que nos dão um vislumbre bastante eficaz de suas possibilidades existenciais.

Aqui, o arquétipo regente é o self. Depois da integração obtida na fase anterior, o coletivo é a transcendência das polaridades, que nos leva à vivência da totalidade.

As qualidades do feminino que desabrocharam na fase matriarcal, discriminadas na fase patriarcal e complementadas pelo seu oposto e integradas na fase de alteridade, serão agora vivenciadas de modo espontâneo na sua totalidade, desapegadas dos papéis sociais polarizados que ajudaram no seu desenvolvimento. Por exemplo: mãe-pai, filho-filha, marido-esposa. Pois agora o centro da consciência não é mais o ego e sim o self, que é o centro da psique unificada.
Na fase de alteridade, a forma convencional e coletiva de personalidade é descartada para que a individualidade desabroche. Isto feito, abre-se a porta para a vivência do aspecto transpessoal, onde não mais existe a divisão feminino-masculino e se torna possível a vivência real dos seres humanos em sua totalidade. Como consequência, a visão de mundo também é radicalmente transformada.

As qualidades da feminino serão agora vividas em uma esfera superior, porque foram consciencializadas e transformadas ao longo de todo o processo de desenvolvimento. Elas unem-se agora no que podemos considerar uma nova síntese de sabedoria, expressa através de serenidade, lucidez e harmonia. O Self pode expressar-se de modo mais feminino ou mais masculino, apenas no que diz respeito à ênfase no modo de expressão, pois o todo está sempre presente indiviso. Como exemplo, podemos lembrar Lao Tsé, que transmitiu sua sabedoria de modo feminino ao usar a linguagem poética em seus escritos.

Assim, o feminino pode se revelar nesta fase como um valor espiritual vivenciado internamente e não mais projetado no mundo. O inconsciente urobórico do início torna-se sagrado, numinoso e, através do longo processo de desenvolvimento, leva-nos ao si-mesmo.

Vera Lúcia Paes de Almeida

Texto publicado na Revista THOT nº 58.
lido em: http://rosaleonor.blogspot.com/2009/07/o-feminino-abre-porta-dos-misterios.html

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A MATRIZ MATERNAL QUE AS MULHERES OFERECEM SUSTENTA A VIDA


A MÃE

“Pensei no extravasamento de mágoa e dor que tinham acompanhado as palavras íntimas “A mãezinha morreu”, e como essas palavras poderiam expressar o que ia mal no mundo do meu paciente. Porque um mundo sem a divindade da Mãe é um mundo material desprovido de cor e vida, de matéria despida de significado, um mundo desvitalizado transformado em pedra.”

“(…)quando a Mãe Alimentadora e a Mãe Dançarina abandonam o mundo, deixam um ermo emocional. Na mitologia grega, Deméter, Deusa dos Cereais, a mais dadivosa e generosa de todas as deidades que representava a Deusa-Mãe numa época em que as religiões patriarcais se estavam a tornar predominantes, tornou-se a Deusa
de Morte quando se recusou a deixar que crescesse o que quer que fosse na terra e permitiu que a humanidade morresse de fome. O coração e a compaixão haviam-se-lhe transformado em pedra. Tornou-se na Mãe de Pedra. Os camponeses bem poderiam ter-se lamentado – “A Mãe morreu!” – como fez a criança no íntimo do meu paciente.”

“A matriz maternal que as mulheres oferecem sustenta a vida”

“O poder da Deusa, que se manifesta por meio das mulheres, é uma matriz emocional que convida a uma fusão ou simbiose inconsciente e transmite uma sensação de “chegada a casa”. Se é através das mulheres que muitos homens recebem alguns ingredientes essenciais à manutenção da vida, é lógico que tais homens se esforcem por controlar as mulheres, em especial se não gostam particularmente delas e não querem admitir a sua própria dependência.”


in "Travessia para Avalon", Jean Shinoda Bolen
Imagem: Google

O MANDAMENTO DA DEUSA


Eu, que sou a beleza do verde sobre a Terra, da Lua branca entre as estrelas,
do mistérios das águas e do desejo do coração dos homens, falo à tua alma:
desperta e vem a mim, pois, sou Eu a alma da própria natureza, que dá a vida ao universo.

De mim nasceram todas as coisas e a mim, tudo retorna.

Ante meu rosto, venerado pelos Deuses e pelos homens, deixa tua essência se fundir em êxtase ao infinito.

Para me servires, abra teu coração à alegria, pois, vê: todo ato de amor e prazer é um ritual para mim.

Cultiva em tua alma a beleza e a força, o poder e a compreensão, a honra e a humildade, a alegria e o respeito.

E a ti, que buscas conhecer-me, eu digo: a tua busca e o teu anseio de nada te servirão sem o conhecimento do mistério de que se aquilo que procuras não encontrares dentro de ti mesm@, jamais o encontrarás fora de ti. Pois, vê, sempre estive contigo - desde o começo - e sou aquilo que se alcança além do desejo.

(Doreen Valiente)

Encontrado, texto e imagem em
http://orianashakti.blogspot.com/