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sexta-feira, 24 de abril de 2020

ENCONTRAR CALAICA



Podes ir pela rua e de repente encontrar a Cale. Mas para isso acontecer é melhor ires à província, descer ao país profundo. A Cale veste-se de negro, porque toda a gente da sua geração, pelo menos, já desencarnou. Resta ela, a resiliente. Lembro-me de umas quantas epifanias de Cale na minha vida. Numa peregrinação à Cova da Iria, por exemplo, na véspera dum dia 13 de Maio, vimo-la passar, magrinha, sequinha, ultrapassando tudo e toda a gente na rapidez desembaraçada e ritmada do seu passo que já vinha assim desde o Norte. Ainda mal refeitas do nosso espanto, ao vermos como, naquela que era a derradeira etapa do nosso percurso, a famosa e dolorosa “recta de Fátima”, ela, a Cale, magrinha e sequinha, vestida de negro, de lenço atado na cabeça, se movia, antes de podermos articular palavra, já a tínhamos perdido de vista. Devia ter perto de 80 anos, e foi um espanto e um profundo respeito e quase embaraço da nossa parte, por sermos muito mais novas e tão mais lentas, pesadas e cansadiças.

Mas a Cale é de outra dimensão. Por onde passa, ela deixa um rasto, ou um borrifo, de profundo reconhecimento, anagnórise, será o melhor termo para o que acaba de nos acontecer. Sabíamos que ela devia existir porque lemos a respeito nas histórias antigas, mas não tínhamos bem ideia de onde procurar, e de repente acontece qualquer coisa, como uma brisa fresca de liberdade, que faz um upgrade na nossa coragem e alarga a nossa visão da vida, da extensão da duração da vida e da excitação de se estar viva, porque lá no fundo pode estar a Cale.

Uma vez encontrei-a do lado de dentro do balcão de um café para os lados dos Amiais de Cima. Vestia de negro, mas não era uma saia e blusa e um avental qualquer. Era um vestido bem feito, marcado na cintura, com um xaile pelas costas. Tinha um olhar frontal e usava cordão e brincos de ouro e todo o conjunto denunciava uma atitude de quem é muito senhora de si e não precisa de impressionar ninguém. Mas impressionava, sobretudo ali naquele lugar, numa aldeia onde ninguém se veste nunca assim. Apetecia copiar-lhe o estilo, mas ainda era preciso cultivar muito a Cale em si para aquilo cair como caía nela. Há poucos anos lembrei-me e fui de propósito lá só para a ver de novo, mas já tinha partido para o Jardim das Hespérides.

A Nazaré também é um lugar onde ainda se pode encontrar a Cale. Num dia de sorte, podes encontrá-la ocupada com alguma coisa ou simplesmente com nada, sentada no areal à beira da marginal, já me aconteceu. De xaile cobrindo a cabeça. Ou de lenço. Se o teu olhar se encontrar com o dela, é possível que te aconteça viajares em pânico para algum lugar recôndito e mal cheiroso da tua alma que com tanto cuidado pensavas estar preservado, desinfectado e selado.

No Norte também é provável que a encontres. Mas entre os ambientes onde não se dá, o pior deve ser aquele onde um fluxo televisivo ininterrupto mantém a cabeça numa frequência de idiotice, vazia de qualquer ideia ou pensamento original, observando acontecerem coisas mirabolantes em que não se é tida nem achada.

De resto, a Calaica é muito desconfiada, não vais encontrá-la em nenhuma fila de farmácia, sala de médico de família, lar de terceira idade, onde te tratam de “menina” para baixo e te imbecilizam e te provam que não és capaz e te fazem duvidar de que alguma vez sequer o tenhas sido. A Calaica fenece nesses lugares de pura irrelevância. Ela precisa de vida a acontecer na guelra, de movimento, de desafio, de giro, do ar da madrugada, do pó da estrada nas plantas dos pés, da água dos córregos, do vento e da geada, de gravetos para a fogueira, de ir e de vir, de ser tida e achada. Abençoada.

©Luiza Frazão



2 comentários:

  1. ��Verdade �� esta reflexão faz-nos viajar aos nossos mais diversos momentos de infância ou juventude. Maravilhosa reflexão, que me fez saltar para a minha infância, nos dias que ia com a minha avó até as fazendas, porque is terrenos que estavam junto às ribeiras só agora estavam em condições de serem semeados. Então lá íamos nós, com o farnel aviado, o bolo que a matriarca fez, de batata doce e canela, aquele cheirinho que nos enfeiticava, os ovos cozidos e os moranguinhos que a avó tinha apanhado para a netinha comer, porque adorava. E lá íamos nós por entre canaviais e caminhos sempre junto à ribeirinha. No caminho passávamos junto à casa da tia Calia, aquela mulher alta, que ficava mais alta ainda quando punha os molhos de vides à cabeça, magra, magra, rugas bem definidas, que se destacavam por causa do negro lenço na cabeça. As suas vestes, saia preta comprida, que lhe permitia esconder aquele corpo forte mas ao mesmo tempo seco, apenas ossos.
    Um dia fiquei estupefacta, e até hoje nunca me esqueci desta visão... Calia vinha entretida pelo caminho, com os seus animais, cão, cabra e o porquinho e ela pára no meio do caminho, levanta as saias até ao joelho e ali no meio do nada, de pé, satisfaz uma das suas necessidades fisiológicas.... Durante anos pensei nisto, e quando me diziam "as meninas fazem xixi sentadas, eu pensava para comigo *isso é que vocês se enganam, Calia faz de pé *
    Grata pela viagem.

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  2. Que texto fantástico Luiza Frazão! A Cale está viva em nós.. Povo sabido arranja sempre uma solução perante a adversidade que se levanta em massa para alimentar a revolução que era dos militares ou fica em casa mesmo antes das ordens oficiais pois tem noção de que se não fizer por si ninguém fará...

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