Romance histórico
"No início era Ela, a Mãe de todas as coisas
e Ela se elevou nua no espaço infinito
dançou cada vez mais selvagem
e ao dançar gerou o cosmos."
(Mito grego sobre a criação do universo)
Bianca Furtado é de Florianópolis, da Ilha de Santa
Catarina, no estado com o mesmo nome no Sul do Brasil, onde, entre a população
colonial portuguesa, a comunidade açoriana imprimiu marcas importantes e
indeléveis na cultura. Marcas bem visíveis a olho nu na arquitetura,
extremamente bem conservada e valorizada, nas festas de Espírito Santo, ou nas
belas e coloridas rendas de bilros tão características do artesanato
brasileiro. Também na tradição oral, nos mitos e lendas locais, as Bruxas
oriundas do Corvo deixaram vestígios na memória da Ilha de Santa Catarina -
esotericamente considerada como a décima ilha dos Açores – o que levou a autora
a investigar sobre a sua existência histórica e a seguir-lhes o rasto até ao arquipélago
de onde no séc. XVIII tiveram de fugir ameaçadas pelos perigos das investidas
da Inquisição contra a vida de mulheres fortes e autónomas.
Bianca Furtado é uma talentosa e deliciosa contadora de
histórias e imediatamente entrei no ritmo da vida de Lunae, de sua avó e irmã,
no ritmo da sua mágica e frugal existência, em profunda conexão com a natureza
da Ilha das Flores e dos seus mistérios, os mistérios da Deusa. Depois a
narrativa adensa-se, o pequeno núcleo familiar junta-se à Irmandade da Ilha do
Corvo, onde algo de sinistro vem perturbar este mundo feminino, imbuído de
grandeza e de harmonia, sem deixar de nos apresentar a sua complexidade e
humanos desafios. A certa altura revi-me no cenário e encetei o que senti como um
processo cármico que me levou a abrandar o ritmo da leitura, que ainda por cima
acontecia pelo Samain…
Sem dúvida que histórias destas, de mulheres independentes, íntegras e dedicadas, com interesses e vida própria, autoinspiradas, vivendo em comunidades respeitadas (não fosse a arrogância religiosa de quem se sente no direito de defender os interesses dum deus “maior” ao qual se atribuem as intenções e os meios de “arrasar a concorrência”), inseridas em outras mais alargadas que usufruirão dos serviços destas mulheres que sabem viver em harmonia e cooperação com os seus irmãos e companheiros, com consciência de que “um homem só é nosso aliado quando não estamos sob o seu poder”, estas história, dizia, precisam tanto de ser contadas!
Todas e todos precisamos destas personagens, de saber do nosso direito de existir no mundo enquanto mulher, sendo apenas isso, uma mulher, um ser humano; não porque se é a irmã, a namorada, a esposa, a filha ou a mãe de alguém, mas porque se é um ser humano completo em si mesmo, com vida e interesses próprios, com a sua forma exclusiva de ver e de estar no mundo. Por outro lado, valorizar personagens que foram profundamente desvalorizadas e anuladas pela versão dos vencedores, “bruxas peçonhentas que só mereciam mesmo a fogueira” (um sentimento que ainda anda muito por aí) é repor a justiça e o equilíbrio neste mundo.
Por tudo isto, pela grandeza desta narrativa, pela sua
relação com a nosso própria história e cultura, pelo seu jeito especial de
contar histórias, pelo encanto com que se penetra nos cenários por onde nos
conduz, Bianca Furtado merece ser lida. O seu livro tem aliás todos os
ingredientes para agradar imensamente ao público português, como está a
acontecer no Brasil, de onde aliás já rumaram a Portugal e às ilhas dos Açores
as primeiras leitoras mais impressionadas e inspiradas (e com os meios
suficientes para o fazerem, claro); a duas delas já as encontrei no coração de
Lisboa, na véspera de rumarem até essas ilhas encantadas do Atlântico,
preciosas entre todas as que povoam os nossos sonhos e a nossa imaginação.
Bravo, Bianca, espero que continues a relembrar-nos com a
tua profunda sabedoria e a tua delicada perspicácia e acutilância as histórias
que até há bem pouco tempo nem sequer sabíamos que já tínhamos vivido!
Luiza Frazão