Nasci numa família de mulheres. A minha mãe tinha três irmãs
e o meu pai duas – mulheres fortes, a maior parte delas. Na minha infância, com
o meu pai ausente em África, em redor da máquina de costura da minha mãe, e do
seu forte carisma, na nossa casa juntava-se um verdadeiro círculo de mulheres,
cosendo, remendando, bordando, contando histórias, falando das suas (e de
outras) vidas… Tenho consciência agora de que era um ambiente paradisíaco, o
grande regaço da Deusa, um oceano de prazer onde me sentia completamente
segura.
Para quase todas aquelas mulheres,
entretanto, eram os homens o principal objeto da sua preocupação, do seu amor,
mas também do seu medo. Alguns eram violentos, sarcásticos, bebiam demais… No
mínimo, pareciam viver noutro mundo, segundo outras leis. Tudo lhes era permitido;
já a elas tudo parecia proibido, sobretudo coisas que dessem prazer. “Toma
muito cuidado com os homens” era o aviso mais repetido, de todas as formas.
Este abismo entre os homens e as
mulheres, entretanto, acabava por tornar os homens objeto de grande atração e
fascínio – as coisas são sempre bem mais complicadas do que parecem… De alguma
forma e em algum momento das nossas vidas de mulheres – e quanto mais cedo
melhor – deveríamos encontrar o tal príncipe encantado, o único e exclusivo ao
qual iríamos dedicar a nossa vida; aquele que se tornaria dono e senhor dos
nossos dias. De alguma forma (e a grande insanidade era esperarmos isso apesar
de toda a corrente de mensagens negativas que circulava a respeito deles…),
esperávamos que esse fosse perfeito, embora com frequência ele se revelasse aos
nossos olhos mais como uma espécie de Barba Azul que iria manter-nos
prisioneiras e tentar “matar” as nossas irmãs, os nossos apoios no exterior…
Podemos considerar que esta é uma
boa imagem daquilo que aconteceu ao sistema matriarcal, ginecocêntrico, esse
modo de vida aprazível, pacífico, inclusivo, igualitário, sustentável, essa
Idade de Ouro, destruída quando os patriarcas impuseram o seu estilo de vida
agressivo, violento, competitivo, egocentrado, hierarquizado, de espada sempre
em riste e obcecados com o “crescimento” …
Claro que o tema é muito mais
complexo, mas a questão é que o sistema patriarcal, baseado na lógica, que
fomentou um desenvolvimento excessivo do hemisfério esquerdo do cérebro, em
detrimento do direito, com o seu sentido de separação do todo, se tornou
obcecado com o poder, a hierarquia, a propriedade privada, a herança, as leis e
regulamentos para manter o estado das coisas… Até que a certa altura a mulher
se tornou parte da propriedade do patriarca, como uma sofisticada e insubstituível
tecnologia de reprodução, requerendo apertado controlo para garantir a pureza da
linhagem.
O papel do pai tornou-se então
cada vez mais importante, tão central na sociedade que a Deusa Mãe dos
primórdios, cultuada durante milhares de anos, foi substituída pelo Deus Pai.
Todo o poder passou para mãos masculinas com as desastrosas consequências que conhecemos.
O Feminino foi suprimido tanto nos homens como nas mulheres para que fosse
possível um mundo mais violento e competitivo, baseado na lei do mais forte que
exerce o seu poder sobre tudo e tod@s percebid@s como mais frac@s: crianças,
mulheres, outros homens, a própria terra. Poder que vai até impor a escravidão
e tudo considerar numa perspetiva de puro lucro.
Tod@s somos vítimas deste
desequilíbrio entre as energias Femininas e
Masculinas, destes papéis atribuídos a cada um-a de nós ao nascermos. O
papel de Mulher contém certas expectativas que devo cumprir para poder ser
aceite e amada. O mesmo acontece com o papel de Homem, e concordo que este não
é nem melhor nem mais fácil do que o meu, mesmo fazendo eles teoricamente parte do clã
dominante. A verdade é que somos tod@s um-a e ninguém ganha quando um-a de nós
perde.
Então, o nosso desafio é conseguir equilibrar as
energias, trazendo de novo à nossa consciência a Grande Deusa dos começos, o
arquétipo, o padrão do Feminino esquecido e desvalorizado, procurando-A na
terra, na natureza, nos nossos corpos, nesses lugares de onde os patriarcas
judaico-cristãos A baniram para nos levarem a procurar exclusivamente nos céus um
Deus severo e ciumento à semelhança do qual eles foram feitos, não nós. Fomos
separad@s sistematicamente do nosso corpo, dos instintos, da natureza, percebid@s
como lugares do mal, deixando livre o caminho para a sua exploração e
destruição desenfreadas.
São muitos os homens que
entenderam isto, que sentem em si próprios este desequilíbrio e alguns d@s
autor@s mais inspirad@s que já li são homens como Jean Markale, Eric Neumann,
Jung, Robert Graves, Stuart McHardy e muitos outros.
No entanto, em meu entender, homens
e mulheres são muito diferentes biológica e culturalmente. Temos histórias muito
diferentes, vivências muito diferentes.
Interagir com homens neste
caminho da Deusa não é simples. Quando nós, mulheres, nos juntamos há uma
imediata compreensão da nossa história comum, uma cumplicidade natural que não
inclui os homens. Diria até que os exclui, sentidos como o inimigo, não os
homens em si mas os papéis que têm vindo a desempenhar na nossa cultura. Sinto
muito, mas este é um ponto muito importante, porque se não temos esta primeira
impressão, este sentimento de dor e de revolta, não conseguiremos mudar nada. Apenas
a nossa indignação, a nossa raiva, a nossa dor nos podem dar a motivação e a
força para mudarmos as coisas. Os homens nunca foram considerados inferiores só
por serem homens, nunca foram considerados impuros, sujos, culpados da queda da
humanidade, nunca lhes foi interdito o acesso direto ao sagrado…
Muitas mulheres por esse mundo
fora continuam a sentir-se sujas, desvalorizadas, separadas dos seus corpos,
dos seus instintos, da natureza, do sagrado, nas mãos dos patriarcas,
escravizadas na sua grande parte e nós precisamos de curar essas mulheres
ousando amar o nosso corpo tal como ele é e não apenas se ele corresponder aos padrões impostos pela cultura patriarcal, amar o lado feminino da humanidade, reclamar o
nosso direito de lidar diretamente com o sagrado, como fizemos no passado, como
fomos criadas para fazer.
Sei que não é fácil, que pode
parecer um ponto de vista sexista, separatista, mas nós, mulheres, temos tantas
feridas para curar, que precisamos dum campo seguro, só nosso, uma zona de pura
irmandade, de perfeita compreensão, aceitação, cumplicidade para nos curarmos
umas às outras, para nos sentirmos mais fortes, consideradas e respeitadas. Curarmo-nos
a nós próprias significa admirarmo-nos e amarmo-nos umas às outras por aquilo
que somos, fazermos as coisas por nós mesmas, sentir que somos
capazes, já que durante milhares de anos fomos consideradas incapazes.
É por isso que a Conferência da
Deusa, por exemplo, é um acontecimento tão fantástico. É-o não apenas por
aquilo que lá acontece, que é excelente, mas sobretudo porque tudo é concebido
por e para as mulheres. Nós precisamos de experienciar o nosso próprio poder, a
nossa força, talento, criatividade, apresentar ao mundo a nossa própria visão,
dar a cara por aquilo que acreditamos estar certo, demarcarmo-nos duma maneira
masculina de fazer as coisas. Nós mulheres que fomos e ainda somos tantas vezes
consideradas menos, pouco mais autónomas do que crianças, sem direito a
exprimirmos a nossa maneira própria de ver as coisas, silenciadas pelo sarcasmo
masculino e a sua “superioridade” a nível do raciocínio lógico, precisamos de
agir neste mundo por nós próprias. Precisamos de aprender como é e a exprimir a
nossa própria natureza num ambiente seguro.
Os homens que claramente entendam
isto e solidariamente permaneçam ao nosso lado, colocando a sua força e os seus
talentos ao serviço do Feminino, sabendo o que está em causa, sentindo-se
suficientemente seguros para não nos retirarem a energia de que precisam, como
habitualmente fazem das mais variadas maneiras, esses homens são bem-vindos, e há
vários no caminho da Deusa. Como os antigos cavaleiros, eles precisam de se
render à sua Dama, a sua Alma, a sua parte feminina; e a Alma vai à frente,
está primeiro. É a Alma que mostra o caminho.
Luiza Frazão
Imagens: Herman Smorenburg.
Glastonbury Goddess Conference